José Gomes teve esta época a primeira experiência como treinador principal na Liga, ao comando do Rio Ave, e a meio da temporada mudou-se para Inglaterra, um sonho de sempre. Acabou a festejar a manutenção do Reading e a ver o Estádio Madejski vestir-se com as cores de Portugal para o saudar.

Em entrevista ao Maisfutebol, o treinador português fala sobre a experiência no Championship, um campeonato difícil e muito diferente da Premier League: «Até parece que têm regras diferentes.» Conta como foi inesquecível jogar em Old Trafford poucos dias depois de chegar e explica por que mudou quase todo o plantel em janeiro – saíram 14 jogadores e entraram cinco por empréstimo.

Fala sobre a competitividade do Championship, onde «20 das 24 equipas assumem que querem subir», da forma como se tenta equilibrar o campeonato através do fair play financeiro e como isso está neste momento a afetar a preparação da próxima época do Reading, com o clube sob um embargo de inscrições.

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Esta época chegou finalmente a Inglaterra. A experiência confirmou toda a expectativa que tinha em relação ao futebol inglês?

Sem dúvida. Estádios quase sempre cheios, apesar de ser segunda Liga e de não serem todos estádios muito grandes. Vamos imaginar o estádio do V. Guimarães, como valor médio da lotação. Vamos imaginar todos os jogos, os 46 jogos de cada época, com o estádio do V. Guimarães cheio. É espetacular. O jogo todo a cantarem, a puxarem… Os visitantes trazem entre 1500 e 6 mil, 7 mil adeptos. É quase uma devoção ao seu clube e ir ver o jogo faz parte do planeamento do fim de semana: onde é que o nosso clube vai jogar? É fantástico. Embora não se possa comparar as características do jogo do Championship e da Premier League. Às vezes até parece que têm regras diferentes, tal é a permissividade dos árbitros.

Que diferenças são essas?

O contacto físico é muito mais evidente. Faltas que em Portugal às vezes seriam até a roçar o cartão amarelo, lá não são assinaladas sequer. O jogo não pára, é uma intensidade muito grande.

O Championship ainda tem muito aquele jogo físico que se associava tradicionalmente ao futebol inglês?

Tem. Sem dúvida. Aproxima-se muito mais do típico futebol inglês do que do futebol da Premier League.

Dizem que é um dos campeonatos mais competitivos do mundo. É mesmo?

É. Muito competitivo e muito equilibrado. Antes do início do campeonato, os treinadores, jogadores e dirigentes de 20 das 24 equipas vão assumir que querem subir. Ao assumirem, significa que está associado um investimento para que isso possa acontecer. Há uma tentativa de equilibrar as coisas a nível financeiro com o fair play financeiro. Nós mesmo neste momento estamos com um embargo de inscrições. Mesmo que o dono queira - e quer, e tem poder financeiro -, a Federação não permite injetar dinheiro no clube, para que as coisas sejam realmente equilibradas.

Isso resulta do facto de as contas do Reading não cumprirem os requisitos do fair play financeiro?

Todos os clubes têm que mostrar à Federação que têm sustentabilidade, que não estão a viver à custa do investimento de capital dos donos. Para que, se os donos por qualquer razão decidirem abandonar, o clube não fique em maus lençóis. Portanto, o clube tem de provar que tem receitas. E não pode gastar mais do que as receitas que tem. É um organismo de controlo, que às vezes é desagradável, como agora. Temos que vender, temos que fazer dinheiro, e temos que procurar com alguma engenharia financeira forma de deixar que o dono possa ajudar também. No fundo, garante a solidez dos clubes em Inglaterra. De três em três meses há auditorias financeiras. Se há clubes com esquemas que se considere que não passam de  maquilhagem financeira por parte dos donos os clubes são avisados, têm que equilibrar a situação e se não cumprirem retiram-lhes pontos, como fizeram esta época ao Birmingham. Quando fizeram isso o Birmingham estava muito perto dos lugares que davam acesso ao play-off de subida, e de repente viu-se na luta pata não descer.

Isso já se refletiu em janeiro? Quando chegou mexeu muito na equipa, no mercado de inverno, mas foram buscar apenas jogadores por empréstimo. Como foi esse processo de mudança profunda do plantel?

O que aconteceu é algo que também não conseguimos aprender em nenhuma universidade e em nenhum curso de treinadores. Cheguei, assisti a um jogo na bancada no dia 22 de dezembro, sábado, no domingo mantive a folga que estava planeada, para conhecer as instalações do clube, e depois passado oito treinos já tinha jogado quatro jogos oficiais. Foi duríssimo, jogar de de três em três dias, até menos que isso, quando ainda estava a aprender o nome dos jogadores.

Como é que se gere isso?

É difícil. O treinador tem que desenvolver capacidades de leitura e de timing das decisões que tem de tomar. O staff que veio comigo, todo ele português, ajudou muito. Mas ao fim de três, quatro dias, já estávamos a colocar de parte alguns jogadores, seis ou sete. E depois em janeiro saíram no total, no mercado de Inverno, 14. É uma coisa muito pouco comum.

Porque é que sentiram necessidade de fazer essa mudança tão profunda?

