Nove anos depois de deixar o Benfica, Javier Saviola abre a porta de casa - o monitor do computador, na verdade - ao Maisfutebol e aceita entrar numa viagem ao passado. O foco está na passagem pela Luz, naturalmente, mas quando se fala com um homem que tem o Barcelona, o Real Madrid e a seleção da Argentina no currículo, a conversa foge-nos das mãos. 

A carreira de futebolista profissional terminou em 2015, Saviola deixou Buenos Aires e mudou-se de armas e bagagens para um paraíso com vista para os Pirenéus. É de lá que nos fala da paixão pelo futsal, do curso de treinador que está posto de lado e de um amor ganho recentemente pelo comentário desportivo. 

Javier Saviola, 39 anos, um cavalheiro que carrega ao peito as passagens pelos maiores clubes e palcos do mundo, 40 vezes internacional argentino - três delas no Mundial de 2006. 

De sorriso fácil e pensamento quase poético, El Conejo prova que os currículos ricos não são incompatíveis com a simplicidade. A conversa está dividida em cinco partes.  
 

PARTE 2: «O Benfica sentiu no Bayern o que sentimos no FC Porto em 2010»

PARTE 3: «Com o Jorge Jesus nunca há meias palavras»

PARTE 4: «Insistiram comigo e lá fui ver um miúdo chamado Lionel Messi»

PARTE 5: «O Ruben Amorim divertia-me, não o imaginava treinador»

Maisfutebol – Já não o vemos há muitos anos. Onde está a viver o Javier Saviola?

Javier Saviola – Vivo há seis anos em Andorra. Vivo com a minha mulher e os nossos dois filhos, encontrámos um lugar maravilhoso para criar uma família. Estou perto de Barcelona [pouco mais de 200 quilómetros] e de França. Há natureza, ar puro e condições ótimas para praticar desporto. Não só futebol. Além disso tenho feito vários trabalhos como comentador desportivo, na TV3. Acompanhei a Copa América e tenho feito vários jogos do Barça. Também tenho o curso de treinador, tirado na federação espanhola, e já estive ligado a vários projetos de formação em Andorra. Num clube [FC Ordino] e nas seleções jovens. Mas tenho investido sobretudo no meu trabalho na televisão.

MF – Esse prazer de falar sobre futebol é recente ou sempre gostou do mundo da comunicação?

JS – Sempre gostei de ver e analisar jogos de futebol. Mesmo quando ainda era futebolista. Sentava-me e tentava perceber as mudanças táticas, as opções de cada equipa. Não só na liga espanhola. Via e vejo todo o futebol que posso. Ainda ontem [quarta-feira] vi o Benfica-Bayern. Sou apaixonado por este desporto. Ando sempre em busca de algum futebolista que tenha a capacidade de fazer coisas diferentes. Gostava de ainda conseguir jogar, mas agora só mesmo futsal (risos).

MF – Ainda joga pelo Encamp, campeão de Andorra?

JS – Joguei quatro anos nesse clube e deixei-o agora no verão. O futsal é outra paixão antiga. Comecei a jogá-lo aos oito anos, na Argentina. Depois o futebol levou a melhor, mas adoro ver e jogar futsal. Quando estava no Benfica, por exemplo, ia ver muitas vezes o Ricardinho. Mantenho uma relação muito próxima com ele, de grande amizade. O Benfica tinha uma grande equipa de futsal na altura. Quando deixei o futebol profissional [2015, River Plate], decidi vir para Andorra e o futsal reapareceu naturalmente na minha vida. O clube era bom e ainda consegui jogar na Liga dos Campeões.

MF – Viu a final do Mundial de futsal, Portugal-Argentina?

JS – Sim, sim, claro (risos). A Argentina melhorou muito, colocou-se entre as melhores da modalidade, mas já sabia que Portugal tem o melhor jogador do mundo e um lote de futsalistas muito forte a acompanhá-lo. O jogo foi bastante equilibrado. Até à expulsão do jogador argentino não havia uma superioridade clara de nenhuma das seleções. Qualquer uma podia ter sido campeã, estamos a falar de duas grandes equipas.

