Assertivo. Sem meias-palavras ou meias-ambições.

A fórmula seguida para levar a seleção portuguesa de andebol ao melhor resultado de sempre num Europeu, o 6.º lugar, num regresso aos grandes palcos 14 anos depois da última participação, é a mesma com que Paulo Jorge Pereira se senta à conversa com o Maisfutebol, para uma grande entrevista.

Inicialmente, a ideia era olhar para o torneio pré-olímpico, marcado para meados de abril. A pandemia mundial do novo coronavírus adiou, entretanto, a competição que coloca Portugal frente a frente com a França, a Croácia e a Tunísia, mas a conversa não se perde.

Durante cerca de uma hora, o selecionador nacional de andebol olhou um pouco para trás, analisou o que de bom foi conseguido no Europeu de janeiro, e falou sobre o futuro que recusa projetar em pequenino.

Porque rastilho já está a arder de forma imparável, acredita. Só alerta que é preciso cuidado porque «às vezes a explosão em vez de atingir o inimigo, atinge-nos a nós».

Maisfutebol: Esteve na Universidade Europeia, em Lisboa, a falar sobre o «caso de sucesso do andebol português». Qual foi a mensagem mais importante que quis deixar?

Paulo Jorge Pereira: A mensagem de que o céu é o limite. Essa é sempre uma mensagem fortíssima. Escrevi na apresentação que ‘quando os objetivos são muito difíceis de atingir… ninguém se aborrece’. Porque é difícil uma pessoa aborrecer-se quando tem um objetivo forte e consegue manter-se focado nele. Essa foi a mensagem que quis deixar: todos podem conseguir o que quiserem desde que se proponham a isso. Mas claro que há um preço a pagar, não é gratuito atingir um bom resultado.

MF: Antes do Europeu, disse que o apuramento era um rastilho, mas que ainda faltava fazer o incêndio. Esse rastilho do sucesso ainda se pode apagar, ou já está suficientemente forte para arder?

PJP: Acho que já não é possível apagar o rastilho. Mas temos de ter cuidado porque às vezes a explosão, em vez de ferir os outros, fere-nos a nós. Quando fazemos a armadilha, temos de direcionar bem os estilhaços. Porque agora, ao interpretar este nosso sucesso, temos de o fazer de uma forma coerente.

MF: O que significa isso?

PJP: Primeiro, significa perceber que nós temos nível para ter esta prestação, isso é real; e logo a seguir, temos de dizer que foi ótimo, conseguimos o melhor resultado de sempre, mas não foi nenhum título. Foi apenas o melhor resultado de sempre. E com as nossas coisas boas e menos boas, com o nosso contexto, quando nos comparamos com outras seleções, temos de manter os pés assentes, ainda que sabendo que podemos lutar contra eles de igual para igual.

MF: Mas isso já é um pouco diferente da forma como se pensava antes…

PJP: Sim. Porque agora sabemos que qualquer resultado é possível. E dizer que qualquer resultado é possível quando vamos jogar a Paris contra a França, já é algo bom. Aqui há uns anos, íamos lá para saber por quantos íamos perder. Contra a Croácia, idem aspas. Estamos a falar de duas das seleções mais tituladas do planeta. Agora, que podemos lutar sempre pelo resultado com essas seleções, isso é evidente.

MF: Esse também era o rastilho de que falava?

PJP: Sim, é aquele estigma de derrota que existia há muitos anos. Há 14 anos [que Portugal não participava numa fase final de um Europeu]… E mundiais, organizámos o Mundial em casa [2003] e tivemos direito a participar nele. Agora temos a possibilidade de ir ao pré-olímpico e depois a qualificação para o Mundial de 2021 será mais uma oportunidade que temos.

MF: Em 2007, o rugby foi muito falado, conseguiu o apuramento para o Mundial, mas depois não houve uma continuidade da evolução. O que tem de acontecer para que o andebol não passe pela mesma situação?

PJP: Eu recordo-me dessa participação do rugby e de como nos sentimos orgulhosos ao vê-los. Até pela forma como cantavam o hino. Mas acho que a prestação do rugby naquela altura foi diferente da que nós tivemos no Europeu. Ainda que a nível de interpretação da competição, tenha sido muito parecida. Nós também podíamos nem ter passado à fase seguinte. E o nosso compromisso não teria sido diferente. Agora toda a gente me pergunta o que aconteceu, ninguém entende nada. Se nós tivéssemos perdido, todos sabiam o que tinha acontecido: ‘o treinador era fraco, o staff é todo português… coitados, não percebem nada disto’.

MF: Mas o que é preciso fazer para que se continue a falar do andebol?

PJP: Temos de continuar a trabalhar da mesma maneira, manter o mesmo compromisso e fazer com que isto seja apenas um impulso. Acho que todos os atletas já entenderam que podem jogar com os melhores do mundo. E houve muita gente que trabalhou para isto. Não foi só este staff da federação, ou só os clubes. Foi muita gente. E agora temos de manter a humildade, o compromisso e a motivação intrínseca que é obrigatório ter. E que muitas vezes tem a ver com uma coisa simples: fazer história.

