A saída do Boavista em janeiro obrigou Jorge Simão a parar e a refletir. A carregar baterias. O treinador de 43 anos aproveitou para voltar a Nápoles e trabalhar, desta vez, com Carlo Ancelotti e as suas histórias. «Almocei com ele todos os dias, teve uma abertura fantástica.»

Maurizio Sarri continua a ser a sua grande referência - é um Picasso e o seu melhor quadro foi o Nápoles-, mas nesta entrevista ao Maisfutebol ainda há espaço para recordar os dias no Bessa. 

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Como foi a sua vida desde que saiu em janeiro do Boavista?


Esta profissão é tão absorvente que é importante haver um período de pausa no final de cada ciclo. Reflexão, introspeção, recuperação. Sinto isso. O Allegri disse o mesmo ao sair da Juventus. Tento aproveitar, conhecer outras referências, conversar, trocar experiências. É muito difícil sair de um clube e no dia seguinte entrar noutro. Já o fiz e é dificílimo. Doloroso, até.

Refere-se à troca de Chaves por Braga.

Num dia estava em Chaves e no dia a seguir estava em Braga com 25 jogadores novos. Eu sou um treinador que desenvolve laços de confiança, compromissos emocionais e isso demora tempo. Quebrar com isso é duro. Acho que isso demonstra muito do que é a minha filosofia como treinador.

É um treinador que cria relações fortes com o balneário?

Sim, para o bom e para o mau.

No Boavista chegou a falar em «casamento perfeito». O que correu mal no fim?

Gostei muito do clube, gostei da cidade e a minha mulher até está a morar no Porto. Ela é de Arcos de Valdevez e vivia em Lisboa. A envolvência, a história, a cultura do Boavista, tudo isso me conquistou. Houve uma empatia grande com jogadores, diretores e adeptos, senti o reconhecimento deles mesmo na saída. Mas o futebol são resultados e na segunda época eles não surgiram. Na viragem do campeonato, metade das equipas estava em pânico com o espetro da descida. A tolerância e a paciência foram diminuindo, principalmente porque desciam três clubes. Estava toda a gente assustada.

O Boavista faz um grande jogo em Braga, mas perde. Duas semanas depois o Simão estava fora do clube.

É verdade. Perdemos depois dois jogos no Bessa, contra Marítimo e Portimonense. O estádio estava nervoso, sentia-se essa tensão. A atmosfera era stressada e isso contagiou os jogadores, o jogo, as decisões. Tínhamos perdido o David Simão e o Rochinha, dois jogadores importantes, enfim. Foi assim.

Depois de ter estado em dois históricos de Portugal, como são o Braga e o Boavista, não teme que se tenha afastado em demasia ao ir para a Arábia?

Não penso muito nisso, honestamente. Tenho objetivos de carreira, sei o que quero fazer, mas nesta altura tinha uma grande vontade de ter esta minha primeira experiência internacional. Sei as competências que preciso desenvolver e veremos quais os títulos que conquistarei no futuro. A minha luz é o desenvolvimento de competências e chegar a um clube para ganhar títulos, mas com um percurso sólido e rico. Um percurso de que me possa orgulhar.

É por isso que é um admirador do Maurizio Sarri?

Para mim, o Sarri é uma inspiração. Começou nos distritais, teve uma mão cheia de despedimentos, não desistiu e deslumbrou toda a gente no Nápoles. Porquê? Nunca se desviou da sua ideia de jogo, independentemente de ter alguns insucessos. Ninguém chega ao Nápoles e faz o que ele fez se não tivesse estudado, experimentado e evoluído uma ideia clara. Fez três épocas com os mesmos jogadores e desenvolveu o seu jogo, mas no Chelsea já foi diferente. Em 15 dias parecia o Nápoles, mas foi-se afastando desse estilo. E na Juventus também vai ser muito diferente. Ele teve um ano duro em Inglaterra, levou pancada, foi obrigado a adaptar-se a um grupo de atletas diferente, um grupo de super estrelas. Nada a ver com o compromisso coletivo que tinha no Nápoles. Com super estrelas já não é assim tão linear. A forma como pressiona, como ataca, como faz o passe vertical, tudo isso lhe complicou a vida. E agora vai ter de lidar com mais um balneário difícil na Juventus. Olho para ele com muita curiosidade. O Nápoles do Sarri encheu-me completamente as medidas. O Sarri é um Picasso e o seu melhor quadro foi o Nápoles. Para chegar a isso ficaram muitas sebentas com lixo para trás.

Quando estagiou com o Sarri no Nápoles, o que achou dele?

Bem, é completamente diferente do Ancelotti, com quem estive agora antes de vir para a Arábia. O Sarri é só jogo, jogo, jogo, tarefas, treino, sistematização em todos os momentos. O Ancelotti é o oposto. Almocei com ele todos os dias, teve uma abertura incrível comigo. Para ele o que importa é o bem estar dos jogadores, adaptar-se a eles. Faz algum sentido. Estamos a falar de um treinador que já ganhou três Ligas dos Campeões, passou por PSG, Chelsea, Bayern, Milan, Real Madrid. Treinou todas as estrelas do mundo. E foi ele próprio um craque.

Ficou convencido com o que ouviu do Ancelotti?

Claro, já viu o currículo dele? Ele tem duas biografias, conheci até o autor de uma delas, e ele conta uma história genial. No período do PSG, o Ibrahimovic estava a jantar com mais alguns jogadores e, por volta da uma da manhã, tem uma ideia louca. ‘E se ligássemos ao Carlo para vir aqui ter connosco?’ Os outros ficaram com medo, disseram que o Ibra estava maluco, mas ele ligou e fez-lhe o convite. Passado um bocado, lá estava o Ancelotti a beber uns copos com os jogadores. Para mim, há uns tempos, isto era impensável: um treinador a beber copos com os atletas? Mas este homem tem o Ibra a dizer que ele foi o treinador que mais o marcou. Os jogadores nunca se lembrariam de ligar ao Sarri à uma da manhã, muito menos para beber copos. E o Sarri nunca iria. São dois grandes treinadores, que vivem o futebol de formas muito diferentes. O fundamental são as relações humanas, a capacidade de motivar, de agarrar no grupo.

É isso que idealiza para o seu futuro? Entregar-se totalmente aos seus grupos?

Eu entrego-me completamente aos meus plantéis. No Boavista tinha pessoas de outros clubes a ligarem-me e eu dizia ‘não me chateiem, estou bem’. Agarro-me muito aos projetos. Sou muito assim. Entrego-me ao presente para encontrar as melhores soluções no futuro.