Foram praticamente 15 anos ligado ao Benfica até sair, no verão de 2018, rumo ao Nottingham Forest a troco de 15 milhões de euros, o valor mais alto alguma vez pago pelo histórico de Inglaterra por um jogador.

Considerado um dos jogadores mais promissores da casta de 1997 no Seixal, João Carvalho foi lançado na equipa principal das águias por Rui Vitória em 2017, já depois de ter feito meia-época no V. Setúbal, pelo qual marcou um golo a Iker Casillas num empate com o FC Porto em pleno Estádio do Dragão.

Em entrevista ao Maisfutebol, o médio, agora com 23 anos, fala sobre o percurso no Benfica ao lado de nomes como Renato Sanches, Rúben Dias e muitos outros. Desde as viagens com o pai, ex-futebolista, de Castanheira de Pêra até Lisboa nos primeiros anos, à oportunidade «descarada» que teve diante do Belenenses para agarrar um lugar na equipa principal, passando pelas «malandrices» no Seixal, onde assistia, do quarto, aos treinos do Benfica de Jorge Jesus.

Mas aborda também a ida para Inglaterra, entre o receio de estagnar, e do futebol com traços de loucura saudável que encontrou no Championship, onde trabalhou com Aitor Karanka, Martin O’Neill e o incorrigível Roy Keane.

Por agora aguarda, em Inglaterra, o regresso aos treinos, enquanto faz tudo para fintar uma pandemia que não se tem curvado em Terras de Sua Majestade. Depois disso, aponta à Premier League, o «topo do futebol mundial» e onde o Nottingham Forest não marca presença há praticamente duas décadas.

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Maisfutebol – É filho de um ex-jogador (Tozé).

João Carvalho – Eu nasci em 1997 e os tempos áureos do meu pai foram um pouco mais cedo. Ele esteve na Académica na I Liga e tenho cassetes de jogos contra o FC Porto e o Benfica...

MF – E que tal?

J.C. – Ele era lateral-esquerdo. Quem o viu jogar diz-me o mesmo que ele diz: que tinha um bom pé esquerdo, o que me deixa com alguma inveja, e que era um lateral com muita garra. Era daqueles defesas chatos que eu não gostaria nada de apanhar pela frente [risos].

MF – Mas ainda chegou a vê-lo jogar? Ele terminou no Castanheira de Pêra, já a nível amador.

J.C. – Disso tenho memórias: ia ver todos os jogos. Como ele era dos poucos que tinha atingido um patamar mais elevado e tinha um bom pé esquerdo, jogava como médio ofensivo. Lembro-me de bater muito bem livres: quase todos eram golo.

MF – E o futebol era um tema muito frequente em casa?

J.C. – Sim, claro que sim. Primeiro falávamos de futebol sobre ele e depois, quando eu comecei a ir para Lisboa, começámos a falar de futebol, mas sobre mim. Passou-me e continua a passar-me mensagens muito importantes.

MF – Era muito exigente em relação a si?

J.C. – Não era muito exigente, mas era exigente. Ele sabe mais coisas de futebol do que eu e muitas vezes chamava-me a atenção para pequenos detalhes que fazem a diferença. Lembro-me de me chatear imenso em relação à perda da posse de bola, porque eu corria e corro riscos, e por isso perco-a mais vezes. Falava-me da importância de mudar esse chip para a parte defensiva quando eu ainda tinha nove ou dez anos. Isso e a postura em campo: estar sempre de cabeça levantada. Coisas que eu no Benfica só ouvi com 16 ou 17 anos.

MF – Com que idade começou a jogar?

J.C. – Tinha cinco anos e na altura foi no Castanheira de Pêra e o meu pai foi o meu primeiro treinador. Jogava com os mais velhos, que tinham sete ou oito anos. Como não tinha idade para jogar, jogava com o cartão de identificação de outros para poder jogar.

MF – E que outro nomes chegou a ter o João Carvalho?

J.C. – [risos] Dependia. Muitas vezes havia quem faltasse e eu ficava com o cartão de quem faltava. Outras vezes não faltava ninguém e aí eu não jogava.

