A vida de Manuel José dava um livro. Na verdade, chegou a ser preparado, mas uma série de fatalidades em catadupa cancelaram o projeto. Pelo sim, pelo não, o melhor é deixar as coisas como estão. Se não aconteceu, é porque não tinha de ser, diz o ex-treinador.
Aos 79 anos, o ex-treinador, nascido na povoação algarvia de Vila Real de Santo António, ali mesmo junto à fronteira com Espanha, desfruta do descanso merecido em Espinho, cidade que adotou no final da década de 70 e onde terminou a carreira de futebolista e começou um longo percurso de 35 anos como treinador. Numa casa cheia de livros, na companhia da esposa, que conheceu há 60 anos quando foi emprestado contra a própria vontade pelo Benfica ao Sp. Covilhã, que disputava a então Zona Norte da II Divisão. «Um senhor chamado Gastão Silva, dirigente do Benfica, um senhor pequenino, não deixou. É por isso que quando falam em pequeninos, lembro-me sempre: “Ou velhaco ou bailarino.” Como ele não tinha pés para bailarino, era velhaco», diz com um sorriso. Podia ter ido para o Olhanense, perto de casa e ia e voltava todos os dias de comboio, mas o Benfica é que decidiu. E lá fui eu: com 19 anos para a Covilhã. No meio de tudo isso aconteceu-me uma coisa boa. Conheci a minha mulher, com quem sou casado vai fazer 57 anos», recorda em conversa com o Maisfutebol numa pastelaria de Espinho da qual é freguês assíduo.
Em cerca de duas horas de horas de conversa, Manuel José, o melhor treinador da história dos egípcios do Al-Ahly – que nesta segunda-feira defronta o FC Porto no Mundial de Clubes – recordou a passagem pelo clube do século XX em África, onde acumulou três passagens, mais de 20 títulos, histórias que nunca mais acabam e foi venerado como um rei (ou faraó).
«Eram gajos com o carro em movimento a querer tirar-me fotografias. A minha mulher dizia: «Tira a fotografia ou ele vai bater com o carro!» Houve oito ou nove que bateram no carro da frente.»
Mas também ligou uma goleada histórica do Al-Ahly ao Zamalek à de um outro marcante dérbi por cá – o 7-1 do Sporting ao Benfica, quando treinava os leões – e da paixão pela leitura que foi alimentada por um trauma quando era jogador na formação dos encarnados.
Senhoras e senhores: Manuel José, 79 anos, figura fascinante da história do futebol português, sem papas na língua e contador de histórias por excelência.
Maisfutebol – Em 2001 foi para o Al-Ahly pela primeira depois de mais de 20 anos de carreira como treinador sempre em Portugal. Já tinha tido propostas de clubes estrangeiros antes?
Manuel José – Que eu me recorde não. Acho que foi a primeira vez. Um empresário árabe que me representava lá fora, em África e no Médio Oriente, queria levar-me para um clube dos países árabes. E eu tinha-lhe dito: “Se arranjar um clube campeão e que jogue para ganhar a Taça dos Campeões árabes, asiática ou de África, nessa altura, se for aliciante sou capaz de ir. E ele apareceu-me com o Al-Ahly do Egito, que tinha acabado de ser considerado o clube do século em África. E ainda por cima era vermelho com águia.
Isso também era importante para si?
Não, não. Importante era o espírito aventureiro que eu tinha. Sou algarvio e foi do Algarve que saíram as caravelas para descobrir meio mundo. Tanto que, depois disso, estive no Egito, na Arábia Saudita, no Irão e acabei por ser selecionador de Angola, quando eles organizaram o Campeonato das Nações Africanas (CAN). Por três vezes o presidente da Federação e o embaixador de Angola vieram ter comigo e eu à terceira vez fiz uma proposta para eles não aceitarem. Como não era para pagar, eles aceitaram. Está a perceber? Só que eu naquela altura não era parvo! Quando assinava um contrato, queria logo 50 por cento de dinheiro na mão. À cautela, não fosse o diabo tecê-las! E teceu.
E o Al-Ahly?
Fui para o Egito ver a final da Taça do Egito entre o Al-Ahly – Al-Ahly quer dizer nacional – e outro clube qualquer que não me lembro agora. Fui lá para assinar o contrato e levaram-me a ver a final da Taça. Já tinha acertado tudo, mas comecei a ver o jogo. Ainda por cima teve prolongamento e eu quase que adormeci no prolongamento. Ainda por cima estava um calor… filha da mãe: 40 graus…
Má qualidade de jogos?
