Sair da zona de conforto é isto. Jorge Simão, 43 anos, largou a cidade do Porto e aceitou o desafio do Al-Fayha, na Arábia Saudita. Vive em Al Majmaah, cidade com 45 mil habitantes, e está rodeado pelo islamismo mais fundamentalista. 

Curioso e explorador, o ex-treinador de Sp. Braga e Boavista arrisca-se pelas ruas desconhecidas, mistura-se com o povo saudita e chega ao Maisfutebol com uma mão cheia de histórias extraordinárias. 

Um treinador português a espalhar a fé do futebol lusitano pelo mundo. 
 

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Porquê o Al-Fayha e a Arábia Saudita nesta fase da carreira?

Já há dois anos que tinha sido alvo de abordagens de clubes sauditas. Através de intermediários árabes. Nunca foi uma possibilidade que eu ponderasse seriamente, porque achava que era uma coisa muito fora do meu alcance mental. Entretanto, fui desejando cada vez mais internacionalizar a minha carreira e dar um passo para treinar lá fora. Se me perguntarem se a Arábia estava no topo das prioridades, tenho de ser honesto e dizer que não. Houve outras possibilidades, na Inglaterra e na Grécia, mas esta proposta intrometeu-se e foi ganhando força. Também pelas passagens recentes do Jorge Jesus, do Vítor Pereira, do Pedro Emanuel e agora do Rui Vitória e do Paulo Sérgio. Fui ganhando pontos de atração, falei muito com o Pedro Emanuel e senti que podia ser um bom passo. Dei este passo com grande consciência e muita vontade.

Quais foram os desafios mais inesperados nesta fase inicial?

Isto é o admirável mundo novo. As regras são iguais em todo o lado, mas o jogo aqui é muito diferente. O grande impacto, porém, tem a ver com as diferenças culturais. O país é muito marcado pelo islamismo e pelas cinco rezas diárias. Isso limita muito quem faz desporto de alta competição. Há ainda o Ramadão, as mulheres também são obrigadas a viver em submissão, a nossa cidade [Al Majmaah] é muito fechada, o choque cultural é grande. Fiz o meu trabalho de casa, preparei-me, mas há coisas que condicionam. Tive de desenvolver uma enorme capacidade de adaptação.

O plantel é composto sobretudo por jogadores sauditas.

Só é permitido ter sete estrangeiros. Em bom rigor, os jogadores sauditas são tecnicamente muito talentosos, dotados, gostam do futebol de toque e passe.

Como é um dia normal do Simão em Al Majmaah?

Aqui são mais duas horas e tento gerir a minha vida com os horários portugueses, porque a minha família ainda está aí. Em Portugal o meu ciclo de sono era meia-noite/sete, aqui é duas da manhã/nove, por aí. Acordo, como qualquer coisa, vou ao ginásio para manter a minha saúde física e mental, almoço e a seguir reúno com o meu staff. As temperaturas aqui são muito elevadas, agora estão 42 graus – a humidade é menor e aguentam-se melhor do que 30 graus em Lisboa -, analisámos o treino de ontem, definimos o novo dia e treinamos a partir das seis e tal/sete. Treinamos e jogamos sempre à noite. A seguir ao treino jantamos juntos, porque vivemos todos no mesmo hotel.

Tem sido fácil lidar com os dirigentes árabes?

Fui contratado por uma direção que, passado um mês, foi a eleições. E perdeu. Ah ah ah ah. Portanto, esta é uma nova direção. O presidente trabalhava nas modalidades do clube. É uma direção dinâmica, com jovens e com vontade de fazer coisas boas no clube. Querem quebrar com a instabilidade do passado, com demasiados treinadores e jogadores. Querem estabilizar o clube.

Onde coloca o Al-Fayha na hierarquia da liga saudita?

O clube está a fazer o terceiro ano na primeira liga. Fez um brilharete no primeiro ano, com um oitavo lugar, mas o ano passado foi muito difícil. Tiveram quatro treinadores e só no último jogo conseguiram a manutenção. Foi traumatizante para todos. Agora a ideia é fazer uma liga tranquila e desenvolver o clube para os próximos anos.

