Cinco vitórias e três empates, oito jogos sempre a pontuar no competitivo Campeonato Carioca. João Mota, 54 anos, é o treinador do Tigres e está a destacar-se no Brasil. O Maisfutebol reencontrou o homem que se formou no Barreirense e no Sporting, que jogou na I Divisão Nacional e que foi internacional em vários escalões, incluindo a extinta Seleção B, depois do Mundial de 1986.

A três jornadas do fim, o Tigres tem um ponto de vantagem sobre o Ceres e o 7 de Abril. Depois de uma primeira experiência nos juniores do Farense, entre 2008 e 2011, João Mota tem trabalhado, exclusivamente, no Médio Oriente e no Brasil. Uma entrevista cheia de boas memórias e de um discurso carregado de ambição. Há mais um treinador português a brilhar no Brasil.
 

Maisfutebol - Tigres do Brasil. Que projeto é este?
João Mota - Bem, antes de mais é importante dizer que eu estava na Arábia Saudita, à frente da seleção de sub20, no início de 2020. Até que apareceu a pandemia. Voltei para casa, para São Paulo onde moro, e surgiu este convite. Assumi o comando em outubro. Estou há seis anos radicado no Brasil e senti que tinha de criar resultados. Temos condições incríveis de trabalho, um estádio bonito e seis campos de relvado, tudo dentro do centro de treinos, em Duque de Caxias. Mas as coisas estão meio abandonadas, fruto de más gestões. Queremos subir à divisão B1 do Carioca. A primeira volta não foi como eu queria, mas os resultados estão a ser melhores, estou com um plantel mais forte. Estamos numa fase de oito jogos sem derrotas [cinco vitórias e três empates].

Como é que surgiu essa ligação com o Brasil?
A minha esposa é brasileira. Quando estava a trabalhar nos Emirados Árabes Unidos, conheci a minha esposa que é irmã de um colega que era treinador dos guarda-redes. Ela tem uma carreira de 20 anos ligada à medicina e decidimos que era melhor para ambos viver no Brasil. No futebol posso trabalhar em qualquer lado do mundo. Cheguei como um desconhecido, mas tenho feito trabalhos interessantes, tenho sido preletor em alguns cursos e começo a sentir-me realizado. Falta estar num clube com mais visibilidade.

O treinador português é bem visto no Brasil?
Quando cheguei cá, em 2014, havia ainda desconfiança em relação ao treinador estrangeiro. «Nós é que somos pentacampeões mundiais e tem de vir um cara de fora para ensinar?» Com o tempo, os responsáveis começaram a perceber que as metodologias de trabalho tinham de mudar. Mais recentemente veio o Jorge Jesus, o professor Jesualdo também fez um bom trabalho e agora está aí o Abel Ferreira em grande. Com o Sá Pinto… fiquei apreensivo, porque no Brasil não gostam do futebol mais defensivo, tático. No Brasil há coisas boas e más, é um país do oito e do 80. Temos de perceber a mentalidade, a filosofia. Tenho de admitir coisas que em Portugal não admitiria. A alimentação, a postura no balneário. Às vezes é um barulho, uma música infernal.

João Mota durante um treino do Tigres (FOTO: assessoria de imprensa do treinador)

Tem de ser mais flexível e tolerante.
Sim. A minha relação com os jogadores é fantástica, o pior é fazer a gestão das coisas. O Brasil tem o melhor produto futebolístico do mundo, há uma relação fantástica com a bola e uma péssima relação com o jogo. Por isso se fala tanto dos problemas de adaptação à Europa. Mas não são jogadores preguiçosos, nunca senti isso. Quero deixar nos meus jogadores um legado forte, uma imagem boa. Sou um treinador de detalhes, que vai ao pormenor. Trabalho com eles a colocação do corpo, os apoios. Eles nunca tinham trabalhado isso na vida. Mas são pessoas abertas e recetivas.