Bem… Eu só dizia para mim: «Oh, Manuel! És estupido que nem um pneu! Tu devias era fugir, mas não és de fugir e já deste a tua palavra, por isso tens de cumprir.» No final do jogo disse ao meu empresário, que percebia tanto de futebol como eu de agricultura, que não ia durar nem três meses naquela equipa: «Você meteu-me num sarilho filha da mãe, mas agora já me comprometi, sou um homem de palavra e tenho de cumprir. Mas esta equipa não presta para nada. Você viu bem o jogo?! O que é que eu vou fazer desta equipa com os maus hábitos que ela tem?!»
E os jogadores?
Só corriam quando tinham a bola, mas sem ela ninguém se mexia. E não tinham mentalidade profissional. Não tinham um pingo de responsabilidade. Eu determinava o grupo de trabalho com 26 jogadores, que dividia em três grupos. Determinava o tipo de trabalho que íamos fazer, explicava tintim por tintim no quadro, começava o treino e cada um fazia o que lhe apetecia. Os meus adjuntos, que eram responsáveis por acompanhar os grupos sob a minha supervisão, não tinham dúvidas, mas passados dez minutos já estavam a fazer tudo à maneira deles. Chutavam para canto. Eu parava o treino e armava com cada escabeche… No dia a seguir, treino, explicava tudo outra vez e a mesma coisa: «Vou ter de vos pôr na rua e fico a trabalhar sozinho?! Não tenho problema nenhum!»
Mas conseguiu que eles depois começassem a respeitar a sua autoridade?
Deu um trabalho filha da mãe, mas a pouco e pouco fui mudando a mentalidade dos fulanos. Dos jogadores também, claro. Chegou uma altura em que eles perceberam que não tinham outra hipótese comigo. Ou faziam o que eu dizia, mas sem robotizar ninguém e dando liberdade para criarem, ou então era chatice permanente e tirava-os da equipa. Nunca fui de multas, mas o castigo era não serem convocados e treinarem a dobrar. Foram métodos duros, mas que eles foram aprendendo e resultou.
Recapitulando: chegou ao clube do século XX em África quando ele atravessava uma crise futebolística.
Já não ganhava o campeonato há três anos e a Liga dos Campeões Africanos há 14 anos. Isso é muito para um clube como o Al-Ahly, mas a preocupação deles era o campeonato. E, curiosamente, não ganhamos o campeonato. Perdemo-lo na última jornada. Mas lembro-me que tive um resultado que marcou a minha estadia no Al-Ahly durante aqueles oito anos. Logo no primeiro ano, perdemos com o Zamalek, o grande rival, na primeira volta por 2-1. Depois disso, eu ia para o estádio e eles gritavam: «José, go home!» Vai para casa. «José, go home! José, go home!» Ahahahah. Engraçado. Conclusão: perdemos o campeonato na última jornada, mas ganhámos a Liga dos Campeões Africanos ao fim de 14 anos. Na final, ganhámos em casa aos sul-africanos do Mamelodi Sundowns por 3-0. Mas, mesmo assim, os adeptos não me aceitaram.
Nem depois dessa vitória na Champions africana depois de tantos anos?!
Não me aceitaram! Por causa da tal derrota na primeira volta com o Zamalek. Aquilo é uma rivalidade terrível. Mas depois disso tive sorte! Na 2.ª volta contra o Zamalek, num jogo em que três horas antes já estavam 100 mil pessoas dentro do estádio, ganhámos 6-1! Ainda no outro dia recebi [Manuel José pega no telemóvel e mostra uma imagem enviada por um adepto] isto…
Dezasseis de maio de 2002.
Ainda celebram. Ahahahah. Um adepto.
Ainda lhe mandam muitas mensagens do Egito?
Mandam! E muitas em árabe, mas eu não percebo. Quando fui para lá ainda tive um professor para me ensinar árabe, mas aquilo era uma complicação até no pronunciar das palavras. Então, foi mais simples arranjar um tradutor. Comprei uns livros de gramática portuguesa e dei-os ao nosso tradutor, que era um guia turístico que sabia o essencial e pouco mais. Eu é que praticamente o ensinei a falar português. Emprestei-lhe aqueles livros, que serviram para ele e para outros tradutores que tive lá ao longo dos anos, que foram três. Mas sabe o discurso de um treinador fica sempre condicionado quando se trabalha com um tradutor. Muito condicionado.