Na terceira jornada conseguiu empatar em casa do Al Hilal e com um golo de um português no último minuto.

Um golo fantástico do Arsénio, foi sim senhor. Temos cinco pontos e estamos a fazer o melhor arranque de sempre do clube. O arranque está a ser bom e temos esse empate em casa de um dos grandes da Arábia Saudita.

Levou o Arsénio (ex-Moreirense), o Assis (ex-Sp. Braga) e o Neto (ex-Moreirense). Como se estão a adaptar?

Não é fácil para eles. O clima influencia muito o jogo, o estado da relva também. Não é fácil recuperar de esforços intensos e já nem estou a falar da alimentação, do sono, da estabilidade familiar. A tendência é para melhorar. A maior parte já saiu do hotel e vai para casa, as famílias começam a vir cá e tudo isso é relevante para um profissional.

Teve oportunidade de estar já com o Rui Vitória e o Paulo Sérgio?

Já, já. Com o Paulo Sérgio vim logo no mesmo avião. Com o Rui estive na cerimónia de apresentação da liga saudita e falámos um pouco. Ele já tem mais tempo disto, com sucesso. Sabe o que é importante e a conversa foi produtiva para mim, principalmente para eu começar a perceber como lidar com as pessoas de cá, os sauditas.

Num país tão diferente não devem faltar boas histórias nesse aspeto.

Há muitas, há muitas. Eu sou muito curioso, explorador, gosto de andar na rua, ir ao mercado, estar com as pessoas e entrar nos sítios. Num dia de folga fui a uma mesquita, descalcei-me e pus-me no meu cantinho. Fiquei caladinho, estava na hora da reza a Alá. Passam-se 15 minutos, as pessoas começam a sair e um indivíduo vem ter comigo e puxa-me para fora da mesquita. ‘O que estás aqui a fazer? És muçulmano?’. Isto tudo em inglês. ‘Não sou muçulmano, mas gostava de ver e conhecer.’ Ele já um bocadinho agressivo…’E quem te mandou cá vir? Um jogador? Que jogador?’ Eu lá respondi e ele diz-me ‘ok, então amanhã vem cá às 12h30’. Sempre a agarrar-me na mão. Eu nem sabia se devia ficar assustado, mas saí de lá e disse que sim, que ia. Ele mandou-me a localização da mesquita, para não me perder, e lá fui.

E o Simão não teve medo?

Senti aquilo como um desafio. Voltei, andei à volta da mesquita e lá me apareceu o mesmo sujeito. Foi ao carro dele, pegou num saco e dentro do saco estavam sete livros novos sobre o islamismo. Perguntei-lhe para que era aquilo, claro. ‘Olha, não és muçulmano, mas eu vi-te aqui e se estás aqui é porque precisas de paz de espírito’. Achei o gesto fantástico. O homem foi-me comprar livros sem me conhecer de lado nenhum. Era um rapaz que trabalha em Riade e estava ali a passar férias, trabalha na Força Aérea.

O Simão leu os livros?

Claro. Quis perceber melhor a religião que me rodeia. Porque rezam, porque andam as mulheres tapadas, porque fazem a peregrinação a Meca… Adorei. Só contei esta história aos meus adjuntos.

Na gastronomia assustou-se com alguma coisa?

Estou aberto a quase tudo. Eles têm boa gastronomia, mas comem muito mal porque isto está repleto de cadeias norte-americanas. Há uma empresa dos EUA, a Arango, e 95 por cento da receita do país vem do petróleo. Há muitos trabalhadores americanos e os restaurantes americanos não podiam faltar. Os sauditas comem disso a toda a hora, incluindo os meus jogadores. Mas o país tem coisas boas, muitos vegetais, fruta, tudo muito barato.

É possível socializar em locais públicos em segurança?

