Olharam-no de lado durante demasiado tempo por treinar em escalões inferiores, mas logo na época de estreia na Liga foi um dos treinadores revelação.

Daniel Ramos chegou ao Marítimo após a 5.ª jornada, para substituir o brasileiro PC Gusmão – na primeira «chicotada» da época. Encontrou a equipa em zona de despromoção (com quatro derrotas e apenas um golo marcado) e qualificou-a para a Europa, garantindo o 6.º lugar na última jornada, com 50 pontos que o obrigaram a pagar uma mariscada.

Aos 46 anos e ao fim de mais de década e meia como técnico chegou finalmente uma oportunidade no primeiro escalão do futebol nacional e, como confessava a quem lhe era mais próximo, veio para ficar.

Numa conversa franca e bem-humorada com o Maisfutebol, no centro de Vila do Conde, a sua cidade, Daniel Ramos fez o balanço do melhor momento na sua carreira, projetou a próxima época e contou um dos seus sonhos: não demorar para chegar à Premier League os mesmos 16 anos que teve de percorrer até à Liga.

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MAISFUTEBOL – Chegou ao Marítimo após a 5.ª jornada, com a equipa na zona de descida. O que é que o presidente Carlos Pereira lhe pediu quando o contratou?

DANIEL RAMOS – Safar a equipa da descida. Só isso. «O objetivo é recuperar, não descer e, se possível, fazer um campeonato sem sobressaltos.» Foram mais ou menos estas as palavras do presidente. Não foi difícil aceitar o desafio. Custou-me sair de onde estava bem, fizemos o melhor arranque da história do Santa Clara – seis vitórias e um empate na II Liga. As pessoas não queriam que saíssemos, mas eu já tinha alertado o presidente do Santa Clara do meu desejo de ir para a I Liga.

Já tinha tido a oportunidade de chegar à I Liga antes do início desta época?

Estive para entrar num clube da I Liga logo no início da época, mas essa porta fechou-se e eu pensei que ia ficar desempregado em cima da hora. Para não andar preocupado com isso, decidi assinar pelo Nelson Almeida (empresário), que foi meu presidente no Vilanovense quando comecei como treinador, e apareceu logo o convite do Santa Clara. Foi uma experiência muito boa, senti-me em casa. Mas desde o início avisei o presidente: «Venho para o Santa Clara para ir para a I Liga. Não sei se vai ser no final da época ou até durante a época.» E ele respondeu-me: «Conte comigo.» O «problema» é que arrancámos muito bem e à medida que as jornadas iam passando o presidente, meio a brincar, passava por mim e dizia: «Ó mister, você não vá embora… Tenha lá calma.» Aconteceu ter de sair, mas mantenho uma excelente relação com eles.

Demorou 16 anos para ter uma oportunidade na I Liga. Foi demasiado tempo?

Sinceramente, sim. Em vários momentos podia ter acontecido, mas a questão também é: se tivesse acontecido mais cedo teria tido este resultado? Estava preparado, não sei se tão bem preparado como estou agora. Mas sei que tenho espaço, trabalhei bastante, consegui fazer um percurso merecedor de ter a oportunidade que chegou nesta época.

Na sua apresentação o presidente Carlos Pereira disse: «Cometi um erro no início da época, mas emendei-o a tempo.» Considera que o Marítimo hesitou contratá-lo por ser um treinador sem experiência de I Liga?

É normal. O currículo do PC Gusmão no Brasil pesou. Reconheço que existe alguma desconfiança em contratar alguém que nunca treinou num escalão superior. O mais difícil é um dirigente apostar e já agradeci esse voto de confiança por diversas vezes. Sentia que estava preparado e até já tinha avisado: «Quando aparecer uma oportunidade num clube da I Liga eu sei que vou ficar lá.»

Qual é a diferença de um treinador preparado para a I Liga e de alguém que ainda não esteja?

Experiência, vivências… Fazer 56 jogos numa época inteira na II Liga é um passo importante, lutar por subir de divisão, fazer ciclos de três, cinco, sete jogos seguidos… Esta competitividade dá-nos maturidade e conhecimento para depois colocar em prática.

Faz também a diferença conhecer bem o futebol português?

O tempo é um fator determinante na adaptação. Um treinador novo a requerer tempo se não tiver resultados no imediato é logo colocado em causa. Se for estrangeiro vai demorar mais tempo a adaptar-se, a conhecer e a rentabilizar o seu grupo de trabalho. Faz a diferença ter alguém que conhece bem os jogadores, o clube, o meio, os adversários, até os estádios, e que, portanto, terá mais capacidade de resposta imediata. Isto pode fazer a diferença entre ganhar e perder.

Quando chegou ao Marítimo encontrou a equipa desanimada?

Sim. Os resultados negativos trazem desconfiança, alguma falta de crença. Faltava aos jogadores acreditar no seu valor e uma orientação coletiva. Faltava um caminho. Em termos de treino, começámos por tarefas básicas no processo ofensivo e defensivo, mas sobretudo olhámos muito para o lado humano: o homem antes do jogador, isso foi fundamental ao longo da época.

Dê exemplos.

Conversava com cada um para estar a par das expetativas deles. Queria que vissem em mim um amigo. Logo na primeira conversa disse ao plantel: «Estou a chegar à I Liga e preciso de ser ajudado. Ajudem-me agora que eu vou ajudar-vos mais à frente. Ouçam-me. Acreditem em mim.» Isso está para lá do treino. Essa abertura e entreajuda foi fundamental na nossa relação. Havia jogadores que precisavam de nutricionista, outros de psicólogo, noutros casos fomos conversando de forma permanente para não se desviarem do nosso caminho. Felizmente, e digo isto com orgulho, os jogadores com menos minutos terminaram a época com enorme prazer por fazerem parte do nosso grupo de trabalho e a sentirem que evoluíram.