Como é que contornava isso?
Eu disse-lhes sempre: «Amigos, para o bem e para o mal, aquilo que eu disser vocês têm de traduzir na íntegra. Se eu descobrir que por pressão dos jogadores ou da direção os meus amigos andam a adulterar o que eu digo, vocês estão na rua logo!»
Então e a sua chegada ao Cairo na primeira vez? Tinha muita gente à sua espera?
Quase ninguém. Só dois dirigentes, que sabiam quem eu era. Mas depois era uma loucura! Ainda hoje, se eu for ao Cairo… Veja: é uma cidade com à volta de 22 milhões de habitantes e a maior parte são do Al-Ahly. A outra parte é do Zamalek. E eles são todos apaixonadíssimos por futebol. Andar na rua no Egito, em qualquer cidade, era praticamente impossível.
Ainda por cima depois da tal vitória por 6-1 sobre o Zamalek, suponho…
Sim, por exemplo! E foram 21 títulos em oito anos, sempre com um interregno pelo meio. Da primeira vez vim-me embora porque chateei-me com o diretor-desportivo, que tinha sido também jogador e tinha a mania que também era treinador. Interferia e não era confiável. E vim-me embora. Era um Hassan qualquer coisa. Interferia na hora de fazer a equipa e na hora da palestra. Ainda lhe dei três ou quatro berros para ele se calar e cheguei a pô-lo duas vezes fora da sala na reunião com os jogadores antes do jogo.
Complicado…
A minha relação com ele era péssima. Mas ele, quando eu estava zangado com ele e já nem falava com ele, disse uma coisa curiosa uma vez, publicamente: «O José vai ser o melhor treinador da história do Al-Ahly.» Teve a hombridade de dizer isso numa altura em que já estávamos de costas voltadas. Mas não dava, tanto que eu disse: «Se o mandarem embora, eu fico. Se não mandarem, eu vou embora.
E foi.
Vim treinar o Belenenses. E a meio da segunda volta no Belenenses vieram a Lisboa e pagaram ao Belenenses…
E o diretor-desportivo ainda era o mesmo?
Já não era o mesmo. Era outro que tinha sido meu adjunto. Se ainda fosse o mesmo, eu não voltava. Nem para ser o melhor treinador da história do Al-Ahly. Mas vieram-me buscar por pressão dos adeptos. As coisas estavam a correr mal: na Liga dos Campeões foram eliminados extemporaneamente e o campeonato estava perdido. Vieram-me buscar e pagaram ao Belenenses, que, como parte da negociação, ainda foi ao Cairo, com tudo pago, para fazer um jogo contra o Al-Ahly no Estádio Internacional do Cairo. Tinha oito jogadores na seleção, joguei com os reservistas e demos um banho no Belenenses que Deus me livre! O treinador do Belenenses era o Carlos Carvalhal. E quem o pôs lá fui eu. Quando saí para o Al-Ahly, consegui convencer os diretores do Belenenses a irem buscar o Carvalhal.
Que ligação tinha a Carlos Carvalhal?
Eu tinha sido treinador dele no Sp. Braga.
E essa segunda passagem pelo Al-Ahly é a mais longa e também a mais recheada. Ganha quase tudo todos os anos.
Quando cheguei, o campeonato já estava perdido, mas depois ganhámos sempre. Cinco campeonatos seguidos, três Ligas dos Campeões… No total, foram 21 títulos em oito anos.
Dizia há pouco que era difícil andar na rua no Cairo. Nessa segunda passagem, imagino…
UI! E depois de inventar os telemóveis com fotografias nem queira imaginar. «Sura, José! Sura, José!» Sura é foto. Era impossível andar na rua. Nem a pé nem de carro! A densidade de tráfego no Cairo é uma absolutamente incrível. É pára arranca, pára arranca. Eram gajos com o carro em movimento a querer tirar fotografias. A minha mulher dizia: «Tira a fotografia ou ele vai bater com o carro!» Houve oito ou nove que bateram com o carro.
No seu?!
Não! No da frente.
Ah, claro!
Porque o da frente parava quando eles estavam distraídos e pumba. Batiam. Saíam, um olhava para frente, ou outro para trás e «bye, bye», iam embora. Noventa por cento dos condutores não tinha seguro. Agora provavelmente já não será assim.
