No dia em que volta a treinar com o plantel do Mónaco, após dois meses parado devido a um problema físico, Gelson Martins arranja tempo para falar em exclusivo ao Maisfutebol.

Não é segredo para ninguém: Gelson é um homem reservado, pouco confortável com o mediatismo, prefere treinar, jogar e seguir para casa. Evita entrevistas, mais por timidez do que por outro motivo qualquer.

Mas este é um momento importante e Gelson sabe-o. A temporada está a entrar na reta final, o extremo internacional português voltará a competir em breve e a Seleção Nacional é um prazer que tem vindo a ser adiado há mais de dois anos.

Ao mesmo tempo, em Lisboa, outra das paixões de Gelson Martins aproxima-se mais do que nunca do campeonato nacional. O Sporting Clube de Portugal. Gelson jogou quase uma década de leão ao peito e saiu em 2015, na sequência dos graves incidentes de Alcochete.

Não pretende voltar a esse dia traumatizante, mas fala com amor do clube que o projetou no futebol profissional. Cabo Verde, São Marcos, Amadora, o Futebol Benfica e o Sporting, cinco pontos cardeais obrigatórios na vida e na carreira de um homem muito educado, de sorriso fácil e respostas sinceras. Curtas e sinceras.

Gelson Martins, 25 anos, em discurso direto.

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Maisfutebol – Não joga desde o dia 9 de janeiro. Em que ponto está a recuperação?

Gelson Martins – Treinei hoje [segunda-feira, 15 de março] pela primeira vez com o plantel, sem limitações. Tem sido difícil estar tantas vezes parado, mas sinto que ainda vou a tempo de fazer coisas importantes até ao final da época.

MF – Teve de enfrentar uma suspensão de seis meses, mas voltou bem e estava a fazer uma temporada de ótimo nível. Têm sido demasiados percalços?

GM – Alguns, é verdade. Não foi fácil lidar com esse problema disciplinar, mas é verdade que reencontrei o meu futebol e estava bem até me lesionar em janeiro.

MF – Chegou ao Mónaco há dois, em janeiro de 2019. Que tipo de vida leva numa das zonas mais excêntricas e luxuosas de França?

GM – Viver no Mónaco é fabuloso, é top. O Principado é maravilhoso, é tudo bonito. Mas é muito mais tranquilo do que as pessoas possam imaginar. Tenho uma vida pacata e nem sinto grandes diferenças em relação a Portugal, porque há aqui ao lado uma vilazinha com muitos portugueses e parece que estou em Lisboa. Todos os sítios que frequento têm um português, alguém com quem posso falar, sinto-me muito bem. É uma zona espetacular para viver.

MF – A sua casa é mesmo no Mónaco ou nessa vilazinha onde há uma grande comunidade portuguesa?

GM – Vivo mesmo no Mónaco. Os futebolistas estrangeiros têm obrigatoriamente de viver cá. Mas o Mónaco é muito pequeno e essa zona de emigrantes portugueses fica a cinco minutos. Há muitos restaurantes com boa comida portuguesa e costumo ir lá com a minha família, por isso é como se estivesse em casa.

MF – Não faltam nomes famosos com residência no Mónaco. Costuma cruzar-se com atores, pilotos de Fórmula Um ou músicos no seu dia-a-dia?

GM – Às vezes, sim, é verdade. Mas eu nem conheço muita gente famosa (risos). Pode estar ao meu lado e eu nem sei quem é. Mas sim, há muitos visitantes e muitos deles são famosos. Agora com a pandemia está tudo mais parado. Antes ainda havia aqui outras competições desportivas que arrastavam muita gente. O Torneio de Monte Carlo, de ténis, o Grande Prémio do Mónaco, de Fórmula Um, tudo isso dava muita vida a esta zona.

MF – O Gelson gosta de Fórmula Um? Seguiu as corridas ao vivo nos últimos anos?

GM – Por acaso não ligo muito. O ano passado consegui ver porque da minha casa vejo o circuito, mas não é algo que me fascina. Além do futebol, o único desporto que sigo com alguma atenção é o basquetebol, a NBA.

MF – Nasceu em Cabo Verde e saiu de lá com oito anos. Ainda tem memórias do seu país de origem?

GM – Não tenho muitas lembranças. Tive uma infância difícil, a vida em África não é fácil e o meu contexto familiar também não. Os meus pais tiveram de emigrar para Portugal, em busca de melhores condições, e eu fiquei em Cabo Verde com as minhas tias e os meus irmãos. Muita bola, escola, as coisas normais de miúdo até viajar para Portugal aos oito anos, sim. Juntei-me aos meus pais e passei a ter uma vida diferente.