MF – Disse há pouco que tem curso de treinador. Tem a ambição de treinar a um nível mais alto?

JS – Quando comecei a fazer o curso, sim. Estava entusiasmado. No final do curso, quando percebi tudo o que envolvia ser treinador de uma equipa profissional – a gestão de jogadores, o tempo de estudo e análise, a relação com os adjuntos e a direção -, senti que era uma função demasiado exigente. Gostei, isso sim, de treinar os miúdos aqui em Andorra. Diverti-me, desfrutei e sinto que ensinei o que sabia à juventude.

MF – Em Andorra pratica outras modalidades? É uma região de muita neve no inverno.

JS – Pratico tudo o que consigo (risos). Agora até padel e ténis. Gosto de sair de casa e correr à vontade. Tive a possibilidade de estar no Jogos Olímpicos de Atenas [2004] e percebi o quão apaixonado era pelas outras modalidades, fora do futebol. Tenho o sonho de voltar aos Jogos Olímpicos, só para usufruir e ver os grandes atletas do mundo.

MF – Mantém alguma ligação a Portugal, nove anos depois de sair do Benfica?

JS – Tenho a sorte de estar rodeado de portugueses em Andorra, há aqui uma comunidade enorme. Há portugueses por todo lado e adoram futebol. São fanáticos, como os argentinos. Quando me cruzo com eles na rua, principalmente com os benfiquistas, falámos um bocado sobre o clube e damos um abraço. Também já voltei a Lisboa algumas vezes. Aliás, antes de optar por Andorra, a minha família esteve muito perto de escolher Lisboa para viver. Tive três anos maravilhosos no Benfica, fui sempre muito bem tratado e mantenho ligação com antigos colegas. Nuno Gomes, Luisão, David Luiz, Jorge Jesus, Rui Costa, o presidente [Vieira], falo com todos eles. Digo sempre que o Benfica foi uma das grandes experiências da minha vida. Entendíamo-nos muito bem dentro do campo e sentia-me muito bem na cidade. Sempre que falo do Benfica faço questão de dizer que foi um dos grandes clubes da minha vida, lado a lado com o River Plate, o Barcelona e o Real Madrid.

MF – O Pablo Aimar dizia-nos que fez «coisas divinas» com o Saviola no Benfica.

JS – É verdade. Sempre que estou com o Pablo, e somos muito amigos, falamos desses tempos. Tínhamos um grupo de jogadores incrível, comandado pelo Jorge Jesus. Ele formou uma grande equipa e passámos alguns dos anos melhores da nossa carreira. Estivemos noutros grandes clubes, mas no Benfica desfrutámos realmente do futebol e de tudo o que o futebol nos podia dar. Encontrámos o prazer de jogar. Quando falamos do Benfica só temos coisas maravilhosas a dizer.

MF – No futebol de 2021 há espaço e tempo para jogadores com o perfil de Aimar e Saviola?

JS – É complicado, o futebol mudou muito. Há dez anos o jogo era diferente e nós tínhamos essa facilidade de pensar e executar. O meu Benfica tinha o Pablo [Aimar] no meio-campo, mas também outros jogadores de grande nível. O Javi Garcia estava muito bem, o Ramires, o Di Maria, gente de enorme qualidade. O futebol era mais vistoso, podíamos demorar mais uns segundos a pensar (risos). Vejo o jogo agora demasiado físico. Olhemos para o Bayern, por exemplo. Estava a ver o jogo da Luz impressionado com o ritmo deles, a velocidade e a intensidade com que executavam tudo. O Bayern é outra vez um grande candidato a estar na final da Liga dos Campeões. É o exemplo mais claro da diferença de ritmo no futebol atual.