E os dirigentes?
Já tive problemas. Um deles, noutro clube, veio ter comigo e perguntou-me se não fazia um coletivo. Coletivo é o treino de conjunto, um 11 para 11. Eu não faço coletivos. Aliás, faço todos os dias isso em campos reduzidos, para aumentar a velocidade e obrigar a pensar depressa. Neste nível médio/baixo são obcecados com o trabalho físico e o tal treino de conjunto. A mentalidade é essa. Esse mesmo presidente, no Rio Branco, também não aceitava que os treinos durassem hora e meia. Só queria treinos de três horas, enfim. Tínhamos um aproveitamento de cem por cento.

Esteve no Aparecidense, no Guarulhos, na Portuguesa e no Rio Branco do Acre. É assim?
E tive uma passagem pequena pelo Operário de Mato Grosso. No Acre vieram ter comigo e disseram que o dinheiro tinha acabado. Depois de empatarmos 2-2 contra o Bahia. Fizemos um grande jogo, um grande campeonato. Pagaram-me tudo, foram honestos, mas tive de sair. Depois ainda fui aos sub20 da Arábia Saudita e regressei em 2020 ao Brasil. Acredito que posso fazer história com o Tigres.

O Elvas - João Mota numa caderneta de cromos da época 86/87

Em Portugal só treinou o Farense.
Só, só. Passei a treinador, trabalhei nas camadas jovens do Farense, subi aos seniores com o João de Deus, atual adjunto do Jorge Jesus, e saí. Comecei a trabalhar no Médio Oriente e já não voltei, mas tenho os meus filhos em Portugal e vou sempre que posso.

Como é um dia normal em Duque de Caxias?
Vivo no Centro de Treinos, vivemos em chalés individuais. Estamos perto do Rio de Janeiro e já conheço quase tudo lá. Agora saio pouco, também por culpa da pandemia. Não me meto no meio do povão (risos). A minha cabeça não descansa, estou sempre a preparar qualquer coisa. Ainda agora estava a ver vídeos e a ver o que é possível melhorar.

A restante equipa técnica é toda brasileira?
Não, consegui trazer o André Anastácio [ex-adjunto de Vilafranquense e Alverca, e treinador dos sub19 do Torreense] para cá. Está a passar uma aventura, porque isto financeiramente é quase zero. Ele está quase a pagar para trabalhar, é um excelente profissional. Pela primeira vez, tenho um adjunto que pensa como eu e trabalha como eu. Os jogadores adoram-no. Devo muito ao André. Finalmente posso entregar a equipa a alguém e sei que está em boas mãos. Ele é casado, está sem a esposa, não é fácil para ele. Agora jogamos de três em três dias, o campeonato acaba em janeiro [dia 16].

João Mota está com o Tigres na liderança do Carioca B2

Quais são as duas ideias principais enquanto treinador?
Começa tudo com o respeito e o entendimento pelo ser humano. Digo sempre que tem de haver uma boa relação com os atletas. Não é o número 9 que chuta. É o Douglas, que é casado, tem filhos e problemas. Gosto de defender longe da baliza, gosto de equipas organizadas. Na construção, quero uma construção limpa, feita com atletas técnicos. Adoro atletas com técnica e velocidade. É o mais importante. Não sou muito de tiki taka. No Tigres, por exemplo, tenho atletas rapidíssimos na frente. E tenho de lhes dar isso. Fico muito nervoso quando não tenho a bola. E quando não a temos, temos de conquistá-la. Sem bola, a minha equipa tem de estar junta, compacta. Não podemos estar desequilibrados. O Vítor Pereira disse que temos de tirar ao adversário aquilo que ele gosta. E é muito assim, como num jogo de xadrez.

O João ainda fez duas temporadas como futebolista na I Divisão.
Exatamente, n’O Elvas e no União da Madeira. Joguei n‘O Elvas emprestado pelo Sporting, porque havia uma excelente relação entre o João Rocha e o presidente d’O Elvas. Fiz uma grande época no Alentejo, cheguei à seleção de esperanças. Depois o Sporting ainda me convidou a renovar por duas épocas, mas como tinha sido emprestado duas vezes, acabei por recusar. Achava que tinha o rei na barriga (risos). Por isso voltei ao União da Madeira, já sem contrato com o Sporting. Fomos campeões na II Divisão e subimos de divisão.