E eram só os adeptos do Al-Ahly que o abordavam?
Já era tudo! Do Zamalek inclusivamente. Aliás, o Zamalek convidou-me três vezes para os ir treinar.
E o Manuel?
«Vocês são mas é malucos! Se eu for treinar o Zamalek não posso sair de casa.» Convidaram-me quando eu ainda treinava o Al-Ahly. Eles de parvos não tinham nada. Davam-me o que eu quisesse. Só me dizia: «Pede!» «Peço para quê? Depois nem posso sair à rua!» Seria uma traição que Deus me livre.
E mais histórias dessa loucura no Cairo?
O meu oftalmologista era o chefe da delegação do Egito que ia para os Jogos Olímpicos. Era do tiro. Eu vivi durante os oito anos com a minha mulher numa suite no Hotel Marriott, que na altura era do Donald Trump. O Al-Ahly pagava tudo menos a alimentação. E esse oftalmologista parava lá. Ele tinha um problema num ombro e precisava de ficar bom porque ia para os Jogos Olímpicos. E eu disse-lhe para ir ao departamento médico do Al-Ahly fazer os tratamentos. E ficámos com esta relação. Entretanto, eu comecei a ter problemas visuais e marquei uma consulta com ele. «É ali no centro da cidade», disse-me ele. «No centro da cidade? Nem pense! Eu não vou para ali. Para você ter uma ideia, o centro da cidade do Cairo movimenta por dia 6/7/8 milhões de pessoas. É uma coisa assustadora.
E isto ainda para mais no auge da fama do Manuel José lá, não?
Sim, sim! E disse-lhe: «Eu não posso andar na rua ali, nem pense!» E então ele diz-me: «Olhe, eu vou buscá-lo.» Fui com ele para a clínica, ele observou-me e tirou-me as medidas todas para mandar fazer os óculos. Ele tinha um lugar de garagem, mas o problema é que ficava a uns 300 metros do oculista tínhamos de ir a pé. Ele não podia estacionar à porta do oculista, porque no Cairo os passeios são deste tamanho [coloca a mão acima do patamar da mesa], mesmo para os condutores não estacionarem nos passeios, se não eles até metiam os carros em cima dos telhados. «Temos de ir a pé?! Doutor, eu não vou conseguir andar nem 50 metros. Não tenho hipótese nenhuma.» Mas eu tinha mesmo necessidade dos óculos e lá lhe disse: «Eu vou atrás de si de cabeça baixa. Volta e meia vai levar uns pontapés, mas nunca pare!» Volta e meia ouvia um «José» interrogativo e eu de cabeça em baixo sempre a andar e a dar-lhe uns pontapés. Ahahahah.
E depois?
Quando já estava lá dentro, passado um bocadinho comecei a ouvir alguém lá fora a cantar e a tocar bombo. Ao mesmo tempo saiu um empregado que quando voltou trazia um pau assim desta altura [eleva o braço], mais ou menos. Ao início eram uns dez ou 15 gajos de bombo e outros a cantar. Passado um bocadinho entraram dois polícias: «Mister Manuel José, tem de sair.» Mas tenho de sair porquê? Estou aqui a tratar dos óculos!» Passado um bocado entra mais um empregado com outro pau E tiveram de fechar as montras. Fui espreitar e já havia quatro polícias, dois de cada lado da porta. Lá ao fundo já estavam para aí mais de 50 gajos aos gritos. Quanto mais tempo lá ficasse, mais chegavam. Entretanto, a questão dos óculos ficou tratada e eu disse ao doutor: «Ó você chama um táxi ou vai buscar o carro e para aqui mesmo à porta para me levar, se não estes gajos vêm todos para cima de mim.» Ele foi buscar o carro, mas o trânsito estava ainda mais entupido por causa dos adeptos, veio mais polícia e depois até o chefe da polícia. Já tinha oito polícias à porta do oculista. Conclusão: ele lá veio e na hora de ir embora o dono da ótica disse-me assim: «Mister José, não venha cá mais. Nós vamos lá ao hotel levar-lhe os óculos.» Nem morto eu ia para ali outra vez!
E foi fácil entrar no carro?