Qual o momento em que achou que se deu um clique na equipa?

Tivemos uma boa resposta logo no primeiro jogo em casa (2-0 ao Tondela) e na jornada seguinte vencemos fora, em Setúbal. Duas vitórias consecutivas deram-nos confiança. Jogo após jogo estávamos cada vez mais a ser equipa e fomos de forma sustentada mantendo o nosso registo. Se há um clique? É óbvio que vencer o Benfica na inauguração do novo Caldeirão foi marcante. Sobretudo porque queríamos limpar a má imagem que tínhamos deixado no jogo da Taça (6-0 na Luz). Foi um jogo de afirmação e de orgulho. De cada vez que tínhamos um jogo mau, a equipa respondia sempre.

Desde que o Daniel chegou, o Marítimo não perdeu em casa. Como explica este excelente registo?

O estádio ajudou, subimos a média de espetadores, tínhamos o público connosco. (Pausa) Reconhecidamente, tínhamos algumas limitações no plantel. Faltava-nos alguma qualidade do meio para a frente para podermos equilibrar, pelo que assentámos o jogo na nossa organização defensiva. Os maritimistas, tal como eu, gostam de um jogo de envolvência, de domínio, de grande ascendente sobre o adversário… Mas nós não tínhamos armas para isso, pelo que tínhamos de ser uma equipa extremamente matreira, inteligente, e perceber que muitas vezes não conseguíamos dominar, mas tentávamos controlar.

E assim foi quebrando registos positivos.

Conseguimos vários feitos: dez jogos consecutivos sem perder, recorde do clube, 15 jogos em casa sem perder, feito extraordinário… «O Caldeirão voltou», ouvia-se em todos os jogos em casa. Foi marcante para nós. Era difícil para os adversários jogarem contra o Marítimo no Funchal.

E o ambiente era favorável também fora de campo, certo?

O Marítimo é um clube com pergaminhos e a Madeira gosta muito de futebol. Os maritimistas confraternizam, ficam no final dos jogos, saúdam os jogadores e os treinadores. Eu passo na rua e as pessoas vêm ter comigo, felicitar-me. É uma parte boa do futebol. Prefiro assim do que adeptos indiferentes.

Como surgiu essa ideia de convocar o plantel para uma mariscada no final da Liga?

Surgiu quando atingimos os 37 pontos, creio. Saiu-me numa conferência de imprensa: «Quando a equipa fizer 40 pontos vamos ao leitão e aos 50, se calhar, vamos ao marisco…» O «se calhar» ficou logo assumido pelos jogadores (risos)… 50 pontos era um objetivo que ficava no limite da conquista de um lugar europeu. Foram precisamente os 50 pontos que nos garantiram o sexto lugar e a Europa.

Ficou-lhe caro…

Mas foi com agrado. Foi uma grande mariscada na Taberna Ruel, na zona velha do Funchal. Um grande convívio, com muita gente, umas 50 pessoas.

E agora? Pode garantir que o seu futuro é no Marítimo?

Há sempre um cenário no ar de não continuidade, mas por razões positivas. O cenário natural é de continuidade: pelo contrato que tenho, pela possibilidade de jogar a Liga Europa, por me sentir bem no clube e por acreditar que terei uma equipa capaz de dar resposta. Porém, também faço uma ressalva; há duas razões que me podem tirar do Marítimo: a primeira seria aparecer um clube que me desse mais condições para fazer um trabalho a um nível ainda mais alto, desde que, claro, se entendesse com o Marítimo; a segunda era eu sentir que não me estavam a ser dadas condições no sentido de ter uma equipa capaz e competente para fazer um bom campeonato na próxima época.

Em que setores acha que a equipa tem de ser reforçada para continuar a evoluir na próxima época?

No meio-campo e no ataque perdemos as referências. O Ghazaryan tem um período de paragem prolongado, o Gottardi está em processo de recuperação, perdemos o Dyego Souza, o Raúl Silva, o Fransérgio… Precisamos de contratar bem para do meio para a frente termos mais qualidade. Tínhamos uma equipa muito sólida do ponto de vista defensivo, mas ofensivamente temos de ter outro tipo de valências. Isso implica alguma capacidade do clube para poder apostar. O presidente está a ver o que pode dar à equipa. Temos de contratar centrais, lateral direito, médios-centro, alas e ponta-de-lança... E precisamos de qualidade. A quantidade deve ser ajustada pela equipa B, a qualidade tem de ser fruto da escolha.

O Marítimo tem condições para montar um plantel competitivo para tentar ainda melhor na próxima época?

O Marítimo é um clube contido nas suas contas e ainda tem o estádio para pagar. Sei que existe alguma dificuldade em competir em termos de contratações e condições salariais com outros clubes que ficaram na tabela uns lugares abaixo.

Olhando mais a longo prazo: em que campeonato gostaria um dia de treinar?

O campeonato inglês é a minha prioridade. Qualquer clube é apaixonante. Pelo ambiente, adeptos, gosto pelo jogo… Por toda essa envolvência a Premier League seduz-me. Pelo espetáculo e emoção. Gosto disso!

Acha que vai demorar tantos anos a chegar à Premier League quantos demorou a chegar à I Liga?

Espero que não. Venha ela… (risos).