Quase a completar o primeiro ano como diretor desportivo do PAOK, José Boto concede uma entrevista ao Maisfutebol. Aproveitando uma curta viagem a Portugal, o dirigente português faz um balanço do trabalho em Salónica, fala dos vários portugueses que jogam no clube e olha também para a Liga portuguesa.

Neste excerto aqui apresentado, Boto explica a mudança do Shakhtar para o PAOK, fala da realidade grega e faz um balanço do projeto que abraçou em dezembro de 2021.

MAISFUTEBOL: Está quase a fazer um ano que assinou pelo PAOK. Está em funções há dez meses, sensivelmente. Qual o balanço que faz?

JOSÉ BOTO: É um balanço positivo, tendo em conta o que foi pedido pelo dono do clube: renovar a equipa, tentando construir uma equipa que pudesse voltar às vitórias, mas ao mesmo tempo duradoura no tempo. Algo que não seja ganhar um ano e estar mais 10 ou 15 sem ganhar. Fiz aquilo que tenho feito nos outros clubes: ir buscar jogadores mais jovens, com potencial para que sejam já competitivos, mas que estejam também em desenvolvimento, e que possam tornar o clube sustentável. Esta foi a ideia que me foi passada, e é aquilo que gosto de fazer, aquilo em que me sinto mais à vontade a trabalhar. Temos uma equipa completamente renovada, com onze jogadores novos, mais três da formação que estão a jogar. É isso que estamos a fazer. Às vezes com alguns custos, mas no fim penso que as coisas vão resultar.

MF: Foi esse projeto que o levou então a trocar o Shakhtar pelo PAOK?

JB: Sentia-me perfeitamente bem no Shakhtar. Eu identificava-me com o clube, e o clube com as minhas ideias. Achei que o clube já tinha chegado a um ponto em que as coisas já andavam de forma automática, e eu precisava de outro desafio. Por outro lado, já havia rumores de que algo se podia passar na Ucrânia, e infelizmente veio a concretizar-se isso. Veio tudo contribuir para a mudança de clube, para um contexto completamente diferente. A Grécia é um contexto culturalmente diferente de tudo o resto na Europa, no que diz respeito ao futebol.

MF: Como foi também a adaptação ao país e à Liga grega, para além do PAOK?

MF: É um país com muitas semelhanças a Portugal. Na comida, no clima, nas pessoas até, na forma como levam a vida. Em termos de adaptação ao país não tive qualquer problema. Foi mais difícil a Ucrânia. Em termos do futebol, é diferente de tudo aquilo que eu conhecia. Têm uma mentalidade completamente diferente. Têm alguns pré-conceitos, algumas ideias pré-concebidas, que mesmo mostrando exemplos de países mais desenvolvidos, eles continuam a não entender. Existe uma rivalidade quase doentia entre clubes, o que faz com que a liga não se desenvolva muito, e isso paga-se na Europa. É a 17.ª liga, creio eu, o que, para um país que gosta de futebol, e que produz alguns talentos, é mau. Tem sido uma adaptação difícil, pois tenho ideias completamente diferentes, e muitas vezes tenho de lutar por essas ideias. Há alguma resistência à mudança.

MF: Tem sido fácil lidar com o presidente Ivan Savvidis?

JB: Sim. Apresentou aquilo que é a sua ideia para o futuro do clube. O clube tem todo o potencial para ser ganhador, até pela sua implantação naquela zona da Grécia, pelo fervor dos adeptos. Historicamente não tem conquistado muitos títulos, mas a ideia, mais do que ganhar um titulo já, é criar uma base sustentada de sucesso. É essa ideia que eu tenho vindo a tentar colocar em prática. Ter uma equipa mais jovem, segurar essa equipa quatro ou cinco anos, dar mais atenção à academia, onde há muito talento. O clube tem uma massa de adeptos impressionante, que nunca vi em lado nenhum, e eu trabalhei no Benfica. A paixão que a cidade tem pelo clube é algo que nunca tinha visto. Que nos ajuda muitas vezes, mas que, também, por alguma falta de entendimento, por falta de perceção do trabalho que se está a fazer, também coloca alguma pressão e negatividade neste processo. Isto vai demorar alguns meses para a equipa se consolidar. A equipa tem jogado o melhor futebol da Grécia, mas perdemos sete pontos nos últimos minutos. O que mostra que a ideia está lá, que há qualidade, mas falta consistência, que a equipa vai ganhar com o tempo. Aquilo que era preciso é que os adeptos tivessem alguma paciência, dentro do apoio que dão. Mas em três quatro ou cinco meses esta equipa vai deixá-los muito orgulhosos.

MF: Qual a relação entre o orçamento do PAOK e dos rivais?

JB: Para dar uma ideia, a nossa contração mais cara deste ano foi 1,8 milhões. E o Olympiakos e o Panathinaikos compram jogadores por 4, 5 ou 6 milhões. Também para mim foi uma adaptação. Estava habituado a contratar jogadores por 8 milhões, para esperar que jogassem dali a dois ou três anos.

