O percurso de Hugo Faria no futebol é curioso. Durante o período de futebolista, o antigo internacional Sub20 vestiu a camisola de 11 clubes diferentes - incluindo dois anos no FC Porto - e jogou em cinco países, além de Portugal. Em 2003 ganhou, de resto, o Torneio de Toulon numa equipa onde estava um rapaz chamado Cristiano Ronaldo.

Na fase final da viagem voltou a casa, ao Algarve, mas não ficou por muito tempo. O espírito aventureiro e os conhecimentos acumulados ao longo de uma carreira que passou por locais improváveis, além de um evidente mérito e vontade em crescer, levaram-no para o campeonato mais mediático do planeta, a Premier League.

A transferência passou despercebida a quase todos. Faria jogava nos seniores do Louletano e treinava os infantis, quando a oportunidade lhe bateu à porta. Em dois dias trocou o Campeonato de Portugal pela equipa técnica do Bournemouth. Aos 37 anos, é um dos adjuntos do treinador Eddie Howe.

Como se consegue tanto em tão pouco tempo? Esta é a entrevista de Faria ao Maisfutebol.

Hugo Faria num treino do Bournemouth (FOTO: site oficial do clube)

Maisfutebol – Na última entrevista ao Maisfutebol, o Faria jogava em Malta e até tinha de lavar o próprio equipamento. Muito mudou em seis anos.
Hugo Faria – É verdade. Não é possível comparar a Premier League à liga maltesa. Muito mudou na minha vida, na minha carreira. Sou um dos First Team Assistant Coach do Bournemouth – um dos adjuntos do treinador Eddie Howe – e também tenho funções de tradutor para os jogadores hispânicos, o Jefferson Lema e o Diego Rico. Hoje em dia já não tenho de lavar a roupa que uso no treino e no jogo (risos).

Jogou pelo Louletano a 28 de outubro de 2018 e a 1 de novembro foi apresentado no Bournemouth. Como conseguiu entrar num clube da Premier League?
Joguei com o Mark Burchill, o atual Chief Scout do Bournemouth, no Chipre. Fizemos uma grande amizade, fui jogador dele depois na Escócia e acabou por ser o Mark a dizer-me que o Bournemouth procurava um treinador que falasse várias línguas. O clube pretendia globalizar-se, pois é tipicamente inglês, a estrutura é tipicamente inglesa. O staff e os futebolistas são maioritariamente britânicos, o manager controla tudo até à equipa de sub-9. Eles procuravam alguém que participasse na construção dos treinos e na tal ligação ao Lema e ao Rico, atletas de língua espanhola.

E o Faria mandou o seu currículo?
Sim, mandei logo o meu currículo, pois tenho a licença de treinador da UEFA Pro. Fui chamado depois para uma entrevista, quando ainda jogava no Louletano. Estamos a falar em… inícios de setembro de 2018. O Louletano estava a par de tudo, claro. Um mês depois, a meio de outubro, fui contactado pelo Bournemouth e apresentei-me lá no início de novembro. Foi assim. Joguei no domingo e viajei para Bournemouth numa terça-feira, foi essa a minha transição muito rápida de futebolista para treinador.

Mas esta não é a sua primeira experiência como treinador.
Sim, antes de ir para o Bournemouth já treinava os sub12 do Louletano, acumulava isso com a função de futebolista. Na Escócia também treinei os sub20 do Livingston e do Airdrieonians, quando jogava nesses clubes.

Quando fez o último jogo pelo Louletano já sabia que viajaria para Inglaterra dois dias depois?
Não, não sabia. Pelo menos não tinha essa certeza. Já tínhamos as coisas apalavradas para eu me juntar ao Bournemouth em janeiro de 2019 ou no final da época. Mas depois houve um jogo para a taça que não correu bem e na segunda-feira, no dia a seguir ao meu último jogo pelo Louletano, ligaram-me a dizer para me juntar a eles de imediato.

