Quando chega o verão, a vontade dos miúdos (e dos grandes) é pegar na toalha, nos chinelos e na bola e ir para a praia. Antes de um mergulho no mar, é tempo para uns toques na «redondinha» e aí todos querem ser «Madjer», aquele dos remates impossíveis de longe, o que domina no peito e marca um golo de pontapé de bicicleta ou aquele que dá toques e toques, como se a bola fosse controlada pelo olhar.

O fenómeno «Madjer» começou no início do século XXI, quando o Mundialito de Futebol de Praia começou a ser parte obrigatória nas férias de verão. O programa era o seguinte: ver os jogos após o almoço e, no final, ir para a praia imaginar que vestíamos aquela camisola sete. Madjer, considerado o melhor jogador do Mundo em 2015, é para muitos o melhor de sempre na modalidade. Mas o que poucos sabem é que o craque português só chegou às areias devido a um grave acidente.

«O meu sonho, como o de tantas crianças, era ser profissional de futebol de onze, mas acho que há males que vêm por bem. Tive um acidente de mota, que me impossibilitou de continuar, fiquei parado dois anos, mas de qualquer forma se ficasse nessa modalidade seria apenas mais um jogador», confessa Madjer.

Foram 80 pontos numa perna, uma longa recuperação durante dois anos e, quando ficou apto, o antigo médio do Sporting, Carlos Xavier, convidou-o para ir a um treino de futebol de praia. Estávamos no ano de 1998 e, desde aí, nunca mais parou. «Lembro-me perfeitamente que o convite que eu tive foi do Carlos Xavier. O professor João Barnabé, na altura o selecionador, logo após ter-me visto a primeira vez a jogar disse-me: Miúdo, tens passaporte?», conta o capitão da seleção nacional.

A estreia nas areias com as Quinas ao peito foi com o Paraguai, num jogo em que Portugal perdeu. Por isso, o sabor da primeira internacionalização foi «agridoce», mesmo tendo apontado um hat-trick. Na hora de recordar esse início de carreira, Madjer diz que é imperativo agradecer a algumas pessoas, sobretudo à dream team que iniciou a modalidade no nosso país. «Fico muito honrado por fazer parte desta bonita história. É uma modalidade que não tem muitos anos, consegui entrar quase nos primórdios graças a jogadores como o Carlos Xavier e o Sotil, e depois com o Nunes, o Hernâni e o Zé Miguel, que começaram a construir o futebol de praia em Portugal. A única coisa que tenho a fazer é agradecer às pessoas que me fizeram jogar e fazer parte do crescimento da modalidade no país.»



Madjer e futebol de praia são sinónimos

Desde esse tempo o futebol de praia evoluiu e já pouco permanece igual. Os golos de Madjer podem ser considerados um denominador comum entre 1998 e 2015. «Hoje, é uma modalidade em que por todo o mundo se aposta mais, principalmente nos clubes. E quando assim é, acaba por haver outro tipo de vantagens para os jogadores, uma delas é o poder competir o ano todo, coisa que há uns anos era impensável. Cada vez mais estamos a conseguir que as pessoas vejam o futebol de praia como um desporto não sazonal, mas profissional, em que todos trabalhamos diariamente para tentar conquistar títulos», refere.

Madjer não esquece o envolvimento da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) nos últimos anos: «A FPF está a fazer um excelente trabalho. Não deram o passo maior que a perna. Começaram com um campeonato nacional com menos equipas mas estruturado. Já aumentaram o número de clubes, em dois anos, para o dobro, o que é espetacular. Conseguiram ter duas divisões o que é ótimo para o desporto e nós somos campeões da Europa e do Mundo, o que também é fruto do trabalho desenvolvido.»

Esta evolução permitiu que os jogadores se concentrassem única e exclusivamente no desporto: «Lembro-me que quando comecei me dividia um pouco entre os estudos, o futebol de praia e o trabalho. Atualmente, dedico-me a 100% e como eu há muitos jogadores a fazer isso, muito graças aos clubes e ao desenvolvimento que tem sido feito pelas federações.»

«Obrigado, mãezinha»!

