A seleção de andebol de Portugal conseguiu um apuramento histórico para os Jogos Olímpicos de Tóquio.

Fê-lo ao vencer a França, em Montpellier, seguindo com os gauleses para a prova e deixando pelo caminho a Tunísia e a Croácia, uma das seleções mais tituladas dos últimos anos na modalidade.

Em entrevista ao Maisfutebol, Paulo Jorge Pereira falou de um feito conseguido num dos momentos mais dramáticos da vida de todos os intervenientes, duas semanas após a morte de Alfredo Quintana.

Falou também de como a preparação para a competição mais importante da história do andebol nacional foi feita de forma a que os jogadores se conseguissem abstrair dessa ferida profunda.

E das emoções. De como o feito foi alcançado, com um golo nos últimos segundos do jogo contra França. Das lágrimas por Quintana no jantar após o apuramento. E claro, daquela que considera a melhor geração do andebol nacional. A «Geração Platina» para a qual «não há palavras que a descrevam».

Já não há palavras.

Maisfutebol: Admitiu antes do torneio pré-olímpico que tinha muito pouco tempo para treinar antes da competição mais importante da história do andebol português. Mas alguma vez tinha precisado de fazer um trabalho mental tão forte com os jogadores?

Paulo Jorge Pereira: Nunca na vida. Com os jogadores e comigo próprio. Isto foi a coisa mais extraordinária que fizemos. Tentei preparar-me o melhor possível para abordar uma situação que nunca tinha vivido. A perda de um jogador como aconteceu e com os colegas dilacerados na alma. Os colegas e nós.

MF: Como se preparou para este momento?

PJP: Falei com o Alexandre [Santos], treinador que estava no Alverca quando viveu uma situação semelhante [morte de Alex Apolinário]. Foi uma conversa extraordinária sobre o que ele tinha feito e que me ajudou a pensar no que eu poderia fazer. Também falei com a psicóloga do FC Porto, que acompanhou o que estava a acontecer e que esteve sempre disponível para ajudar qualquer um deles. E aconselhou-me a fazer uma ou outra coisa. Depois há coisas que nós intuímos que devemos fazer. E foi muito interessante o que se fez. Mas não podemos esquecer que mais de 90 por cento deste trabalho deve-se aos jogadores.

MF: Que cuidados teve com eles?

PJP: Na convocatória individual que lhes mandei escrevi lá que eles teriam de fazer a decisão mais clara da vida deles para vir jogar estes jogos. E até esperava que algum me pudesse dizer que não estava em condições para vir jogar. E nós tínhamos de aceitar. Eles é que tomaram essa decisão. Por muitos psicólogos que houvesse, se eles não tivessem decidido que queriam jogar aquele pré-olímpico por eles e pelo Quintana, era impossível. Era impossível. Por isso, o principal cuidado foi não ignorar. Na primeira reunião que tivemos em Rio Maior, tivemos de falar sobre isso. Frente a frente, sem esconder nada. Foi uma conversa muito curta, mas foi dela que avançámos para ir em busca do objetivo.

MF: Sentiu em algum momento a necessidade de dizer o nome dele, ou de evitar dizê-lo?

PJP: Fiz uma outra coisa. Quando preparei a nossa defesa para o jogo com a França, transformei os meus vídeos do jogo contra eles no Mundial em Keynotes, que é uma espécie de Powerpoint. Meti os nomes dos jogadores e aquilo que eles faziam. E fiz isso só por uma razão: porque não queria mostrar imagens onde estivesse o nosso querido Alfredo Quintana. Porque acho que eles não se iriam conseguir concentrar. Isto não foi para fugir, foi apenas para centrar a atenção deles no que precisávamos de centrar.

MF: Teve um discurso público derrotista depois do jogo com a Croácia. Foi para francês ouvir?

PJP: Foi, foi. Após a derrota com a Croácia, eu pensei que tinha de passar a imagem de que estávamos completamente destruídos e que já não era possível. Mas mal saí da conferência de imprensa, aquilo que disse aos jogadores foi que tinha um orgulho imenso neles. E que tínhamos falhado a primeira bala, mas íamos conseguir a segunda. Porque aquilo ainda não tinha acabado. Mas o que quis fazer chegar aos franceses foi que estávamos completamente destruídos. Acho que foi uma boa opção termos feito isso.

MF: Quando Portugal estava a perder por seis ainda na primeira parte com a França, chegou a lembrar-se do jogo no Mundial em que a equipa desistiu demasiado cedo de lutar pela vitória?

