«Vem aqui na hora do café da manhã», combinou Jardel. Às primeiras horas do dia encontrámo-nos com o goleador, descontraído e bem disposto, num hotel junto ao Estádio do Dragão. Na última semana, Super-Mário esteve em Portugal, um regresso ao Porto, com passagem por Lisboa. Veio sobretudo tratar da vida, bater a portas, tentar regressar ao futebol. «Só mais uma oportunidade», pede. «Só mais esta.» Agora, não como jogador, como tantas outras vezes chegou a clamar, mas como técnico, comentador, empresário… Qualquer coisa ligada ao futebol.

Jardel, nordestino do Ceará, foi até há bem pouco tempo deputado estadual no Rio Grande do Sul, no outro extremo do Brasil. Conseguiu a eleição pela popularidade alcançada como futebolista, desde os tempos do Grémio de Porto Alegre, clube de onde se transferiu para o FC Porto em meados da década de 1990. No entanto, várias irregularidades levaram a que o seu mandato fosse cassado em dezembro último.

Vê no futebol uma espécie de porto de abrigo, que lhe valeu uma carreira de golos, mas também de polémicas, que conta nesta entrevista, em que mostra o seu lado mais pessoal e deixa um desejo, qual Peter Pan no corpo de um homem de 43 anos, que, não obstante os percalços de uma vida de excessos, pontua cada frase com o sorriso de um bom gigante.

«Soares? Vi o gajo. Chegou para fazer história» - Entrevista (Parte 2)

Antes de conversarmos sobre o que o trouxe a Portugal, não há como falar consigo sem recordar a sua carreira. O Jardel marcou a história do futebol português. Lembra-se de como começou essa história?

Tinha sido vencedor e melhor marcador da Taça Libertadores pelo Grémio de Porto Alegre, já depois do Vasco da Gama, já tinha historial no Brasil quando cheguei ao FC Porto não demorei muito tempo a adaptar-me. Não gosto dessa palavra: adaptação. Acho que quando um jogador vem, tem de resolver. Se não for assim, é só mais um; igual aos outros.

Não tardou a fazer história no FC Porto: 168 golos em 175 jogos durante quatro épocas. Bota de Ouro, goleador do tri, do tetra e do penta…

Eu era um jogador de área. O importante era a bola chegar lá em condições e eu marcava, naturalmente. E chegou muita bola. Tinha bons assistentes: o “Drulo”, o Sérgio… Capucho, Edmilson, Artur…

Há uma técnica para cabecear como fazia ou era inato?

Esse dom nasceu comigo, mas capacitei-me mais. Treinava bastante finalização e isso tornou-me um jogador decisivo dentro da área: em três oportunidades tinha de fazer um golo. Um ponta-de-lança tem de ter essa eficácia.

Houve algum golo desse período no FC Porto que lhe tenha ficado na memória?

Vários. Aquele na Luz, frente ao Benfica, em que paro no peito e remato para o fundo da baliza (1-2, em 1997), por exemplo. É um clássico, marca sempre...

Por falar em clássicos, é verdade que foi aliciado para não jogar um FC Porto-Benfica?

Não quero entrar em detalhes. Foi em 1998/99, acho… Vieram com a tentativa de me segurar para não jogar. Não aceitei, claro. Isso não faz parte do meu carácter. Vou contar tudo isso no livro que vou lançar cá em Portugal. Vai ser uma edição bastante picante.

Fotos: Ricardo Castro

Após quatro épocas no FC Porto, acabou por sair para o Galatasaray, em 2000/01. Foi decisivo logo na conquista da Supertaça Europeia, mas não ficou lá mais do que uma época. Arrependeu-se de ter ido para a Turquia?

Um amigo e conterrâneo meu, o cantor cearense Raimundo Fagner, diz-me que eu nunca devia ter saído do FC Porto. Hoje se calhar seria o maior artilheiro da história do clube. Aliás, pelas estatísticas sou o melhor avançado do FC Porto em média de golos: quase um golo por jogo. Mas vida abriu-me a porta do Galatasaray: mais de um milhão de reais por mês, seis anos de contrato… Fogo! Era um dinheiro bom para mim e bom para o FC Porto.

Mas ficou apenas um ano lá.

Fiquei, fui campeão, mas botei na cabeça «quero voltar e pronto». Sentia saudades de Portugal e voltei. Fiz um acordo com o Benfica, mas não deu certo, com o FC Porto também não. E fui para o Sporting…

O que é que em concreto não deu certo no Benfica e no FC Porto?

Assinei contrato com o (Manuel) Vilarinho para ir para o Benfica, mas ele não cumpriu. No FC Porto, uns falam que – falar das pessoas agora é complicado...

Desacordo entre dirigentes da SAD?

Foi. E treinador também, que era o Octávio (Machado). O tempo foi passando, eu decidido a não voltar à Turquia e já com duas portas fechadas por cá. Foi aí que apareceu o Sporting. O contrato era bem menor do que aquele que eu tinha na Turquia. Um contrato razoável, não era o que eu queria, mas era o que havia no momento. Fui para lá e deu no que deu: acabei campeão e melhor marcador, com 42 golos na Liga, de novo Bota de Ouro como melhor goleador da Europa. O último título do Sporting foi comigo.

Encontrou uma grande equipa, com João Pinto, Pedro Barbosa, Quaresma e na segunda época surgiu um tal de Cristiano Ronaldo… Ele pedia-lhe conselhos ou não tinha confiança para isso?