Como celebrou essa entrada na Premier League aos 37 anos?
É um salto enorme… de jogador do Campeonato de Portugal e treinador de infantis para uma equipa técnica da Premier League. Eu aprendi no meu percurso profissional a não celebrar antes do tempo. Digo sempre isso. Só se celebra quando a assinatura está no papel. Celebrei com os meus pais, a minha irmã, a minha mulher e os meus filhos, mas não comuniquei a muito mais pessoas. Não queria fazer marketing sobre o meu futuro, antes de saber ao certo o que me esperava.

Como é um dia normal de trabalho do Faria no Bournemouth?
Muito diferente daquilo que era a minha vida como futebolista. Quando era futebolista era só chegar, tomar o pequeno-almoço, treinar, almoçar e desligar completamente depois. Como treinador estou a trabalhar dez horas por dia, às vezes mais. Chego ao clube às 7h30/8h00, participo na planificação do treino, fico a saber aquilo que é preciso montar no relvado, participo na edição dos vídeos individuais para os futebolistas hispânicos e ajudo em tudo o que é necessário no treino coletivo, nomeadamente na explicação de todos os exercícios ao Lema e ao Rico. A seguir almoço e da parte da tarde temos a análise de tudo o que foi feito no treino. Esta época tenho também a responsabilidade de observar a evolução dos sub18 e dos sub21. O treinador Eddie Howe queria alguém da equipa técnica da primeira equipa a fazer esse trabalho.

Hugo Faria quando ainda jogava em Malta e tinha de lavar o equipamento

As infraestruturas do Bournemouth são boas?
São boas, mas ainda um bocadinho aquém daquilo que é a média da Premier League. É um clube que subiu há poucos anos, que esteve para acabar e que foi muito revitalizado desde a entrada do treinador Eddie Howe. Vale a pena ver um documentário no youtube chamado ‘MINUS 17’, pois explica bem o que o clube passou. Temos três campos de treino, mas para a realidade inglesa ainda não é suficiente. Em Inglaterra as academias dos clubes são etiquetadas por categorias. As melhores – como a do ManCity ou do Chelsea – estão na categoria 1. O Bournemouth está na categoria 3, ainda faltam algumas coisas. Começámos a construir uma academia no ano passado, as obras estão a meio e esperamos chegar à categoria 2 quando a obra estiver pronta.

O treinador Eddie Howe é ainda jovem e uma longa ligação ao clube. É um homem com boas ideias?
Sinto-me enquadrado com a filosofia dele, sim. Tive o cuidado de pesquisar muito sobre o clube e o Eddie depois da primeira entrevista e ele é um dos maiores pilares da subida do Bournemouth à Premier League. Destacaria a maneira como transmite as suas ideias aos jogadores, a mensagem dele. Passa as coisas de uma forma muito clara. É sucinto e claro, não deixa dúvidas na cabeça dos atletas. E tem outras mais-valias, é um ótimo técnico.

A sua família está consigo em Inglaterra nesta fase difícil por culpa da Covid-19?
Agora estou em Portugal. Ninguém sabia quando o campeonato voltaria e a minha família estava longe de mim, por isso deram-me permissão no clube. O meu contrato é feito de ano a ano. Os meus filhos estão na escola aqui no Algarve e estou em teletrabalho, faço o meu trabalho para o Bournemouth à distância. Estou a aguardar o timing certo para voltar, talvez já para a próxima semana, pois os treinos coletivos foram agora retomados.

Estava em Inglaterra quando foi decretada a pandemia a 11 de março?
Sim, ainda estava lá, só viajei para Portugal em abril. Voltei e fiquei 14 dias de quarentena em Portugal. Ainda esperei umas semanas em Bournemouth, mas percebemos que o campeonato não voltaria tão rapidamente.

Foi fácil arranjar voo para Portugal?
Não, não foi. Tive de viajar primeiro para o Porto, depois para Lisboa e depois para Faro. Foi um dia de viagem, mas estou habituado a andar de avião (risos). Valeu a pena.