PJP: Sim. Uma das coisas que escrevi no quadro foi ‘chega’. E tinha a ver com isso. Nós temos de desfrutar pelo facto de estar aqui a lutar com os melhores e nunca vamos desistir. Chega. Nem que estejamos a perder por 10. E acho que se conseguiu isso.

MF: Qual foi o segredo para ir buscar aquela vitória?

PJP: Nós defendemos muito bem. Acho que até fomos a melhor defesa do pré-olímpico. Com guarda-redes com menos experiência do que o Humberto Gomes, por exemplo. Estes miúdos [Gustavo Capdeville, Manuel Gaspar e Diogo Valério] tiveram um papel extraordinário. Não fizeram jogos mirabolantes com 18 ou 20 defesas como às vezes vemos, mas fizeram a parte deles. Fizeram as defesas de que precisávamos. E tinham uma carga enorme sobre os ombros. Nós demos-lhes muita confiança e até nisso conseguimos atingir os objetivos.

MF: Temeu que aquele golo em cima da buzina fosse validado?

PJP: Não foi temer, porque eu tinha a certeza que não era golo porque ouvi a buzina antes. Mas com o que tinha acontecido no dia anterior…

MF: Só o professor o Paulo Fidalgo [adjunto] e o Daymaro Salina não começaram logo a festejar…

PJP: Eu não saí a festejar porque a minha preocupação foi logo dizer: ‘Não, não! Não foi golo, não foi’. E depois como já tinha passado aquela onda de saltos e saltos, o que fiz foi abraçar cada um deles sem tempo. Abraçá-los sem ser a correr. E falei-lhes um bocadinho ao ouvido. 

MF: Percebe o que ‘segurou’ o Daymaro?

PJP: Consigo perceber perfeitamente. No lugar dele, provavelmente faria o mesmo. Mas ele era um dos que estava mais contente. Por tudo o que sabemos e pela relação que tinha com o Quintana. Por exemplo, no jantar depois da França, havia alguma música e percebi que o Iturriza estava mais afastado e com lágrimas nos olhos. E fui lá ter com ele e disse-lhe: ‘olha que o Quintana era o primeiro a meter a música, já sabes que ele é que mandava na música’. E depois o Tiago Rocha e o Daymaro tiveram um papel fundamental porque levaram-no um pouco lá fora e quando vieram, já vinham todos felizes. Portanto, chapeau ao Daymaro.

MF: O Rui Silva disse-me que se pudesse escolher, voltaria a perder com a Croácia para depois conseguir aquela vitória com a França. Concorda com ele?

PJP: A minha mulher disse: ‘vocês conseguiram ganhar à França e eliminar a Croácia’. Isso ainda é melhor, claro. Ganhámos à França e eliminámos a Croácia. Por isso, sim, eu escolhia como o Rui.

MF: Não poupava o coração à malta, portanto…?

PJP: Não poupava nada porque assim soube muito melhor. Se tivéssemos vencido a Croácia, depois íamos fazer a festa com os franceses – que não era mau, era muito bom -, mas acho que ainda foi melhor assim. Poça! Ainda foi melhor assim.

MF: O apuramento para os Jogos Olímpicos é conseguido sem Quintana, sem Humberto Gomes, sem Gilberto Duarte, sem Alexis Borges e, contra a França, também sem Miguel Martins. Cada vez parece haver menos limites para esta equipa.

PJP: Este plus que nós tivemos, sabemos bem de onde veio. Veio da vontade enorme de honrar a memória do nosso querido amigo Quintana. Esse plus esteve sempre lá. É muito difícil saber se isto teria acontecido, sem o que se passou antes, mas a verdade muito do querer veio daí. Mas atenção que isto também já aconteceu no Europeu…

MF: Com a ausência do Gilberto Duarte…

PJP: Exatamente. Toda a gente dizia: ‘eish, não está o Gilberto, já acabou’… E não. Não é assim, calma. Nós temos gente. Não temos muita gente e não temos grande margem para errar, é verdade. Mas eu acredito muito nos atletas que estão. E é com esses que vamos. Eu nunca meti as mãos na cabeça por me faltar alguém. Se eu fizesse isso, eles eram os primeiros a dizer que eu não confiava neles. Nunca fizemos isso nem vamos fazer.

MF: Já disse que chegou a temer que o achassem maluco pela ambição que revela nos objetivos. Mas agora assume essa loucura de forma descarada. O que mudou?