Hoje a sua vida é mesmo só o futebol de praia, quer como jogador, quer como dirigente e até como instrutor FIFA para a modalidade. Mas quando era ele que pegava na toalha, nos chinelos e na bola e ia para a praia marcar golos, não imaginava que, anos mais tarde, aquele fosse o seu dia-a-dia. Apenas sabia que o seu destino era o desporto e a mãe sempre foi o seu «equilíbrio».

«Eu sempre tive, graças à minha mãe, o tal equilíbrio. A minha mãe sempre me disse: Eu quero é que sejas feliz, tens é que fazer aquilo de que gostas, e então o curso que tirei foi ligado ao desporto e daí ter juntado o útil ao agradável», refere, confessando que apesar do «tal equilíbrio», ainda deu umas dores de cabeça à mãe. «Passava horas com a minha mãe a ralhar, ela a querer que eu estudasse e eu a querer jogar à bola», recorda, rindo-se desses momentos. E por entre as gargalhadas, agradece: «Obrigado, mãezinha, por teres insistido comigo!»

Apesar do sonho do futebol de onze não se ter concretizado, Madjer mostra-se muito feliz pela decisão de apostar no futebol de praia, mas fala sobre duas tentativas de regresso aos relvados, todavia sem sucesso.

«Na altura, a modalidade ainda não estava enraizada no país e eu ainda não tinha perdido a esperança de tentar o futebol de onze. Houve algumas pessoas que me convidaram a fazer uns treinos, no Paços de Ferreira e depois no Vitória de Guimarães, a quem eu agradeço. Foi um pouco aquela última chance para ver se realmente ainda me enquadrava, se ainda valia a pena lutar. Depois de ver que tinha perdido tanta coisa a nível de futebol de onze, não continuei. Foi bom ir lá, foi bom experimentar e foi bom para que a minha cabeça se focasse totalmente no futebol de praia», explica.



2015: ano de ouro e coroação como «Rei das areias»

2015 será sempre o ano de ouro de Madjer. Foi campeão europeu e mundial pela seleção nacional e, já neste mês de novembro, foi considerado o melhor jogador do mundo de futebol de praia, integrando também o melhor «cinco» da modalidade.

Terá sido o melhor ano de todos nos seus 17 de carreira? «Não sei. Foi um dos meus melhores anos, nós já tivemos anos quase semelhantes, faltava-nos o Campeonato do Mundo com a chancela da FIFA, que tem outro sabor e por ser em nossa casa tem um sabor ainda mais especial».

Portugal já tinha sido campeão do mundo em 2001, mas a FIFA só «adotou» a modalidade em 2005. A equipa das Quinas esteve logo na final da primeira edição com a França, mas acabou por perder nos penáltis. «Essa é uma espinha atravessada porque era o primeiro campeonato, era histórico, mas depois de termos vencido agora, as espinhas saíram todas (risos)», brinca.

O triunfo na competição mais importante do mundo da modalidade, juntando às restantes conquistas, ajudaram-no a ser distinguido como o «rei das areias». Esta foi a segunda edição do prémio e o português sucedeu ao brasileiro Bruno Xavier. A questão que se impunha era se Madjer já o teria conquistado mais vezes, caso já tivessem acontecido outras edições.

«Sinto que faço o meu trabalho e faço-o de forma a ajudar ao máximo o coletivo. Não estamos numa modalidade individual, fazemos o máximo em prol do grupo, neste caso, de Portugal. Também fui um sortudo, quando se trabalha com os melhores os prémios acabam por ser mais fáceis», diz, partilhando a distinção com todos os companheiros.

Para além dos troféus já mencionados, o jogador português viu o seu golo frente à Suíça, no Mundial de Espinho, ser considerado o melhor do ano. «Este para mim foi mesmo o melhor golo, não tenho qualquer dúvida. No meio de tantos e tantos golos, este se calhar não tem um significado tão especial como outros que deram vitórias, mas acaba por ser especial para mim por ter sido um gesto técnico que saiu na perfeição. Aliás, eu fiquei de boca aberta com o meu próprio golo (risos)».