Foi, foi… Assim que entrei no carro e tranquei a porta já havia gajos em cima do tejadilho e em cima do capô do carro. Levámos uns 45 minutos a sair dali, já também com os gajos dos carros a quererem tirar fotografias. Dali até ao hotel onde eu vivia, de carro mesmo com aquele trânsito eram uns 20 minutos. Nesse dia levei hora e meia. Andar na rua, zero! Não havia hipóteses nenhumas de andar na rua. Eu queria ir a qualquer lado, ou ia de carro ou apanhava um táxi. E nos táxis era a mesma coisa: entrava e queriam logo tirar fotografias comigo. E depois andavam a conduzir e diziam aos outros que estavam a transportar o José. Nem sequer dava para ir a um restaurante, porque quem estava a comer levantava-se para ir tirar fotografias comigo. Era uma loucura.
E as viagens em África para outros países quando ia jogar a Liga dos Campeões? Teve muitas aventuras também?
As viagens em África, tirando Tunísia, Marrocos, Argélia e África do Sul, eram como andar nos autocarros da carreira. Não havia voos diretos. Parávamos em tudo quanto era sítio. Para o Senegal e também para outros países eram 22 ou 24 horas de viagem. E a jogarmos de três em três dias. Aquilo matava um gajo. Os treinos, sobretudo se depois tivemos um jogo fora no Egito, eram de recuperação e trabalho tático sem grande esforço físico.
E nesses países periféricos viu coisas estranhas? A espiritualidade está muito presente em certos países africanos.
Onde íamos jogar havia muitas vezes um feiticeiro todo pintado e para aí 40 ou 50 gajos também cheios de máscaras a fazer feitiços para a equipa deles ganhar. Aquela magia negra, uma coisa maluca, não é?! E os estádios estavam cheios que nem um ovo em todo o lado onde nós íamos. O Al-Ahly é muito famoso, mas era acima de tudo porque eles gostam muito do futebol. Mas dos piores países de todos foi o Zimbabué, no tempo ainda do Robert Mugabe. Fomos lá duas vezes e foi horrível!
Como foi?
Uma complicação do carago. E uma miséria tremenda. O Zimbabué, que era a antiga Rodésia foi no tempo das colónias dos países mais avançados e com melhor nível de vida de África, mas depois da independência aqui foi tudo ao fundo. Era uma confusão filha da mãe. E no Sudão, que fez parte do antigo Egito no meio dos faraós, também havia uma miséria, Deus me livre. E chegávamos a jogar às 8 da noite com temperaturas entre os 40 e os 45 graus. Um calor infernal. Pior do que aquilo só apanhei na Arábia Saudita quando treinei o Al Ittihad de Jeddah, onde em sete meses estive cinco sem receber ordenados. Nem eu nem os jogadores. Ahahah. Mas recebia sempre 50 por cento à cabeça lá fora. Ou era assim, ou não ia.
Em 2009 sai do Al Ahly pela segunda vez depois de ganhar uma série de títulos. Essa saída foi mais pacífica?
Essa foi tranquila.
Porque é que decidiu sair?
Eu naquela altura lia 60 livros por ano. Foi um trauma que me ficou quando eu era miúdo e andava a estudar na escola industrial em 1958/1959. Durante décadas lia um mínimo de 45 livros. Agora é que perdi o hábito e não pego num livro para aí há uns dois anos. Tenho em casa uns 20 livros para ler. Mas era um bom hábito que eu tinha e cultivei-me assim.
O que é que gostava de ler?
Tudo aquilo que me cultivasse. História universal, os grandes escritores. Temos dois apartamentos em Vila Real de Santo António e mais este aqui em Espinho. E têm livros por tudo quanto é sítio. Passava a vida a ler.
Falou do trauma que lhe ficou.
Ah, sim. Eu fui para o Benfica com 16 anos e o clube tinha de me pagar os estudos e fui para o Colégio Moderno. Nós treinávamos na antiga estância de madeira, que era ali no Campo Grande ao lado do Estádio Alvalade. Só que as aulas não eram compatíveis com os horários dos treinos. E, então, ou faltava ao treino ou às aulas e acabei a estudar na Escola Machado Castro, junto à Rotunda da Estrela. Uma escola industrial e comercial. Fui para aí dez vezes à Rua do Regedor, onde era a sede do Benfica, para me darem os livros ou dinheiro para comprar os livros. Mas nem uma coisa nem outra. Naquela época, a maior parte dos padres eram professores de religião e moral e de português. Eu ficava na mesma carteira do Machado, um colega meu que era lateral-esquerdo. Ele é que pagava os estudos dele, tinha livros e eu ficava ao lado dele a acompanhar. Um dia, o padre veio ter comigo e perguntou-me pelos livros. «Olhe, senhor padre. O Benfica é que tem de me pagar os estudos e também os livros. Já lá fui uma série de vezes, mas até agora nada. E o meu colega Machado sabe disso. Portanto, se fizer favor, deixe-me ficar aqui com ele até me darem os livros.» Foi assim uma, duas, três, quatro cinco e nada. Até que um dia, para aí à sétima ou oitava vez, o padre pergunta-me outra vez pelos livros. E a mesma história. «Da próxima vez que vieres sem livros, escusas de aparecer, se não eu ponho-te na rua.»