PJP: Assumo, claro que assumo. Eu já sou profissional de andebol há 15 anos e houve alturas que eu já me senti bem em ficar segundo lugar. O primeiro dos últimos. E tentava encontrar formas de explicar que ser segundo também é bom: ‘atenção, somos vice-campeões. Não somos campeões, mas somos vice’… Primeiro dos últimos! E com o tempo fui percebendo que o caminho não é por aí. Tu até podes ficar em segundo, mas não podes ficar contente por ser segundo. E eu fui desmontando isso comigo próprio. Além disso, gosto muito de desafios. Porque nunca tive uma vida fácil.

MF: A tal mentalidade que também ajudou a mudar em Portugal…

PJP: Sim, nós podemos perder, mas já não entramos em campo a perder por cinco. Acabou! Isso já não acontece porque percebemos que temos capacidade por lutar com os melhores. E muito graças a esta malta jovem também. O Miguel Martins, o André Gomes, o [Luís] Frade… Eles olham para os adversários sem medo nenhum. É para ir para cima deles! Esse descaramento, que nós até temos de controlar um bocadinho, também nos fazia falta. E agora está mais incrementado.

MF: A geração de Carlos Resende é considerada a ‘Geração de Ouro’ do andebol português. Que nome daria à geração que conseguiu os resultados dos últimos dois anos e meio?

PJP: Aquela geração que jogava em 2000 tinha atletas de excelência que eram referências para os mais novos. As pessoas conheciam-nos. E agora, como tudo é mais mediático do que nessa altura, os miúdos já começam a seguir estes jogadores também. Eles começam a ser ídolos. Por isso, diria que esta é a ‘Geração Platina’. Aquela geração foi espetacular, mas não há palavras para descrever esta.

MF: Há um ano, antes do torneio pré-olímpico dizia que o único medo que tinha era que a covid-19 impedisse a seleção de ir aos Jogos. Agora que o apuramento foi conseguido teme ainda mais isso?

PJP: Tivemos uma situação curiosa que posso contar agora. Quando fizemos o último teste em Rio Maior, às 21h, e com viagem para Montpellier de manhã, tivemos três casos positivos. Conseguem imaginar o que foi aquilo? O que pensámos logo é que devia haver mais gente infetada. Então, pensámos logo em ir buscar o Tito [ponta direita] ao Porto, conseguimos que o médico do FC Porto – que foi excecional e a quem agradeço publicamente – fizesse um teste PCR para ele poder viajar no dia seguinte. E alguém disse: e porque não repetimos o teste? Conseguimos então que os três que tinham testado positivo repetissem o teste… e eram três falsos positivos. Mas ficámos todos doidos a pensar ‘será que?, será que…?’. Depois, em Montpellier, fizemos vários testes e deram sempre negativo. Portanto, a covid-19 não pode connosco [risos].

MF: Pode dizer quem eram os três casos?

PJP: Sim, era o António Areia, o André José [central do ABC chamado apenas para o estágio em Portugal] e um dos fisioterapeutas. Foi um momento difícil.

MF: Não podemos terminar sem falar da tatuagem que prometeu fazer em caso de apuramento para os Jogos Olímpicos. Já tem isso marcado?

PJP: Ainda não, ainda não. Mas até já mandei uma ideia para um tatuador. Até foi uma ideia da minha mulher e do meu filho mais velho: desenhar os anéis olímpicos, depois escrever ‘Tóquio 2021’; o zero ter a haste do ‘Q’ de Quintana e o ‘1’ ser o ‘um’ do guarda-redes, assim mais a cheio. Acho que está excecional. Ainda não sei onde a vou fazer, mas uma coisa que quero é poder vê-la. Nas costas não vai ser, de certeza. Porque quero poder olhar para a tatuagem quando achar interessante.

MF: E o resto da equipa técnica já está toda de acordo? A tatuagem era para todos…

PJP: Já falámos, mas há divergência em relação ao local. Há quem goste mais num sítio, outros noutro sítio. Acho que vamos deixar isso ao critério de cada um [risos]. Mas todos vão fazer, isso é seguro.

MF: Será a sua primeira tatuagem?

PJP: Sim. Nem nunca me imaginei a tatuar alguma coisa. Numa altura em que toda a gente tem tatuagens, eu queria marcar pela diferença e não ter. Mas afinal não vou conseguir [risos]. E se calhar atrás desta ainda pode vir outra… [gargalhada].