Dias de bonança. Vítor Pereira encara pela primeira vez com serenidade a afastamento do futebol. Sem ressaca, como o próprio diz nesta entrevista ao Maisfutebol. Maduro, experiente, certo do que quer e que não quer para o futuro, o treinador bicampeão nacional pelo FC Porto enche o peito e carrega as baterias. Entre Espinho e a Aguda, os seus portos de abrigo.

O corpo deu-lhe avisos e disse-lhe que esta era a altura certa para parar. Vítor Pereira aceitou.

PARTE I: «Pedi desculpa ao Jesus por lhe ter chamado egocêntrico»

PARTE III: «No golo do Kelvin eu estava a pedir para ele cruzar»

PARTE IV: «3x4x3? As 'estruturas transformers' vieram para ficar»

PARTE V: «Estive duas vezes muito perto de clubes ingleses»

PARTE VI: «Na Alemanha desci à terra e percebi que não faço milagres»

Maisfutebol – Nunca esteve tanto tempo sem treinar. Esta paragem foi opcional ou imposta pelas regras do mercado?

Vítor Pereira – Opcional. Depois de tantos anos por fora, desde 2013 e de quando saí do FC Porto, senti que tinha de parar. Quando fui para a China, em 2018, era para ficar só um ano e fiquei três. No primeiro ano fomos campeões e aquilo até me surpreendeu pela positiva. Eles queriam renovar por mais três ou quatro anos e eu disse-lhes que não, ainda a pensar na experiência na Arábia Saudita. Não me queria chatear daquilo e ter de pagar uma indemnização para me vir embora. Como fiz na Arábia, aliás. A pensar nisso fui renovando ano a ano. No final do segundo ano na China também estive perto de sair, houve uma possibilidade de Inglaterra, mas as coisas não se proporcionaram. E fiquei para um terceiro ano na China. Em 2020 estive dez meses sem vir a casa, estivemos quatro meses fechados numa «bolha» criada pela federação, passámos imenso tempo a treinar sem saber quando jogaríamos e tudo isso foi extremamente desgastante.

MF – O corpo disse-lhe que tinha mesmo de parar.

VP – Sem dúvida nenhuma. Esta paragem está a saber-me muito bem. Estar em casa, ver a família, até o respirar me está a saber bem. Aqui respira-se melhor, passeio de bicicleta, o cheirinho a maresia faz-me muito bem, dou umas caminhadas. Até estou admirado comigo. A minha maturidade é diferente, há uns anos era impossível estar mais de um mês parado. Começava a faltar-me o ar.

MF - «Sou doente por isto, vivo num mundo à parte.» O Vítor disse-nos isto em 2013, dias depois de sair do FC Porto.

VP – Continuo a viver o futebol da mesma forma. Mas estive tantos anos fora que, pela primeira vez, está a saber-me bem o estar sem trabalhar. Eu comecei a sentir há alguns meses que tinha de parar.

MF – Vê muito futebol nesta fase ou nem isso?

VP – Na China esgotei o stock de filmes e séries (risos). Estivemos muitos meses sem competir e tive tempo para isso. Aqui em casa não tenho visto quase nenhum futebol. Já não tenho vontade de ver os jogos todos como via antes, as ligas todas. Não. Sou muito seletivo nos jogos que vejo. Só vejo futebol que me dê alguma coisa capaz de me fazer refletir para evoluir. Dei por mim a ver jogos e a desligar-me completamente, porque era mais do mesmo. Então, o que tenho feito é o seguinte: tenho o iscout [aplicação], gravo e vejo os jogos das equipas com que me identifico. E estudo essas equipas, os pormenores que me interessam. O futebol tornou-se o meu estudo e é isso que digo aos meus filhos: ‘Estudo muito mais do que vocês.’ (risos) Tenho refletido sobre o que devo fazer no futuro. Estou sistematicamente a reinventar-me, nunca estou satisfeito com o que faço, ando sempre à procura do que posso melhorar e sei que posso fazer muito melhor no futuro.

MF – Por onde passará esse futuro?

VP – Ainda não sei. Terá de ser no clube certo, com o contexto certo para mim. Tenho de me desafiar e sentir-me motivado. Nos últimos meses tenho falado para os outros e isso tem-me dado muito prazer. Falar sobre a minha experiência, os meus erros, as coisas que fiz bem e mal, no sentido de deixar alguma coisa. Quando estava a começar como treinador, queria falar com os treinadores mais experientes e era muito difícil. Sentia ali uma barreira inacessível. Agora tenho partilhado com os treinadores mais novos coisas que me levaram anos a pensar e a construir. Sem qualquer problema.

MF – Gostou da experiência de comentar os jogos na ‘Final Four’ da Taça da Liga?

VP – A minha linguagem é muito técnica. A forma como olho para o jogo também. Eu consigo prever o passo seguinte, o que vai acontecer. E numa perspetiva mais alta, na bancada de imprensa, ainda é mais fácil. Perceber os espaços, perceber o que eu faria, gostei muito. Mas não sei o que as pessoas acharam. A mim deu-me prazer poder descodificar o jogo ao vivo. Se calhar a linguagem foi um bocado desajustada para muita gente, mas diferente do comentário habitual. Que também está certo e que agrada, se calhar, até a mais gente.