Os árabes são muito emotivos e extrovertidos. A minha mulher veio cá e disse-me que eles são assim só comigo, porque me conhecem, mas eles são assim sempre. Há uma segregação grande entre homens e mulheres, apesar de as coisas estarem a mudar para a mulher. Durante o dia só vemos homens, as mulheres saem mais à noite, quando está menos calor. Há muitos jardins e à uma/duas da manhã saem de casa, os miúdos brincam nos parques e elas sentam-se a conversar nos jardins. Os restaurantes têm a single section e a family section, separam tudo. E noutros as mulheres não podem entrar. Num restaurante tive de comprar a comida porque a minha mulher não podia entrar. Não há teatros, não há cinemas, mas eu faço o mesmo que fazia em Portugal: penso em futebol o dia todo.

E dentro da equipa já viveu situações constrangedoras?

No primeiro jogo oficial fomos para aquecimento. Tudo é feito com muita antecedência, porque eles têm um conjunto de rituais muito variado. Fomos aquecer, voltámos ao balneário e eles foram rezar dez minutos. Os jogadores estrangeiros sentaram-se a ver e os sauditas, ali perto do jogo, estenderam a passadeira e rezaram. Aquilo é um estado meditativo, o foco é levado para longe do jogo. Isso tem implicações fortes na capacidade de concentração para o jogo. Tenho de me adaptar, não há outra hipótese. No início foi muito estranho. Mas, muito sinceramente, estou a desfrutar disto de uma forma incrível. Vivo num país fundamentalista e é uma experiência muito forte, mas as coisas estão a mudar a um ritmo alucinante. Lembrei-me de outra história, ah ah ah.

Então vamos ouvi-la.

Aqui cada saudita pode casar com quatro mulheres. E há jogadores meus que casaram e só conheceram a mulher no dia do casamento. Já imaginaram? E se ela for feia ou se achar feio o marido? Para nós é estranhíssimo. Dizem-me que confiam muito na opinião da mãe e das irmãs, porque são elas que escolhem. Estamos a falar de miúdos que viajam. Estivemos um mês em estágio na Holanda, o extremo oposto de abertura. Tive curiosidade para ver como eles reagiam a uma realidade radicalmente diferente.

E como foi?

Andámos na Red Zone de Amesterdão, queria ver como reagiam e aquilo não foi surpresa para eles, reagiram normalmente. Perguntei a um deles se não gostava que a esposa pudesse andar na rua à vontade, mas ele respondeu-me que os sauditas são muito invejosos e ciumentos. ‘Eu não me sentia bem se tivesse os meus amigos a olhar para a minha mulher’. Está muito enraizado neles. Não quero fazer juízos, porque também tenho as minhas crenças, mas analiso uma sociedade diferente. Eles também podem dizer que os ocidentais são depravados. Na mesquita onde entrei estava um miúdo de cinco anos, a idade do meu filho. Impressionou-me.

Falta saber como é que os seus jogadores gerem quatro casamentos.

Ah ah ah ah, pois. Pelo que me dizem, no máximo há duas esposas em cada casa, mas em secções separadas. Numa noite janta com uma e dorme com ela, na noite a seguir faz o mesmo com a outra esposa. Mas com as reformas do novo príncipe saudita, eles acreditam que tudo isso vai mudar. As casas são muito grandes, não há famílias só com um filho. Todas têm dez/12/20 filhos.

É preciso ter um perfil forte para viver numa sociedade assim.

Sou curioso e observador. A limpeza do hotel, por exemplo, é só feita por homens. São eles que me limpam o quarto e fazem a cama. Se não gostarmos e respeitarmos uma cultura diferente, é insuportável estar aqui. Eu gosto. Já descobri um sitio onde posso comprar peixe. O peixe é frito numa chapa e parece que fica carbonizado. Mas tira-se a pele é bom. O negócio é de um indiano. Gosto de explorar estas coisas.

E saudades de Portugal?

Só da minha família. Já fui duas vezes a Portugal, a minha família já veio 15 dias e vamos tentando gerir para atenuar a saudade. Claro que gosto de passear à beira-mar, comer um peixinho, beber uma cervejinha ou um vinho tinto. Na Arábia não há álcool, nem no hotel. Zero. No Qatar, por exemplo, os estrangeiros podem beber. Aqui não e dizem-me que posso ser preso se tentar passar na alfândega com garrafas de álcool.