E depois?
Eu fui na mesma. E o gajo pôs-me na rua. Eu naquela época era tímido, mas quando ia a sair, parei à porta e disse: «OLHE, SENHOR PADRE! A CULPA NÃO É MINHA!! ESTÁ A COMETER UMA GRANDE INJUSTIÇA!! NÃO VENHO NA PRÓXIMA AULA E NEM VENHO A MAIS NENHUMA!» E deixei de estudar. Então, a minha forma de me cultivar foi a ler livros. E cultivei-me assim: a ler 30, 40 ou 50 livros por ano. E não me cansava. Onde quer que fosse, levava um livro comigo.
E a segunda saída do Al-Ahly?
É como eu ia a dizer e não concretizei. Apareceu Angola, que organizou o Campeonato das Nações Africanas em 2010. Eu estava farto de trabalhar: não tinha tempo para estar com o meu filho, com a minha mulher e para fazer coisa nenhuma. O nosso filho estava cá em Portugal, nós estávamos lá no Egito e a minha mulher passava a vida metida no hotel. Eu não podia andar na rua e de três em três dias tinha de viajar. E queria ter tempo para os meus hobbies: ler livros e pescar. Fui dez anos seguidos para a pesca na Ilha do Pico, nos Açores, onde tenho lá família. E fui duas vezes 20 dias seguidos para a pesca em Angola. Aqui em Espinho comprei um jipe Vitara de propósito para poder andar na areia quando podíamos andar com o jipe na areia. Chegava a Cortegaça, que fica a três ou quatro quilómetros daqui para sul, metia o carro na areia, as canas – levava sempre dois ou três amigos que eram tão malucos pela pesca como eu – e íamos vendo sítios até à praia da Barra na Ria de Aveiro. Fazíamos 40 e tal quilómetros pela praia. Andei à pesca por todo o lado: na Arábia Saudita, no Irão. Resolvi que queria viver. Ler livros, pescar e estar com a família, com os amigos e relaxar.
E como selecionador de Angola conseguia compatibilizar isso.
Sim. Porque o período em que fiquei lá mais tempo foi durante o Campeonato das Nações Africanas, em que fomos eliminados na segunda fase. Mas aquilo durou pouco. Eles depois também portaram-se mal. Tinha dinheiro para receber, mas disse-lhes: «Olhem, amigos. Fiquem lá com o dinheiro que eu não fico mais rico nem mais pobre, mas vocês portaram-se muito mal e eu vou-me embora.»
Entretanto foi para a Arábia Saudita e depois regressou ao Al-Ahly para uma terceira e última passagem em 2010, dois anos depois de ter saído do clube.
Uma terceira vez, sim. Voltei e fui feliz outra vez.
Mas essa terceira passagem foi mais turbulenta, porque semanas depois de chegar, em plena Primavera Árabe, acontece a queda do regime do presidente Mubarak e o campeonato é suspenso.
Ainda me meti no avião e vim-me embora mais a minha mulher e o Fidalgo Antunes, que era o meu preparador físico.
Sentiu-se inseguro no Cairo?
Eu era um deus para aqueles gajos todos. Do meu clube e dos outros, por isso não me fazia diferença nenhuma. Mas mesmo assim há gente ruim no meio daquilo. Eram tiros e assaltos todos os dias. À cautela viemos para Portugal. Estivemos cá uma semana ou pouco mais. Depois telefonaram-me a dizer que aquilo estava mais calmo e voltei. Mas voltei sozinho. À cautela.
E como é que reencontrou os jogadores, que terão passado por tudo sem sair do país?
O espírito não era o melhor. Ninguém se entendia no país naquela altura. Era tudo uma confusão filha da mãe. Agitação, comícios, gritos nas ruas, apedrejamentos às embaixadas dos outros países. E os jogadores viviam no meio daquilo tudo. Fechavam-se em casa e tinham receio, porque depois a política e a rivalidade futebolística entre o Al Ahly e o Zamalek misturavam-se.