MF – Foi a primeira vez que comentou jogos na televisão?

VP – Não. Há uns anos comentei um jogo de um Mundial. E na altura recebi uma mensagem que muito me orgulhou do professor Vítor Frade. Nós não falamos com regularidade. Foi um jogo da Colômbia. ‘Vítor, ouvir um comentário destes é um upgrade’. Fiquei sensibilizado por vir de quem veio. Mas não quero entrar nesse terreno, não quero ser comentador, não quero ser nada disso (risos).

MF – Aos 52 anos, que sonhos ainda tem o treinador Vítor Pereira?

VP – Ainda tenho muitos. Uma pessoa amiga dizia-me há dias que nós não podemos mesmo parar de sonhar. O sonho tem de ser permanente. Sem sonhos… é como se a máquina se desligasse. Tenho muitos sonhos, quero provar-me a mim próprio. Ainda não me provei no limite que idealizo e quanto mais desafiante for o projeto, mais eu consigo estar no meu nível. O problema é quando o projeto deixa de me desafiar, quando deixo de estar focado. Preciso de sentir uma pressão alta, preciso de jogos grandes. Preciso de um campeonato que me desafie. Se essa liga não for possível, preciso de uma Liga dos Campeões. Estou a ser paciente, não entrar em ansiedade para escolher. Tenho de esperar pelo projeto certo.

MF – A montanha-russa das emoções de um treinador é viciante?

VP – É uma droga. Funciona como uma droga. Depois torna-se complicado sair da caixa. Habituamo-nos a esse ciclo de ‘começar jogo-acabar jogo-preparar jogo’. A adrenalina e o stress funcionam como drogas que precisamos. Só que – e isto é engraçado – quando entramos numa sequência muito grande de jogos, então sentimos necessidade de parar. Já me aconteceu mais do que uma vez. A sequência é tão grande que a dada altura já funcionamos por reação. Perdemos a capacidade de pensar. A fadiga é tão grande que sentimos necessidade mesmo de parar. Aconteceu-me isto na China. Estive a preparar jogos ininterruptamente e não tinha a possibilidade de sair daquela ‘bolha’ do hotel-estádio, para viver um bocadinho e desligar. Isso tornou-nos quase autómatos. Quando nos tiram isto, o primeiro mês é uma maravilha, mas depois vem a ressaca. Hoje, pela primeira vez na vida, estou a saber controlar essa ausência de jogos. Não estou a entrar em ressaca, porque sei que quando recomeçar vou entrar naquele ciclo que me deixa exausto, mas que é viciante. O futebol é viciante.

MF – Nós só vemos os treinadores nas conferências de imprensa e no banco durante os jogos. O que há por trás desse lado mais visível?

VP – Muito, muito trabalho. Num dia de folga é impossível estar com a família ou com os filhos. Não me desligo. Lembro-me de ir ao cinema com os meus miúdos quando eles eram pequenos, mas a minha cabeça não estava lá. Já estava no próximo adversário. Vivemos intensamente e por períodos que não nos permitem desligar. Quanto mais alto é o nível, menos possível é relaxar e desligar o cérebro.

MF – Essa pressão a que se submete é igual no FC Porto e no Al Ahli de Jeddah?

VP – No FC Porto é maior. Não só no trabalho, em tudo o que o rodeia. Era impossível, por exemplo, estarmos a fazer esta entrevista aqui sentados numa esplanada pública. Não podia ir ao cinema, jantar fora, deixei de ter vida privada. Passei só a ser o treinador do FC Porto. Em Portugal é assim. Lá fora a exigência é a mesma. A pressão é aquela que coloco sobre mim e não há ninguém capaz de me pressionar tanto como eu me pressiono.

MF – Mas é possível ter uma vida mais normal.

VP - É possível desligar com mais facilidade no estrangeiro. Basta não consumir os Media. No FC Porto, a dada altura, também fui forçado a deixar de ler jornais e de ver televisão. Se não tivermos a capacidade para nos focarmos, começamos a ouvir coisas de todo o lado e temos mesmo de isolar-nos. É a única forma de manter a sanidade. Na Turquia, no Fenerbahce, a pressão era altíssima. Se eu fosse ao shopping e entrasse numa loja, olhava para fora e via uma fila de pessoas à minha espera, uma multidão. Na Arábia também havia um pouco isso. Mais com os miúdos. Eram cada vez mais, sempre atrás de nós. Acredito que não saber a língua local acaba por proteger-nos em algumas situações. Não há influências colaterais. Em Portugal, bem, eu chego a Portugal e passado uma semana já digo ‘isto está tudo igual’. (risos) Basta-me ligar a televisão, ver alguns programas e é isto, não evoluímos. Há alguns programas diferentes, mas são a exceção. É uma pena. Por isso achei muito interessante a iniciativa Quarentena da Bola, que nasceu na pandemia. Os treinadores juntam-se e só falam de futebol, o que é muito bonito. Gostava um dia de ver um programa apresentado por treinadores de futebol, só para se falar do jogo, uma coisa mais aprofundada. Seria fantástico.