MF: O PAOK ficou em segundo na Liga, o que acredito que seja visto como uma boa classificação, tendo em conta o histórico do Olympiakos nos últimos anos, e também porque na Liga Conferência chegou aos quartos de final. A espinha atravessada, nessa primeira época, é a final da Taça, perdida para o Panathinaikos?

JB: Por aquilo que representa o PAOK naquela zona norte da Grécia, a exigência é sempre ganhar. Todos os anos existe essa exigência. O clube ganhou a última vez em 2019, com uma grande campanha, e depois já não ganhou mais. É um bocado isso que estamos a tentar fazer: criar uma base sólida, lutar por títulos durante vários anos. Com estes passos que estamos a dar, penso que isso se concretizará.

MF: Esta época a equipa teve um início algo intermitente. Foi eliminada pelo Levski na qualificação da Liga Conferência e teve alguns deslizes no campeonato, mas agora até vem de uma vitória moralizadora sobre o Olympiakos. Como analisa o momento da equipa?

JB: A equipa começou bem, na Liga. Até pelo futebol apresentado. Mesmo após o choque da eliminação europeia. É algo que as pessoas têm de pensar no global: aconteceu com quase todas as equipas gregas. Mas foi realmente um choque para nós. Depois a equipa recompôs-se, teve mais três semanas de trabalho, que deram outro conhecimento entre jogadores e treinadores. Tirando o dérbi com o Aris, que é um jogo especial, e no qual o rival igualou-nos, realmente, em todos os outros jogos fomos superiores. Acabámos por entregar dois jogos nos descontos. E tivemos outro, com o Panathinaikos, no qual fizemos uma primeira parte fabulosa, e depois sofremos dois golos sem grande explicação, no início da segunda parte. Isso retirou um pouco de confiança à equipa. Esta vitória no reduto do Olympiakos, espero que venha dar essa retoma de confiança. Foi uma vitoria importante, por 2-1. Podia ter sido por mais. Há um penalti que ninguém entende. O Nélson Oliveira até brinca que eram dois penáltis, pois foi abalroado pelo defesa e pelo guarda-redes. O árbitro marca penálti e depois o VAR, que era o João Pinheiro, não sei porquê mandou chamar o árbitro e invalidar. Podíamos ter vencido por 3-1, mas é uma vitória que dá confiança para o resto do campeonato, até porque na Grécia há playoff. Dá confiança para a equipa crescer, com os jogadores que temos.

MF: Já disse que, ao trocar o Shakhtar pelo PAOK, deixou alguns pertences na Ucrânia, que planeava ir buscar mais tarde, e depois começou a guerra. Quando é que acha que será possível ir lá? Ou seja: consegue ver um fim para este conflito?

JB: Continuo a ter um contacto excelente com as pessoas do Shakhtar. Até nos foram buscar um jogador por empréstimo, um lateral direito. Continuo a falar com toda a gente, até com a minha empregada, que cuidava das minhas coisas. Por acaso até já recuperei esses pertences, que o Edgar Cardoso conseguiu levar as coisas para a Croácia, e depois enviou-me para Portugal. Mas claro que me destrói o coração ver as imagens do centro de Kiev, por exemplo, onde passava a maior parte do tempo. Sinceramente não vejo como isto se possa resolver, mas tem de se resolver, pois é um povo que merece a paz, merece ontinuar o seu caminho, como estavam a fazer.

MF: Fez lá muitos amigos, certamente. Alguns pediram-lhe ajuda por causa da guerra? Para ajudar a fugir ao conflito, para ajudar a acolher familiares? Lidou com muitos amigos em situações de desespero?

JB: Houve algumas situações que me tocaram, mas principalmente o orgulho daquela gente, que não é muito de pedir. Essa minha empregada, por exemplo. A sobrinha veio para Portugal, e tanto eu como o Edgar ajudámos, mas ela parecia sempre muito constrangida, pois não queria incomodar. É um povo com um orgulho muito grande. Isso faz com que não peçam coisas que precisam mesmo. O meu ‘chief scout’ é ucraniano, e na altura também foi preciso trazer a mulher e a cunhada para a Grécia. Houve mais gente que ajudámos, da forma possível.

MF: Como é que olha para o futuro da Ucrânia. Para o futuro do país, antes de mais, e para o futuro do futebol ucraniano, ainda que seja algo secundário neste contexto?

JB. Sim. É óbvio que o mais importante é a paz daquela gente, que possam voltar a fazer a sua vida normal. Relativamente ao futebol, que é a nossa área, é com tristeza que vejo um clube que tinha dado passos enormes para ter importância também na Europa, e vê agora a sua equipa desmantelada. É normal que os jogadores estrangeiros não quisessem ficar. A frustração daquela gente, que estava a construir algo importante, e agora tem de abrir mão do que construiu. Mesmo aquilo que estão a fazer, com a Liga dos Campeões, só com jogadores ucranianos, mostra a qualidade do trabalho na formação do Shakhtar, e representa também o orgulho daquele povo. E sei que, quando tudo normalizar, o Shakhtar vai voltar a ser o clube que era.