Imagino.
O dérbi era vivido durante meses. Um mês antes já se falava do jogo e depois falava-se durante meses do resultado. Eu vivi isso logo no primeiro ano, quando perdi 2-1 no primeiro jogo. A Liga dos Campeões foi para eles como se tivesse ganhado um torneio do “tira o dedo do croquete”. Não ligaram nenhuma. Mas depois ganhámos 6-1. Tenho dois resultados famosos.
Imagino qual foi o outro [risos].
Esse e quando eu treinava o Sporting e ganhámos 7-1 ao Benfica [em 1986/87]. Mas o Benfica foi campeão e eu fui despedido antes. Queriam renovar comigo por mais dois anos, mas eu disse-lhes: «Se renovarem contrato comigo por mais dois anos, vocês vão ter de me despedir porque esta equipa não é boa.» Nós jogámos contra o Benfica em casa em contra-ataque. Joguei em 4x5x1 e só com um avançado: o Ralph Meade, um inglês rapidíssimo e fortíssimo que apareceu lá à experiência e ficou. E depois o Manuel Fernandes, claro, à frente dos dois médios de cobertura
Que marcou quatro golos.
Sem estar aqui armado em vaidoso, o estudo foi bem feito. Olhámos para as debilidades defensivas que o Benfica tinha e saiu tudo na perfeição. Mas aquilo não era o Sporting e também não era o Benfica, nem pouco mais ou menos. E não renovei o contrato. Passados dois meses empatámos 0-0 com o Rio Ave e no dia seguinte fui despedido. «Eu não vos disse? Vocês pouparam dinheiro.» Porque se tivesse renovado comigo e me tivessem despedido, teriam de me pagar tudo até ao fim.
Voltando ao Al-Ahly. O campeonato é reatado, é campeão, e no início de 2012 dá-se a tragédia de Port Said, em que mais de 70 adeptos morreram no jogo com o Al-Masry.
A situação mais delicada que vivi em toda a minha vida. Eu vi adeptos a serem atirados da bancada para fora do estádio, lá de cima. Tenho isso ainda muito bem presente na memória. Foi uma coisa do outro mundo. Lembro-me de ir para o aquecimento com os meus jogadores, com os meus dois adjuntos e o Fidalgo Antunes, senti frio. Voltei para trás para vestir um blusão e quando entrei no relvado vi o estádio completamente cheio, no fervor revolucionário. E as duas equipas a aquecerem no mesmo meio-campo. O nosso treinador de guarda-redes até estava a dar o aquecimento ao guarda-redes junto à baliza da equipa adversária. «O que é que estás aqui a fazer?!» «Mister é impossível estar ali: eles atiram pedras e outras coisas…» Atiravam coisas, insultavam e etc.
E havia muita polícia?
Havia pois. Mas eles estavam todos feitos uns com os outros. Fomos para o banco e era só cuspidelas e insultos. O árbitro parou o jogo três vezes, numa delas 20 minutos por causa de uma invasão de campo. E recomeçou sempre. Mas não devia, porque o clima era pesadíssimo. Uma das coisas que me ficou na cabeça foi que atrás da nossa baliza os adeptos da equipa adversária puseram uma tarja em inglês a dizer: «Hoje vão morrer todos aqui.» A polícia estava feita com os adeptos.
Porque é que diz isso?
Porque eles entraram no relvado como quiseram na primeira vez. Fugimos todos para o balneário, as duas equipas. Só mais tarde é que a polícia tirou aquela gente. Na segunda vez, assim que o árbitro apitou para o fim eles entraram em catadupa por ali fora. Os meus adjuntos e os suplentes saíram todos numa correria filha da mãe. E eu pensei: «Tenho a fama de ser um gajo de tomates aqui.» O que era verdade. Eu não tinha medo. «Se eu começar a correr, estes gajos vão-me matar, de certeza.» Vieram dois fulanos comigo, diretores do clube local mais velhos do que eu, a servirem de guarda-costas, mas sem conseguirem fazer nada. Ainda levei uma data de socos na cabeça e pontapés nas pernas. Mas fui sozinho, sempre a andar. Corri um risco tremendo. Houve um gajo que veio ter comigo e que me agarrou pelo braço: «Mister José. Come…» «Tira daqui a mão!» E continuei. Senti que aquele gajo não me ia levar para um lugar bom, percebi claramente que me ia levar para um sítio qualquer onde me iam matar. De certeza! Ainda por cima eu tinha a fama de ser um gajo que não tenho medo.