Jogar no Alentejo em 1986 deve ter sido uma boa experiência.
Fui muito bem tratado e quando fui convocado para a seleção lembro-me daquela malta toda me dizer que isso já não acontecia há 32 anos. Deste os tempos do histórico Domingos Patalino.

O João nasceu em Lisboa?
Nasci no Lumiar, num bairro de barracas, perto do aeroporto. Tinha sete irmãos, muitas dificuldades financeiras. Até fome passei, digo-o sem grande alegria, fui parar ao sanatório. O meu irmão também foi futebolista, o Motinha. Jogou no Sporting e comprou uma casa à família no Barreiro. Foi ele que nos deu melhores condições. Aos 12 anos a minha mãe disse-me que a escola não dava dinheiro e tive de ir trabalhar. Se hoje sei falar algumas línguas e tenho alguma cultura, não foi pela escola. Foi pela minha experiência de vida.

E como aparece o futebol na vida do João?
Aos 11 anos fui treinar ao Barreirense. Nos seniores jogava o Neno, por exemplo. E o Jorge Plácido. Fui de autocarro com os meus amigos, só queria ver o treino, mas de repente o treinador puxou-me e que já estava dentro do campo. Lá treinei e quiseram que eu assinasse pelo Barreirense. Levei os papéis para os meus pais. O meu pai não deixou e falsifiquei a assinatura dele (risos). Fiquei seis anos no Barreirense, até ir para a melhor escola do país, a do Sporting. Fiz um ano nos juniores e o mister John Toschak quis logo que assinasse dois anos de contrato. Treinei com o Damas, Jordão, Manuel Fernandes, Jaime Pacheco, Sousa, Gabriel, estes últimos todos do FC Porto. Era só cobras (risos). E eu um garoto, a treinar com eles. Fui emprestado porque era impossível jogar nessa equipa.

Quem eram os outros centrais?
O Morato no auge, o Venâncio, o Zezinho… e havia outro, não me lembro quem era. Fui emprestado ao União da Madeira e ao Elvas. Ainda me desentendi com o Manuel José. O Sporting foi jogar a Elvas, os jornalistas falaram comigo e eu disse-lhes que o presidente do Sporting queria que eu ficasse e o treinador não quis. No dia do jogo, o Valdemar Custódio, adjunto do Manuel José, veio falar comigo e disse-me que ele estava furioso. Eu era miúdo, tinha pouca cabeça. O Manuel ficou zangado comigo, um dia mais tarde nem me quis cumprimentar. Saí da miséria, depois vi-me quase rico e pensei que era o dono do mundo. Cometi os erros clássicos dos jogadores profissionais de futebol. Fui um central muito agressivo, ainda fui convocado para a Seleção B pelo António Oliveira. Apanhei o Nascimento, o Litos, a fase do pós-Saltillo. Na fase mais adiantada da carreira passei a ser médio-defensivo. Tenho orgulho no que fiz como jogador, mas ainda mais orgulho tenho no que já fiz como treinador.

Qual foi o treinador que mais o marcou?
O John Toschak, sem dúvida. A forma como comunicava, como nos motivava, como entendia o futebol. Uma vez viu-me a chutar contra a parede com o pé esquerdo, o meu pé mais fraco, e ele deu-me logo na cabeça: ‘não, quero que sejas muito bom com o direito, trabalha só com o direito’. Um dia na Luz, apareceu no balneário dos juniores e teve a falar connosco, antes desse dérbi de sub19.

E 2021, o que espera deste novo ano?
Todos falam mal de 2020. Perdi muitos amigos, o Dito e o Vítor Oliveira por exemplo. Profissionalmente, estive sempre a trabalhar, fiz muita coisa e não me posso queixar. Quero deixar uma marca positiva nos meus clubes, em títulos