MF: É essa a base de pensamento neste momento?

PJP: Pode haver maior motivação do que a de fazer história? Há algo maior do que ficar perene na sociedade? E os atletas interpretaram bem aquilo que quisemos fazer. Se calhar há uma coisa em que fomos campeões: fomos campeões da mudança. Mudámos um pouco o que era o estigma da derrota. Mas isso não é um título e não ganhámos nada mais do que isso. Temos de continuar.

MF: Não só pelos resultados, mas também pela forma como Portugal se bateu com as melhores seleções do Mundo, houve muita gente que começou a olhar para o andebol de outra forma. O que é preciso para conquistar mais adeptos para o andebol?

PJP: É preciso continuar a ganhar. Mas às vezes nem é tanto o ganhar. Nós abordámos a competição sempre a olhar de igual para igual para todos os adversários. Qualquer bola era discutida e isso chamou a atenção. Porque as pessoas adoram isso. Identificam-se com essa capacidade de luta que tivemos. Tenho a certeza que a maioria dos portugueses se sentiram orgulhosos em ver-nos a desafiar qualquer um.

MF: E isso vai continuar?

PJP: Isso é para continuar. Até porque nós não aceitamos desvios nesse caminho. E não somos os melhores do mundo, tal como não éramos os piores antes da qualificação.

MF: Durante o Europeu, nos países onde se jogou, sentia-se um verdadeiro encantamento dos adeptos do andebol pela forma como Portugal jogava. Isso é um sinal de que o trabalho está a ser bem feito?

PJP: Eu acho que sim. O trabalho está a ser bem feito. Mesmo a nível da formação, há muita gente em Portugal que trabalha bem. Mas temos sempre de melhorar coisas e trabalhar mais em conjunto no que é a troca de ideias.

MF: Disse recentemente que chegar aos Jogos Olímpicos seria…

PJP: A loucura total! A isso já nem chamaria história [risos]. Nós [Portugal] nunca tivemos nenhum desporto coletivo sem ser o futebol nos Jogos Olímpicos. Se nós estivéssemos presentes… Sabendo que [o torneio pré-olímpico] vai ser a competição de maior exigência da vida de todos nós. E nós sabemos isso, mas se a superarmos, quem vier atrás que faça melhor.

MF: Será um enorme desafio em apenas três dias.

PJP: Três dias… full. Três dias sem erros. Isso é muito difícil.

MF: Também nisso o Europeu foi uma preparação importante?

PJP: Claro. Nós aprendemos muitas coisas no Europeu. Aprendemos que podemos jogar contra qualquer um e que podemos ganhar, perder ou empatar; aprendemos que temos de jogar com o nosso estatuto: temos de perceber que um árbitro pode assinalar passos ao Rui Silva como aconteceu com a Eslovénia, e que permita golos com cinco passos ou os dois pés dentro da área ao Pálmarsson [central da Islândia e do Barcelona]. Não podemos esperar que seja diferente. Nós temos o estatuto que temos, acabámos de voltar às competições deste nível e ainda não temos estatuto. Os árbitros olham para nós como outsider. Fizemos muito ruído neste Europeu e talvez já olhem para nós de forma um pouco diferente na próxima competição, mas isto é algo que se conquista ao longo de vários anos a estar presente.

MF: Ainda será como outsider que Portugal chega ao pré-olímpico?

PJP: Sim. Conseguir um grande resultado neste pré-olímpico, com o estatuto que ainda temos, seria mesmo a loucura. Porque são só 12 seleções a nível planetário que vão estar ali. Conseguir seria extraordinário.

MF: No Europeu houve dois jogos em que a equipa se deixou claramente influenciar por decisões de arbitragem. Já estará agora preparada para lidar com essa questão de estatuto?

PJP: Ainda há pouco quando falei das coisas que aprendemos, ia dizer que houve uma que não aprendemos. Nós não aprendemos a manter-nos firmes no nosso objetivo, sem ouvir o que se diz à nossa volta.

MF: Como assim?

PJP: Antes de ganharmos à Suécia, o nosso objetivo era melhorar o sétimo lugar, de 2000. E depois dessa vitória, a imprensa começou a falar da meia-final. ‘A meia-final, a meia-final… isto já esteve mais longe, é possível…’. Internamente, nunca falámos da meia-final, mas no nosso inconsciente, ela estava lá. E deixámo-nos levar um pouco por isso. Ganhámos à Suécia por 10 e depois houve aquele momento-chave em que as equipas habituadas a este ritmo não falham, e nós falhámos. Falhámos, entre aspas. Porque perdemos com a Eslovénia e a Islândia, que são seleções de altíssimo nível. Mas talvez pudéssemos ter feito melhor se nos mantivéssemos firmes e pensássemos só no próximo adversário.