Primeiro por razões, digamos, sócio-métricas no seio do grupo. Achámos que aquilo não estava bem, havia ali alguns focos de conflito. Como entrámos completamente no meio da guerra não há tempo para tratar as feridas. É remover completamente. E foi o que fizemos. São decisões duras e difíceis. Mas teve de ser, para bem do grupo e dos objetivos que queríamos atingir. Eu diria mesmo que foi determinante termos tomado essas decisões. Saíram 14 e repusemos com cinco jogadores emprestados.

Entre eles o Nélson Oliveira.

Entre eles o Nélson Oliveira, que veio acrescentar muita qualidade e foi muito importante. Apesar do azar que ele teve, uma lesão que é uma coisa raríssima de acontecer. Foi pisado, acho que essas imagens circularam. Pisaram-lhe a face, abriram-lhe a cara toda, fraturou o nariz em quatro sítios. Contra a decisão dos médicos ele quis jogar com uma máscara e jogou e marcou o golo decisivo ao Blackburn.  Foi muito importante. Depois voltou a lesionar-se e quando o médico disse que ia demorar 10 semanas ele fez tudo para recuperar e ao fim de 20 dias já estava a jogar. Depois voltou a lesionar-se mais tarde, mas foi tudo uma sequência… Ele não tinha jogado no Norwich, estava sem jogar, uma tensão muito grande. Mas é um jogador com muita qualidade e que nos veio ajudar muito.

Poucos dias depois de chegar foi logo a Old Trafford jogar com o Manchester United para a Taça de Inglaterra...

Foi na fase boa do Solskjaer. Nós deixámos uma belíssima imagem de futebol de qualidade. Fizemos mais remates, tivemos mais bola, controlámos o jogo. Mas contra estes jogadores os erros pagam-se com golos e foi o que aconteceu. Num estádio lotado, com três mil adeptos que viajaram de Reading para Manchester a fazerem-se ouvir no estádio, uma coisa que vai ficar para sempre na memória. Já tinha jogado em Old Trafford, já lá tinha empatado com o FC Porto.

Foi de qualquer forma uma experiência nova, é diferente estar no banco como treinador principal ou como adjunto, não é?

Sim. Em duas semanas, ou semana e meia, tinha jogado com o Belenenses no Estádio dos Arcos, com menos de duas mil pessoas, e depois estou em Old Trafford e só do Reading estavam três mil, num total de 73 mil. Um estádio lindíssimo com um ruído permanente de apoio. Aquilo é que é o futebol inglês, o sentir o jogo. Há uma falta ou uma jogada perigosa e ouve-se o ruído da bancada. É também por isso que quase todos os treinadores dizem que um dos sonhos que têm é jogar em Inglaterra, porque é o futebol muito mais próximo da sua origem. Uma coisa curiosa que acontece em Inglaterra é que só há uma bola. E realmente na origem do jogo só há uma bola, quando se vai jogar para a rua só há uma bola. Só há aquela, espera-se que venha. A não ser que vá para fora do estádio ou que fure e o quarto árbitro vai buscar outra que tem num saco. Tem de se esperar que a bola volte, mas não é muito tempo, aquilo não pára. Até porque os adeptos não gostam, e não aceitam, que intencionalmente se mate o jogo perdendo tempo. Enquanto por exemplo, na Europa do Sul pode ser aplaudido um pequeno toque em que o jogador caiu, ganhou a falta, lá é assobiado. Um jogador que desde a bancada se perceba que se deixou cair para tentar ganhar a falta é assobiado. Muitas vezes até pelos seus próprios adeptos, não gostam.

A época no Reading terminou com a iniciativa de chamar ao último jogo da época «Dia de Portugal», em sua homenagem. Foi uma relação forte que criou em tão pouco tempo, não foi?

Acho que começou no momento em que cheguei ao clube e começámos a ver casas para viver. Mostraram-me várias vilas a 60, 40, 20 km. E eu escolhi viver no centro da cidade. Contra o conselho de todos. ‘Aqui vai ser complicado os adeptos estão aqui…’ E eu disse: ‘Nós estamos numa situação muito difícil e eu quero mesmo estar em contacto com os adeptos, para o bem e para o mal.’ E andei sempre na rua, era interpelado por adeptos. E a ideia era essa, sentir o pulsar do clube, as preocupações das pessoas, como é que vivem o clube, estar com eles. Terá começado aí. Depois os resultados também. Era uma equipa que não ganhava dois jogos seguidos há dois anos e tal. E nós em 18 jogos só perdemos quatro. As pessoas também foram acreditando e foram percebendo o trabalho que estava a ser feito. Mas eu nunca pensei que a iniciativa fosse ter aquela dimensão. Pensei que ia haver dois ou três amigos que comprassem uma bandeira e pronto. Chegar ao estádio e parecer que estava a ver um jogo da seleção portuguesa, pessoas com a cara pintada, bandeiras, cachecóis, foi emocionante. Não estava a ver os ingleses a segurarem a nossa bandeira. Uma coisa incrível. Havia um senhor vestido de corpo inteiro com uma garrafa de vinho do Porto. O gargalo era um chapéu, a marca era Gomes, e dizia engarrafados em Matosinhos, o local onde nasci. Foi gratificante e extraordinariamente emocionante.