MF – E conseguia dar sempre a volta ao árbitro? Nunca foi barrado?

J.C. – Que eu me lembre, não, mas não tenho a certeza. Lembro-me que o árbitro tinha os cartões todos e eu tinha sempre de decorar o nome completo do jogador. Ele perguntava como é que eu me chamava e eu dizia o nome. Muitas das vezes olhavam para a fotografia e ficavam a pensar.

MF – E o Benfica? Como é que aparece?

J.C. – O Benfica tinha um olheiro que observava os miúdos naquela zona do país. Ele veio falar comigo e convidou-me para ir a Lisboa fazer uns treinos de captações normais. Tinha seis anos quando fui e comecei a jogar mais com eles aos sete. Mas aí só ia a torneios de verão ou de Páscoa. Treinava e jogava em Castanheira de Pêra. A partir dos oito anos já ia três vezes por semana a Lisboa: dois treinos mais o jogo.

MF – Muitos quilómetros.

J.C. – É verdade. O meu dia à terça e à quinta, quando tinha de ir para Lisboa, era mais ou menos isto: acordava cedo, ia para a escola e tinha de sair 30 minutos mais cedo para estar em Lisboa à hora do treino, porque ainda eram duas horas de viagem. Saía da escola, o meu pai já estava à minha espera e seguíamos para baixo: apanhávamos dois colegas em Pombal e mais um em Santarém. O treino acabava tarde e jantávamos no nosso carro, a comer uma sopinha. Chegava a casa por volta da meia-noite. Os nossos pais foram impecáveis. Fizeram um esforço enorme por nós, com muitos quilómetros a conduzir à noite e já cansados do trabalho. Mesmo agora não dá para retribuir o que os meus pais me deram.

Aos comandos da Moto 4. Com o pai, a mãe e a irmã (arquivo pessoal)

MF – Quando é que passou a residente no Seixal.

J.C. – Com 11/12 anos. Alguns jogadores que ficaram comigo já os conhecia das viagens. Mas foi tranquilo: como somos crianças, conseguimos ficar a falar bem com toda a gente e também fomos muito bem recebidos.

MF – O João Félix disse recentemente que não houve residente no Seixal que não tivesse feito malandrices...

J.C. – Fizemos muita porcaria no centro de estágio [risos].

MF – Alguma coisa já pode contar...

J.C. – Lembro-me de uma batalha que fizemos com balões de água: éramos uns 20 ou 30. Mas houve muitas coisas piores que fizemos e fomos repreendidos por isso. Quando somos crianças, somos quase obrigados a fazer porcaria para aprender. Recordo-me de muita coisa, mas não posso contar. Fazíamos muitas coisas em conjunto e tínhamos muita imaginação: fazíamos reuniões entre todos para decidir o que íamos fazer [risos].

MF – Os castigos eram pesados?

J.C. – Só ir ao gabinete do diretor já era muito mau para nós. E a encarregada de educação que tínhamos no centro de estágio ligava para os nossos pais.

MF – E relativamente à escola?

J.C. – Estudava numa escola pública no Seixal. Os nossos pais sabiam todas as nossas notas e o Benfica avisava-nos de que tínhamos de dar tudo na escola, porque nunca se sabe o dia de amanhã no futebol. Depois de entrar para o Seixal, é difícil continuar com as mesmas notas de antes. Fui para lá no 7.º ano, começou a ser mais difícil, mas fui passando sempre. À rasca, mas fui passando. Só fico com um bocado mágoa por não ter acabado o 12.º ano. Mas foi culpa minha, porque toda a gente me avisou. Mas era difícil, porque na altura já ia para a equipa B. Não é impossível, mas é complicado.

MF – Como residente no Seixal, suponho que se cruzasse muito com os jogadores da equipa principal. Como era essa convivência?