MF: A tal ideia de pensar sempre jogo a jogo…

PJP: Se aprendemos a lição, agora, no pré-olímpico, não vamos pensar na Croácia nem na França. Vamos pensar na Tunísia. Vamos analisar a fundo a Tunísia, embora haja troca de treinador, e vamos centrar-nos nesse primeiro jogo. Que é o que é mais importante ganhar. E depois o segundo jogo também já estará preparado. Mas é um jogo de cada vez, sem andar a pensar que se ganharmos à Tunísia, já estamos. Isso é impossível. Mas se quisermos pensar chegar lá, temos obrigatoriamente de ganhar à Tunísia.

MF: Que não é uma equipa fácil…

PJP: Não. A Tunísia, num dia bom, pode ganhar a qualquer seleção. A Tunísia perdeu [na final do CAN] com o Egipto, que foi só o sétimo classificado do último campeonato do mundo. Esse também vai ser um jogo muito difícil.

MF: Trabalhou na Tunísia durante três anos, esse conhecimento pode ser uma mais-valia, ou a Tunísia está muito diferente?

PJP: Sim, é uma mais-valia. Fazem parte dessa seleção vários atletas com quem trabalhei no Espérance [Tunis]. O lateral-esquerdo e o ponta-esquerda, por exemplo, que jogam muito tempo. O pivô, que agora está a jogar em França, também trabalhou connosco. Esses três conheço muito bem e os outros, de uma forma geral, também conheço. Por isso, acho que é uma vantagem.

MF: E com a França, não há duas sem três, ou vai haver um sentimento de vingança da parte deles?

PJP: Acho que eles não pensam em vingança. A pensar nisso, teria sido já neste Europeu. A partir do momento que perdem duas em três, vão querer mostrar que a culpa era do treinador [Didier Dinart, despedido em janeiro].

MF: Isso pode ser bom ou mau para Portugal?

PJP: Pode ser uma vantagem ou uma desvantagem. Porque o treinador adjunto mantém-se, o grupo de jogadores – que supostamente não teve culpa nenhuma – também se mantém. E vai haver vontade de mostrar que quem teve culpa foi o treinador. Mas nós vamos ser os mesmos.

MF: Além dessa vontade, vão estar a jogar em França.

PJP: Sim, o contexto vai ser diferente, porque vamos jogar em Paris, num pavilhão que leva 18 mil pessoas. Mas nós não temos rigorosamente nada a perder. E oxalá, já pudéssemos chegar ao último jogo com tudo resolvido. Isso é que era (risos).

MF: Isso significava que se teria ganho à Tunísia e à Croácia, que acabou de ser vice-campeã europeia e teve o MVP do Europeu…

PJP: O nosso ataque terá de ser sublime perante a defesa 5x1 que eles têm, com o Duvnjak à frente. Se conseguirmos atacar aquele sistema com algumas boas ideias e identificarmos onde eles são mais vulneráveis - e se olharmos bem vamos conseguir ver isso, como a Espanha viu [na final] -, é possível combater e vencer a Croácia. E voltamos ao slogan que utilizámos desde o primeiro dia de estágio para o Europeu: «Eles vão ver-se à rasca para perder connosco».

MF: Uma inversão da frase original…

PJP: Sim: eles vão ver-se à rasca para perder connosco. Para perderem connosco. Os atletas ficaram a olhar e pensaram que eu me tinha enganado. E eu repeti: para perderem connosco. Quando eles começaram a rir-se, eu vi que eles já tinham entendido. Porque quando dizemos ‘eles vão ver-se aflitos para nos ganhar’, já estamos a assumir a derrota. E nós tentámos mudar essa forma de pensar desde o primeiro dia.

MF: Há um regresso à seleção que é mais ou menos previsível para o pré-olímpico, o do Gilberto Duarte. Mas o Iturriza também já poderá ser chamado e o Diogo Silva também recuperou de lesão. Esses são três nomes que podem estar da convocatória?

PJP: Estão todos. A lista de 28 está pronta, eu ainda não a entreguei e fizemos uma proposta para que a lista não seja entregue um mês antes. Porque vivemos isso na pele agora no Europeu: entregámos a lista um mês antes do primeiro jogo e passado dois dias tivemos dois jogadores que se lesionaram. Por isso, propusemos entregar 15 dias antes. Agora, quem vai ser convocado, ainda não sei. A lista está sempre a mudar. Não vai haver muitas mudanças, mas vai haver mudanças, de certeza.

MF: Não haverá a tentação de convocar jogadores para o pré-olímpico como forma de prémio pelo Europeu?

PJP: Não. Para o pré-olímpico vão os 18 jogadores que estiverem melhor para representar Portugal naquele momento. Independentemente do que aconteceu no Europeu.

MF: A situação do Coronavírus preocupa-o?

PJP: O meu receio é que o Coronavírus nos impeça de ir aos Jogos Olímpicos. Esse é o único receio que tenho.

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