O que mudou no futebol? Este é um tema que ocupa grande parte da conversa com Manuel Machado, que deu os primeiros passos como treinador na formação do Vitória de Guimarães e fez a carreira que todos conhecem, na Liga, a partir do sucesso alcançado no vizinho Moreirense, que levou da antiga II Divisão B à Liga principal, pela primeira vez na história. 

O futebol de hoje é diferente porque há vários fatores, quase todos externos ao jogo, a mudá-lo. Há o dinheiro, há a evolução das ciências complementares e até a própria formação. «Hoje querem que a criança aprenda futebol não se divertindo», lamenta o treinador do Moreirense. 

Nesta conversa com o Maisfutebol há ainda espaço para recordar promessas nunca cumpridas e jogadores que podiam, muito bem, ter passado ao lado de uma carreira, mas foram resgatados na hora certa. E ainda dois casos especiais: Bebé, que Machado orientou na fugaz passagem pelo Vitória, e Tiquinho Soares, por ventura o último talento a dar o salto depois de passar pelo crivo do professor. 

Leia também: 

«Moreia de Cónegos? Se vierem distraídos, entram e saem sem dar por ela»

«Vocês sabem que eu estive a morrer, não é?»

«Nem tinha consciência que tinha um discurso diferente»

O futebol desde que começou a treinar sofreu muitas mutações. É mais fácil agora com mais ferramentas, ou é mais difícil porque também há um estudo mais exaustivo do jogo?

O futebol como jogo é o mesmo. Deve ser olhado em três áreas. Uma área técnica, que é permanente. As regras têm sido alteradas, mas de forma muito leve, sem grandes alterações. Pelo crescimento dos atletas, o jogo tornou-se até menos bonito do ponto de vista técnico. A relação dos jogadores com a bola é mais difícil do que há trinta anos, com essa pressão maior. O jogo é menos fluido, há jogadas menos interessantes, o jogo fica mais transpirado, mas menos espetacular. Na parte técnica não há grande crescimento, como espetáculo não me parece tão rico como no passado. As questões logísticas eram muito inferiores, a malha da camisola, a chuteira, a qualidade do relvado, enfim. Isso cresceu imenso, mas mesmo assim não se faz um jogo muito bonito e tão bom.

Falou em três áreas...

Sim. A segunda área é a das ciências complementares e tecnologias que entraram no futebol. Hoje um clube como o nosso tem um nutricionista, um podologista, um fisiatra, um fisiologista e por aí fora. Tem ferramentas de suporte informático que permitem a qualquer momento saber quanto é que um individuo calça ou mede em qualquer ponto do globo, os espaços que percorre e outros dados. É uma área que, de forma evidente, evoluiu. Estas ferramentas não existiam. A terceira é a financeira, que também cresceu de forma exponencial, pelos valores que hoje circulam em termos de transações. Esta área sobrepõe-se e condiciona todas as outras numa sociedade moderna em que o Deus dinheiro é preponderante. Esta área está por cima da parte técnica e é a grande bússola do jogo.

Acha que hoje em dia há menos espaço para o talento?

O campo tem a mesma dimensão. O jogador cresceu muito. Quando me lembro de alguns jogadores com quem trabalhei, bons jogadores, jogadores de seleção... Até em posições específicas como a baliza. Dou um exemplo, tivemos o Jesus, que foi guarda-redes e depois treinador do V. Guimarães. Tinha 1m77! Era competente, foi colega do Damas e o Damas estava no banco; foi colega do Neno e o Neno estava no banco; foi colega do Silvino e o Silvino estava no banco. O futebol cresceu muito e há menos espaço para o talento. Sob o ponto de vista físico os atletas mudaram, o espaço que percorre e com a intensidade que o faz, disparou. Jogando no mesmo espaço, um jogador que corria 5km hoje corre 9km num jogo. Um jogador que tinha 1m70 hoje tem 1m90. Isso tira o espaço, cria-se maior pressão. 

E não se deixa pensar...

Exato. A questão espaço/tempo reduziu-se e o talento também. Sendo que outra questão que também está presente, é a questão motora. Aquilo que era um produto da rua, saltava o muro, subia a árvore, ia a pé para a escola, hoje não é o mesmo produto a nível de ferramentas motoras. Hoje há o menino que é levado à escola pelo pai, que sobe pelo elevador, que senta no computador e que faz desporto na escolinha, em condições muito formatadas e não tem a capacidade aquisitiva de destreza e habilidade. Isso condiciona a relação com a bola e, por reflexo, a questão do talento fica condicionada. Não quer dizer que hoje não nasçam miúdos talentosos, com habilidade...

Então que diferenças nota nos jovens que aparecem hoje em dia numa equipa sénior em comparação com o passado?

Fundamentalmente o que acabei por dizer. A relação com a bola. A bola hoje incomoda mais o praticante do que incomodava. Na altura, a bola era uma extensão do próprio corpo em grande parte dos jogadores. A relação com o objeto era fácil. Hoje não, em determinadas alturas, os jogadores fazem esforço para ter uma relação com a bola. Tudo o que se faz nas escolinhas de futebol é muito discutível. Fazer transitar o modelo adulto para o modelo criança muitas vezes não é o mais adequado. Há pouco jogo naquilo que é a sua essência, de deixar que a criança evolua por si mesma. Até na parte tática se começam a introduzir fatores. A criança aprende brincando e no futebol de hoje querem que a criança aprenda não se divertindo.

Consegue escolher na sua carreira um jogador a quem tenha vaticinado um futuro brilhante e tenha ficado aquém do esperado?