Acredito que aprendeu alguns fundamentos do cabeceamento comigo, tal como eu aprendi coisas com ele. Era inteligente, observava-me e eu a ele também. Via-o trabalhar antes e depois do treino, sempre muito dedicado. O sucesso dá muito trabalho e o Cristiano investiu muito em si, trabalhou muito e merece todo o reconhecimento por hoje ser o melhor do mundo.

Quando ele apareceu muito jovem naquela equipa do Sporting acreditava que chegaria ao patamar em que está há quase uma década?

Nunca imaginei. Acho que surpreendeu toda a gente. Se naquele momento me pedissem para apontar um jogador daquela equipa que ia chegar ao topo mundial eu diria o Quaresma. Já jogava comigo e com o João Pinto a titular… O Cristiano era mais jovem e apareceu mais tarde.

A segunda época já não correu tão bem. Olhando para trás, o que correu mal para ter de sair do Sporting?

Vamos falar das coisas boas. Tive os problemas que todo o mundo sabe. Já passou, não quero falar.

Foi então para Inglaterra e teve dificuldades em impor-se no Bolton.

O treinador era o Sam Allardyce, aquele que teve recentemente um problema na seleção de Inglaterra. Eu cheguei lá e pedi-lhe para jogar, para me dar uma oportunidade: quatro jogos. Mas ele não me colocava nunca! Para quem, como eu, jogou 12 anos seguidos sempre a titular… Reconheço que psicologicamente não fui forte. Foi um retrocesso na minha carreira.

A partir daí representou Ancona (Itália), Newell’s (Argentina), regressou a Portugal para jogar no Beira-Mar, Anorthosis (Chipre), Newcastle Jets (Austrália), uma mão cheia de clubes no Brasil… Até ao Cherno More, da Bulgária, em 2010 [aquando da última vez que falámos consigo].

Não joguei muito, mas fui campeão na Austrália. Sou muito pé quente para ganhar títulos. Também por isso acho que posso ser um grande treinador: tenho sorte e conhecimento. A pessoa que apostar em mim pode dar-se bem.

Foi esse objetivo que o trouxe agora a Portugal?

Vim passear, reunir com alguns empresários para ver se se abrem as portas para vir para cá trabalhar. Estou na luta. Na próxima época gostaria de treinar aqui, se não for deputado.

O seu mandato de deputado estadual no Rio Grande do Sul cassado, em dezembro último. Em que ponto está essa situação?

Estou à espera do despacho da desembargadora para voltar a trabalhar. Ganhei o recurso, por uma votação de 12 a 7. Agora, estou refém dessa decisão. Vou dormir a pensar no que pode acontecer, fico agoniado por o assunto não estar resolvido. Mas o mais importante é que durmo de consciência tranquila.

Portanto, encara o futebol como uma alternativa?

Gostaria de voltar para cá e trabalhar como empresário, treinador ou, por exemplo, trabalhar os fundamentos do cabeceamento nos escalões de formação de um clube bom. Espero que algum clube possa abrir-me portas. Já tive propostas para trabalhar em clubes médios, mas queria trabalhar numa boa estrutura. Se muitos amigos meus são treinadores por que é que eu não posso ser? Ou comentador… É o meu meio. Quero manter-me ligado ao futebol. Fiz o curso de treinador em Porto Alegre e quero exercer. Não vou ficar em casa sem fazer nada.

Está com 43 anos agora, não é?

Sim. Queira estar com 23, mas não dá (risos). A única coisa que eu gostaria de mudar no mundo era parar no tempo. Quando eu jogava, só conseguia parar no ar.

Guardou muitos amigos dos tempos de futebolista?

Minha mãe e meu pai… (risos) Tenho ainda alguns bons amigos: Aloísio, Deco, um grande, grande amigo – aliás, estou a pensar em aceitar um convite dele para observar jogadores no Brasil. O João Vieira Pinto também. Visitei-o na Federação; é um homem de caráter, que manteve sempre a mesma personalidade. Gosto de gente assim. Tive gente que era minha amiga pela frente e por trás falava mal de mim para outras pessoas. Quem faz isso está a queimar a sua língua.

Ficou desiludido com muita gente no futebol?

A vida é assim. Há muitas coisas que não posso falar porque isso pode fechar-me as portas para voltar a trabalhar cá. Mas tive várias deceções. Espero que hoje possam ver-me com outros olhos e dar-me uma oportunidade por cá depois de eu resolver a minha situação no Brasil.

Mudaria alguma coisa na sua carreira se voltasse atrás?

Teria mudado o meu relacionamento com algumas pessoas.

Por exemplo...

Não quero tocar no assunto. Pessoas com quem me dececionei no futebol, que atrapalharam a minha carreira, más amizades: empresários, dirigentes, falsos amigos… É a vida do futebol. Quando você está lá em cima toda a gente está perto… Por o Jardel ser bom de mais às vezes é que às vezes ele se ferrou, por confiar nas pessoas. Serviu de lição. Hoje estou calejado. Quero dar esse exemplo para os jovens para os pais protegerem os seus filhos. Quando se está no futebol vive-se numa bolha. Mas a família é tudo.

O que espera do futuro?

Entrego na mão de Deus. Espero que as pessoas possam entender a minha história, por tudo que passei e abrir as portas para o Jardel mostrar-se um novo homem, como treinador, como alguém que por exemplo pode ensinar jovens nos escalões de formação. Se há escolas de futebol para guarda-redes, por que não pode haver para avançados?

(Pausa)

Espera aí… Isso são os golos que fiz ao longo da minha carreira? Posso ficar com esse papelzinho?

Pode, Jardel. Claro.

«Soares? Vi o gajo. Chegou para fazer história» - Entrevista (Parte 2)