Mas aí teve, não?
Não tive, não! E foi o não ter medo que me safou. Porque se tivesse tido medo teria bloqueado completamente e estava tramado. Quando tentei entrar no balneário, onde já estavam todos menos eu, não consegui entrar.
E porque é que não conseguiu entrar?
Porque estavam centenas de gajos e eu não consegui passar por aqueles fulanos. Voltei para trás e levaram para a sala de imprensa, onde estavam os dirigentes do clube local, os dirigentes da Federação e os jornalistas todos. Passado uns 20 minutos de estar ali, disse ao presidente do clube local que ia voltar para o balneário. E ele: «Mister, não vá. Olhe que eles matam-no!» «Não matam. Se me quisessem matar, já o tinham feito. Eu vou para lá.» E os fulanos vieram comigo e aconteceu a mesma história outra vez: levei mais uns pontapés e uns socos na cabeça. Sempre por trás!» Mas continuava lá muita gente e voltei a não conseguir entrar no balneário.
E depois?
Meteram-me num carro e levaram-me para um quartel militar. Umas duas horas depois meteram noutro carro direito ao aeroporto. Quando estávamos a chegar, vinham quatro carros militares e quatro tanques de guerra com os jogadores do Al-Ahly em cima dos tanques. Depois disseram-me que no balneário os médicos e os massagistas já tinham tratado 50 e tal pessoas que tinham sido agredidas, principalmente com facadas. Só no balneário morreram três ou quatro pessoas. Mas eu vi as pessoas a serem atiradas do topo da bancada para fora do estádio na baliza do lado sul, que era onde estavam os adeptos do Al-Ahly e para onde foram os da equipa adversária.
Mas havia guerras entre claques que pudessem fazer prever algo grave?
Havia a convulsão no país. Aquilo era uma ditadura. Havia uns a favor e outros contra. E naquelas alturas é tudo exacerbado e mistura-se tudo. Foi um momento de grande tensão, mas curiosamente não tive medo. Se tivesse, tinha morrido. De certeza!
Li que houve jogadores do Al-Ahly que ponderaram terminar a carreira por motivos psicológicos.
Mas não terminaram. Eu vim trazer a minha mulher a Portugal e fiquei cá também. Passado uns tempos voltei.
Mas o campeonato estava suspenso, certo?
Sim. Esteve suspenso quase um ano. Fazíamos uns jogos amistosos e mais nada. Entretanto, a época foi cancelada e deixou de fazer sentido continuar lá. Havia muita confusão.
Chegou a pensar em terminar a carreira de treinador depois desse episódio?
Nunca pensei. E fisicamente também estava muito bem. Depois é que me comecei a cansar. Ao fim de mais de 20 títulos e oito anos com intervalos pelo meio à frente do clube já não havia mais nada. Aquela máxima de «nunca voltes a um lugar onde foste feliz» para mim não resultou, porque fui sempre feliz no Al-Ahly até àquele último momento. Mas depois achei que já não fazia mais sentido nenhum continuar.
Para finalizar: vem aí um jogo entre FC Porto e Al-Ahly no Mundial de Clubes.
Não tenho acompanhado o Al-Ahly.
E o FC Porto?
Vai fazer uma travessia no deserto. É uma questão de valores e de talentos. E quanto falo em valores, não falo só de dinheiro, embora isso também seja importante. Mas o FC Porto transferiu em janeiro os dois melhores jogadores que tinha, tirando o guarda-redes. O treinador é atrevido, mas em vez de ter dito que ia com a intenção de ganhar o Mundial, devia ter dito que ia com a intenção de ganhar o primeiro jogo. O FC Porto vai ficar muito longe das fases finais do Mundial. E é se não for eliminado logo no início, apesar dos adversários não serem grande coisa. Mas o FC Porto também não o é. O grande FC Porto pertence ao passado e eles não podem viver do passado.
E o que acha deste Mundial de Clubes?
Os jogadores queriam era férias, descansar, estar com a família e divertirem-se. Parece um castigo para os jogadores, ainda por cima num país onde a principal modalidade é o futebol americano. E depois o basquetebol, o ténis e só depois o futebol. Não é um país verdadeiramente com afeição pelo futebol.