E como é a cidade de Bournemouth, no sul de Inglaterra?
Bem, não é o Chipre, não é a Grécia, mas a cidade é turística e tem cerca de 100 mil habitantes. É uma cidade sazonal, tem muita gente no verão. É um sítio acolhedor, muito diferente de Londres e Atenas. Tem pouco trânsito, tem praia e o clima não é tão mau como no norte de Inglaterra. Mas claro que não tem o sol algarvio (risos).

O ano passado acabaram em 14º, este ano a luta pela manutenção está mais difícil.
Não houve muitas mudanças no plantel, mas há alguns fatores que podem explicar os resultados desta época. Não é desculpa, mas temos tido muitos azares com as lesões. Houve jogos em que tivemos de substituir três dos defesas. Muitas lesões e todas ao mesmo tempo, lesões longas e graves. Tivemos de reajustar algumas coisas. Além disso, este ano não estamos tão fortes em casa. Era o nosso castelo, mandávamos lá, e esta época temos pecado um bocadinho nesse aspeto. Temos sido menos consistentes em casa. Mesmo assim vencemos o Chelsea por 1-0 e fizemos outros resultados muito bons.

Jogou em Portugal, na Roménia, no Chipre, na Grécia, em Malta e na Escócia. Teve sempre espírito de aventureiro?
Creio que sim e acredito que todas essas experiências me ajudam nesta fase atual. Estou a aprender no Bournemouth, tenho de crescer muito, mas concordo que esse meu percurso me pode ser muito útil. Carrego comigo muitas influências, mesmo que esses campeonatos sejam de segunda ou terceira linha. Aprendi muito em todos eles. A palavra chave é adaptação.

Não devem faltar boas experiências em cada um desses destinos.
Em Malta só havia três estádios e tínhamos de aquecer atrás de uma baliza antes do jogo; na Grécia não havia campo na cidade de Kalloni, onde vivia, e tínhamos de fazer 300 quilómetros para jogar no Olímpico de Atenas; os gregos eram muito aguerridos e agressivos no futebol, o povo britânico é mais respeitador; enfim, muitas experiências em países muito distintos. Espero poder passar esta riqueza aos meus futebolistas.

Dizia que o seu contrato no Bournemouth é anual. Pretende continuar no clube?
Estou muito feliz onde estou, sinto-me um privilegiado e o objetivo é manter o Bournemouth na Premier League. Depois disso… se ficar, fico com orgulho e vontade de ajudar e aprender. Se não ficar, partirei para outra e procurarei trabalho noutro sítio. Mas estou bem, motivado e cheio de vontade de ajudar o Bournemouth.

Faria com a camisola do ENP, em Chipre

Nasceu em São Brás de Alportel, no Algarve. Que memórias guarda da infância?
Hoje fala-se muito em futebol de rua, não é? Lembro-me de almoçar aos sábados e de estar a jogar das duas às oito da tarde no polidesportivo. Era o chamado ‘bota fora’, cinco contra cinco. Os meus sábados eram assim, sem responsabilidades e tudo gerido pelos jogadores, por nós. Era jogar também na rua de casa, até a minha mãe chamar para jantar. Ainda guardo esses amigos de infância. ‘Ó Hugoooo, anda jantar!’. São coisas que nunca se esquecem. Nunca fui um jogador tecnicamente evoluído (risos), mas esses jogos eram fantásticos.

Teve uma infância com liberdade e segurança.
Totalmente. Ia todos os dias para a escola a pé, mais de dois quilómetros. E a fazer as asneiras normais da idade. Atirar uma pedra a um sinal de rua, arrancar umas flores do jardim da vizinha. Coisas que não se fazem agora, mas completamente inofensivas.