J.C. – Não sei se continua assim, porque foram feitas algumas obras, mas naquela altura havia um refeitório onde a mesa da equipa A era na mesma sala da formação. Havia uma zona que era só para eles e outra para a formação, mas era mesmo ao lado. E as janelas do centro de estágio ficavam viradas para os campos profissionais. Muitas vezes ficávamos a ver os treinos deles: lembro-me de ver o Jorge Jesus a repreender o pessoal. Dava para ouvir perfeitamente do nosso quarto [risos]. Conseguíamos ver tudo o que faziam: desde as refeições aos treinos.

MF – E quais eram as suas grandes referências?

J.C. – Quando eu era mais miúdo, estava lá o Di María, o Aimar, Saviola... Essa equipa era realmente forte. Da formação, lembro-me do Bernardo Silva em juniores e já era um talento incrível. Mais recentemente, treinar com o Pizzi e com o Jonas foi uma grande aprendizagem para mim. O empenho deles nos treinos transmitia-nos uma mensagem importante: a de que, se queremos chegar a um patamar alto, temos de treinar forte. Normalmente, o pessoal pensa que os jogadores com mais qualidade não dão tudo nos treinos e que só querem saber do jogo. E isso não é verdade, porque eles trabalham muito.

(À esquerda na foto) Com Rúben Dias, Guga, Raphael Guzzo, Renato Sanches e Diogo Gonçalves

MF – O João faz parte de uma geração com nomes como Rúben Dias, Ferro, Renato Sanches, Yuri Ribeiro, Diogo Gonçalves... Está entre as melhores desde a criação do Seixal?

J.C. – Conseguimos ser das melhores, mas não ganhámos títulos suficientes para sermos a melhor. Fomos campeões de iniciados e pela Seleção temos duas meias-finais de europeus: fica alguma mágoa pelas boas equipas que apanhámos nas meias-finais. A França do Mbappé [n.d.r.: Euro sub-19 em 2016] e a Inglaterra [Euro sub-17 em 2014], que era muito forte e tinha, por exemplo, o Joe Gómez: nesse jogo tivemos muito azar, com cinco ou seis bolas de golo na primeira parte e bolas nos postes. Voltando ao Benfica, temos um campeonato de iniciados, alguns subiram mais cedo e ajudaram a geração anterior ser campeãa de juvenis, mas pelos juniores não conseguimos. Mas não era fácil, porque já havia muita gente na equipa B.

MF – Quem se destacava mais no Benfica nessa geração de 97? O Renato Sanches teve uma ascensão muito rápida e foi o primeiro a chegar à equipa principal.

J.C. – O Renato tinha e tem muita qualidade. Ele teve aquela ascensão muito rápida e isso foi graças ao trabalho dele. Ele era e é um jogador muito físico e isso fez com que a transição da formação para o patamar profissional fosse fácil para ele. Mas havia muitos outros bons jogadores: o Diogo Gonçalves, o Ferro, o Guga e o Rúben Dias, que se calhar não começou tão bem e em infantis era muito diferente daquilo que é agora. É da minha idade e eu olho para ele como um exemplo, porque trabalhou imenso para estar onde está e merece tudo o que tem.

MF – (...)

J.C. – Lembro-me que ele era médio-defensivo e que não jogava tanto como aquilo que queria. E trabalhava imenso. Muitas vezes, porque éramos jovens, olhávamos para ele e perguntávamos porque é que ele trabalhava tanto. Agora olho para ele e vejo-o como um exemplo para toda a gente.

MF – É o tipo de jogador que já tinha essa disciplina de profissional antes de o ser?

J.C. – Sim, sem dúvida. E desde muito cedo. Os nossos pais conhecem-se muito bem e eu convivia muito com ele. Lembro-me das refeições, por exemplo: ele comia muito bem e nós não tanto, se calhar.

MF – A equipa principal do Benfica tem agora uma mescla de produtos da geração de 97 e de 99. Era um desafio interessante, não?

J.C. – Era interessante, mas acho que nós ganhávamos [risos]. Mas sem dúvida que a de 99 tem muita qualidade e, para ser justo, não sei qual das duas ganhava. Mas seria um bom desafio, certamente.

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