Há muitos exemplos. Há um jogador que vocês se calhar nunca ouviram falar, que é o Geani. Era da formação do V. Guimarães. Era uma referência como iniciado, juvenil e júnior. Foi campeão nacional de juniores. E apagou-se completamente. Para dar uma imagem: está a ver o Hugo Viana? Aquele canhoto que não é de grande raio, mas tem uma raquete? Na formação, a cada três livres ele fazia um golo. Não era de andar muito, mas punha a bola onde punha os olhos.

Ter uma carreira também é sorte?

Não, não é sorte. Tem a ver com ritmos e crescimento.

Já agora, e o inverso? Um jogador que o tenha surpreendido pelo nível que atingiu e a quem não vaticinava grande futuro?

Vou falar de outro canhoto. Chama-se Duda e ainda hoje joga no Málaga. Um dia na formação do Vitória apareceu-me lá um senhor com um miúdo que devia pesar 45 kg. Andou ali aquela primeira semana e pensei logo que o miúdo não tinha condições físicas, nem atléticas para jogar futebol. Mas depois há algo que faz a diferença: a relação com a bola. E nele, a bola era mais um membro do corpo. Disse então: vamos ficar com o miúdo e alimentá-lo convenientemente. Foi uma boa aposta, acabou por dar um jogador internacional A. Mas ainda incluo uma terceira categoria, que são os jogadores que vão ter que dar. Há os que prometem e não dão, os que não parece e dão e os que dizemos: tu vais ter mesmo de ser jogador. Nem que tenha de te moer a cabeça.

Vem algum exemplo à cabeça?

Dou-lhe dois e vocês conhecem-nos bem. Um chama-se Fernando Meira. Aos 15 anos era aquele homem de 1m90, super atlético, uma estátua. Mas era um moleza... Insistimos, foi crescendo, pela mão do Quinito recuou no terreno. Ele era um número 10 ou 7, mas o Quinito fez dele um 6-4. Um médio defensivo que jogava a central. Ganhou o nervo que lhe faltava. Tudo o resto ele tinha. Era tecnicamente bom, atleticamente super-bom, fisicamente fortíssimo, rápido, forte. E deu. Outro jogador que também tinha algumas condicionantes, de pequena estatura, atleticamente frágil mas tecnicamente sobredotado...Era um talento. Respirava futebol. Era o Pedro Mendes.

O Manuel Machado era o treinador do V. Guimarães quando chegou lá um tal de Bebé...

É outra história engraçada.

Bebé ao serviço do V. Guimarães

Como foi esse processo?

Há um senhor chamado Gomes que, por curiosidade, é tio do Paulo Bento e há muitos anos trabalhou com o V. Guimarães no scouting. Já depois de eu ter saído do Vitória ele ia-me indicando jogadores. Eu estava no Nacional e ele ligou-me a dizer que tinha um miúdo que era bom, que estava no Estrela da Amadora. Disse-lhe que quando o Estrela fosse jogar à Madeira, contra o Santana ou o Canicense, observávamos o miúdo. Só que coincidiu com o meu internamento. Não o vi jogar. Quando voltei a pegar no Nacional, uns dois meses depois, perguntei ao Rui Alves e ele disse que não tinha gostado do miúdo. Entretanto, saio do Nacional, vou para o Vitória e o Gomes volta a insistir. Falei com a direção e integrámos dois miúdos no estágio que ele trouxe. Um era o Bebé, o outro era o Gonçalo Silva, que agora é capitão do Belenenses. Fazemos um particular e o Bebé: golo. Outro particular: golo. Outro particular: golo. E pronto, nunca vestiu a camisola do Vitória num jogo oficial. Nesse mês fez-se a venda para o Manchester.

Não ficou surpreendido?

Não. Há questões acessórias que se tornam fundamentais. Mas dessas não quero falar.

Para encerrar este dossier jogadores, perguntava-lhe agora sobre o Tiquinho Soares, que deve ser o último jogador que lhe passou pelas mãos que acabou por dar um salto grande na carreira.

Chegou ao Nacional pela mão do Patacas, que me chamou um dia todo entusiasmado: Ó profe, venha cá ver um gajo que eu tenho aqui. Fui lá a um campito que tínhamos no Nacional, vi algumas coisas que gostei e perguntei-lhe: e dá para vir? E ele: claro, dois trocos e resolve-se isso. Põe-se aqui o miúdo em janeiro e depois no final logo se vê. Veio por empréstimo, por um valor irrisório. Mas ele estava grosso. Uns corriam para a frente, ele corria para trás. Jogava aquele futebol lá dos Estaduais do Brasil. Só que era de uma humildade, uma força física e, claro, a bola não o incomodava. Estávamos a apostar num jogador que se vendeu muito bem no final da época que foi o Lucas João. E, por isso, o Tiquinho foi entrando uns bocados. A aposta era o Lucas. No segundo ano, o Lucas saiu e ficou espaço para o Soares. Fez-se um novo empréstimo. A gestão não foi a melhor. Devia-se ter comprado. Porque o jogador disparou e depois o Vitória comprou-o. Em seis meses rentabilizaram de forma exponencial o investimento feito.

Soares ao serviço do Nacional

Mas é daqueles que entra na categoria dos jogadores que o surpreenderam por ter chegado onde chegou?

Não. Nada a ver. Eu não sou de guardar papéis. Dei dois ou três exemplos, mas há muitos outros. Estou agora a lembrar-me de um tipo chamado Makukula que também chegou, andava ali aos trambolhões, foi emprestado ao Brito, mas eu recuperei. Ou um tipo chamado César Peixoto, que também tinha sido dispensado e teve a carreira que teve. Um tipo chamado Moreno que foi dispensado na formação e que eu também fui buscar. São mais alguns casos...