MF – Vivia mesmo na cidade da Praia, a capital?

GM – Nasci na cidade da Praia, mas a minha casa era em Santiago, mais no interior da ilha.

MF – Um irmão seu, o Vítor, também era futebolista. Jogou consigo no Futebol Benfica. Ele ainda está ligado ao futebol?

GM – Não, não. Deixou há alguns anos e agora está a trabalhar, a fazer a vida dele.

MF – Como é que um menino de oito anos reage a uma mudança de país? Teve um impacto forte em si?

GM – No princípio custa sempre, mas a mudança foi boa. Conheci uma realidade nova. Estava junto dos meus pais e isso é o que eu mais queria. Houve coisas boas, coisas más, os meus pais fizeram tudo para que não passássemos problemas. Sempre fui um miúdo tranquilo, nunca me desviei e nunca dei grandes trabalhos aos meus pais.

MF – Para que zona foi viver quando chegou a Portugal?

GM – Fui viver para São Marcos, em Lisboa. Estive lá uns aninhos e depois mudei-me para a Amadora.

MF – É verdade que o Robinho era o seu ídolo de infância?

GM – Sim, sim, sempre gostei muito dele (risos). Passava os dias a ver os vídeos dele, a forma como fintava. Era o futebolista que mais gostava.

MF – E em que altura surge o Futebol Benfica na sua vida?

GM – Muito depois de chegar a Portugal. Fui para o Fofó já com 14 anos. Passei muito tempo só a jogar na rua e depois fui jogar futsal. Certo dia um amigo meu da escola convidou-me para ir às captações do Fofó e fui com ele. Eu só conhecia o futebol de rua, fui para lá com um bocado de medo, não sabia como ia reagir. Experimentei o futebol de 11 e adorei, já não quis mais nada.

MF – Com 14 anos, já havia no Gelson o desejo de ser futebolista profissional?

GM – Não, não. Jogava apenas por gosto, para passar o tempo, para não estar a fazer coisas erradas. Era o que gostava. Não pensava em ser jogador, no contexto onde estava não era fácil. Não estava no Sporting, no Benfica, não era simples sonhar em ter sucesso.

MF – Fizemos uma reportagem sobre o Gelson há uns anos e todos os seus antigos treinadores se referiam a si como «muito reservado, tranquilo, fácil de lidar». Nunca foi uma criança problemática?

GM – Acho que eles têm razão (risos). Sempre fui assim. Reservado, tranquilo, gostava de aprender e ouvir. Sabia comportar-me, estava muito focado e queria fazer as coisas bem.

MF – Os seus pais sempre o apoiaram na opção pelo futebol?

GM – Eles trabalhavam muito. De dia e de noite. Não tinham muito tempo para me acompanhar no futebol. Sabiam que eu jogava, mas não davam grande importância. O futebol era só uma coisa que eu fazia depois da escola e eu era só um miúdo que ia ao treino de futebol. Nunca levantaram problemas.

MF – E sempre de autocarro para trás e para a frente.

GM – Sim, essas viagens eram famosas. Tenho saudades desses tempos. Era muito inocente, não pensava em mais nada além do futebol. Tudo era diferente, mas também temos de saber crescer.

MF – Como é que o Sporting o descobriu?

GM – O Fofó fez um jogo contra o Sporting e ganhou 1-0. Em nossa casa. Joguei bem e no final do jogo uma pessoa do Futebol Benfica disse-me que tinha havido um convite para eu ir lá fazer testes. Tudo correu bem, acho que mostrei o meu valor, e acabei por assinar.

MF – Chegou ao Sporting nos juvenis. O futebol passou a ser algo mais sério para si?

GM – Muito mais. Passou a ser muito diferente. Mais competitividade, mais pressão, outras condições. Não tinha nada a ver. Fui recebido pelo sr. Aurélio Pereira, foi a pessoa mais importante para mim. Respeito-o muito, sempre se preocupou comigo. Mesmo depois de eu sair do Sporting mandava-me mensagens a perguntar por mim, se estava tudo bem. É uma pessoa que respeito muito.

MF – Está surpreendido com o campeonato do Sporting este ano?

GM – Estou surpreendido, porque têm feito um grande campeonato. Tenho visto os jogos, espero que tudo possa correr bem até ao fim e que o Sporting consiga este título, que tanto merece. Só desejo muita sorte para que alcancem o campeonato que já há demasiados anos não conseguem. Este ano está mais perto e penso que vai ser possível ver o meu Sporting campeão.