Como se chamam os seus pais e o que faziam na época?
O meu pai chama-se Manuel Faria e era técnico de escritório. A minha mãe é a Célia Faria e era professora do ensino primário. Tive uma educação muito boa, cheia de bons exemplos. Tenho muito a agradecer aos meus pais.

Nunca se opuseram à entrada do Faria no futebol, digamos, mais a sério?
Não, nunca, mas eu tinha em casa uma professora (risos). Sempre quis mostrar à minha mãe que a escola também era importante. Cheguei a entrar na universidade, apesar de não ter terminado o curso. Espero vir a terminá-lo. Mas tinha 19 anos, estava sozinho em Leiria e precisava de outro acompanhamento.

Com que idade saiu de casa dos seus pais para jogar no FC Porto?
Tinha 15 anos, salvo erro. Era juvenil de segundo ano. Completei o secundário na Escola António Nobre, já no Porto. Sempre fui muito aventureiro, desde pequenino. Participava em campos de férias, tinha alguma bagagem. Para os meus pais foi um pequeno choque, mas encarei-o com naturalidade, até porque havia muitos algarvios no FC Porto. Vivíamos todos no lar do clube e não posso dizer que a adaptação tenha sido difícil.

Esteve dois anos no FC Porto. Algum dos seus colegas teve uma carreira mais mediática?
O Bruno Vale, nos juvenis. Nos juniores… Bruno Alves, Hélder Postiga, o Moreira que era um avançado muito bom. Acho que terão sido os que foram mais longe no futebol. Posso estar a esquecer-me de outros, mas desses lembro-me bem.

Quem eram os treinadores dessa equipa?
Tínhamos o Ilídio Vale como coordenador do futebol jovem e depois uma dupla técnica constituída pelos misters João Pinto e Vítor Pereira. Duas personalidades completamente diferentes, mas uma grande equipa técnica. O mister João tinha a capacidade de transmitir as suas vivências com emoção, sabia muito. O mister Vítor Pereira era o responsável pela organização e preparação de todo o trabalho, complementavam-se muito bem.

Ainda teve várias chamadas às seleções jovens.
Sim, quando ainda era sénior do Louletano, em 2003 e 2004, nos Sub20. Fui observado e chamado pelo professor Rui Caçador e estive em dois Torneios de Toulon [14 internacionalizações no total]. No Leiria ainda fui convocado para os Sub21, para um jogo contra Malta, mas não saí do banco.

Com tantos países no currículo, e tantos clubes, tem certamente muitas histórias engraçadas na carreira.
Há muitas e uma ainda é recente. Quando cheguei à Escócia em 2015, para jogar no Livingston, fui viver para uma zona boa. O país é muito civilizado e limpo. Muita natureza, ruas cuidadas. À frente da minha casa tinha três depósitos de lixo: um castanho, um preto e um azul. Não percebi muito bem os símbolos de cada um, mas percebi que não era para reciclagem. Decidi começar a colocar o lixo doméstico no azul. Fui colocando lá até ficar cheio, aquilo ainda era grande.

À volta não havia mais locais onde podia colocar o lixo?
A minha casa ficava um pouco isolada e não havia mais nada à volta. Só esses três depósitos com essas cores, ainda grandes. Os dias passavam e o azul já estava cheio. Tive de começar a encher o castanho. E depois enchi o preto. Passadas duas semanas, lá ia eu colocar o meu lixo e tinha os três depósitos lacrados. A câmara colocou umas fitas para tapar aquilo e uma placa a dizer «Cuidado: infetado com produtos bacterianos». Assustei-me e perguntei no clube o que podia fazer.

O que lhe disseram?
Que o azul era para depositar o lixo doméstico, o castanho era para colocar apenas folhas e ramos caídos das árvores e o preto para madeiras e plásticos. Às terças-feiras, pelas seis da manhã, passava sempre um camião da autarquia para levar o lixo. Tive de pagar uma multa bem alta por ter colocado o meu lixo doméstico em locais indevidos (risos).