Para terminar o «ano de ouro», Madjer encontra-se a disputar o campeonato dos Emirados Árabes Unidos, ao serviço do Ah-Ahly. Foi a partir do Dubai que o melhor do mundo de 2015 afirmou o que pretende em 2016: «Qualificar-me para o mundial de 2017, ser campeão da Europa pela seleção nacional e ajudar ao máximo Portugal e os clubes com que estou envolvido.»

E a carreira tem fim à vista?

Aos 38 anos, Madjer brinca com o final da carreira: «Faço como na escola, levanto a mão e digo que não dá mais. É assim que eu irei fazer. Não devemos pôr datas. Devemos ser os primeiros a ter a consciência de que já não somos uma mais-valia e que já não dá mais. Inclusive já há convites para ser selecionador de alguns países, mas ainda é cedo, ainda me sinto bem a jogar, por isso vou continuar», afirma.

No dia em que encerrar a sua carreira, quer «ser recordado como alguém que ajudou a modalidade a crescer e que criou jogadores e os ajudou no crescimento» e não está preocupado com rótulos como, por exemplo, o melhor de todos os tempos.

«Eu estou ciente de que muita gente já me considera o melhor de todos os tempos, pelo número de recordes que já bati e pelos muitos títulos que já conquistei, mas eu foco-me sempre no coletivo, que é sempre mais importante. Claro que se for recordado como um dos melhores é sempre bom», diz o português que já foi quatro vezes melhor marcador de Mundiais, seis vezes o melhor na Liga Europeia e cinco vezes em Mundialitos.

94(!) golos em 44 jogos de Mundiais

«Recordes são para bater» é assim que Madjer pensa, mesmo quando a pergunta é se algum dia baterão os seus. É o melhor marcador de sempre em campeonatos do mundo FIFA, com 94 golos em 44 jogos, com mais do dobro dos golos do segundo classificado, o brasileiro André, que já encerrou a carreira.

Orgulhoso deste registo, Madjer gostaria de ver um português a ultrapassá-lo. De entre os rivais destaca Leonov, da Rússia, e Buru e Bruno Xavier, do Brasil, como os mais difíceis de ultrapassar. Quanto aos guarda-redes, diz que, atualmente, «estão cada vez melhores, quase todos ao mesmo nível e difíceis de bater.» Em relação a colegas, Alan é o eleito, confessa: «Alan é família, começamos quase ao mesmo tempo, tem-me acompanhado ao longo destes anos e foi uma pessoa com quem criei laços, não só dentro de campo», elogiando também vários dos companheiros com quem iniciou o percurso e, mais recentemente, Belchior e Torres.



O miúdo Madjer e o pai Madjer

Madjer já quase se esqueceu que se chama João. Aliás poucas pessoas sabem que ele se chama João Victor Tavares Saraiva. Na rua não olha se chamarem João, só em casa, mas assume que é raro isso acontecer. A alcunha surgiu aos 10 anos por causa do avançado do FC Porto, Rabah Madjer, mas o jogador até nem concorda com os argumentos. «Diziam que a correr, a jogar, eu era muito parecido, apesar de ele ser direito e eu canhoto, mas os meus amigos de infância lá acharam que havia semelhanças. E foi a partir daí que começaram a chamar «o miúdo Madjer, o miúdo Madjer» e ficou», conta.

Nascido em Angola, em 1977, diz que poucas ligações tem ao país, já que veio para Portugal com três meses. Gosta de se informar sobre o que lá se passa, mas pouco mais que isso: «As raízes que tenho são a música, comida africana e mais algumas coisas, mas foi pelos meus pais, não pelo contacto que tenho com Angola».

Viaja muito, também por culpa da modalidade, mas define-se como «caseiro» e que aproveita todo o tempo que tem para estar com a família, sobretudo com os filhos, que nem sempre o acompanham. «Infelizmente na profissão, no desporto, nós temos que nos ausentar largos períodos da família, o que é bastante difícil, mas sempre que existe a possibilidade eu tento ao máximo estar com a minha. Às vezes, eles conseguem acompanhar-me, mas tendo em conta que têm colégio é tudo sempre mais complicado. Nem qualquer pai pode tirar o filho do seu habitat natural e o deles é Portugal», comenta.