José Gomes começou a época no Rio Ave, na sua primeira experiência como treinador principal na Liga, depois de oito anos no estrangeiro. Em dezembro surgiu uma oportunidade que era um sonho de sempre, treinar em Inglaterra. E rumou ao Reading, em situação complicada, para mudar muita coisa e acabar a época a manter a equipa no Championship e a ver o estádio vestir-se com as cores de Portugal para o saudar.

Em entrevista ao Maisfutebol, o treinador português fala sobre esta época intensa e «duríssima», conta como a oportunidade do Reading surgiu «sem a ter procurado», depois de andar «10 anos a tentar ir para Inglaterra».

E conta como a paixão pelo futebol inglês vem de longe e tem uma inspiração: Bobby Robson, modelo e exemplo para um jovem que faltava às aulas da licenciatura em educação física para ir às Antas ver como o mestre inglês trabalhava. «Verdadeiras lições» de paixão.

Leia também:

«Tenho ambição de treinar um grande, de ser campeão em Portugal»

«Chegar ao estádio do Reading e parecer que estava num jogo de Portugal foi emocionante»

Começou a época a jogar a qualificação para a Liga Europa com o Rio Ave, acabou no futebol inglês, a manter o Reading no Championship. O que é que fica desta temporada?

Foram duas experiências duríssimas. No Rio Ave estamos a falar de um plantel que mantém cinco ou seis jogadores da época anterior, com cerca de 17 jogadores novos. E que foram chegando. Eu comecei os treinos com 11 ou 12 jogadores sub-23, que sabia que não iriam fazer parte do plantel. Os jogadores novos foram entrando e alguns deles dois ou três dias antes do jogo com o Jagiellonia. Com toda a dificuldade que isso acarreta. Fica sempre mais difícil avançar para jogos oficiais sem os jogadores terem vivido o suficiente connosco para receberem as nossas ideias. É uma dificuldade tremenda mas ao mesmo tempo riquíssima. Foi extraordinário. A equipa foi crescendo, os jogadores foram dando sinais de que queriam abraçar as ideias e abraçaram. Começámos a jogar um futebol muito possante, na minha opinião, atrativo no que diz respeito à qualidade de jogo, um jogo de controlo com a bola. Tivemos jogos muitíssimo bons. Fomos falados positivamente à medida que foi avançando o campeonato. Apesar de muitas lesões e de eu ter tido alguma dificuldade em repetir o onze por ausência de jogadores, fomos mantendo o rendimento desportivo.

E depois apareceu o Reading…

Quando estava tudo mais estável e a pensarmos que as coisas iriam fluir e aumentar também o rendimento desportivo, porque era o expectável, surge esta oportunidade de ir para Inglaterra. Que deixei nas mãos do então meu presidente. Se ele tivesse dito que não, independentemente das questões legais que me permitissem avançar, não avançaria. Quis sempre manter como ponto de honra não virar as costas às pessoas que me abriram a entrada na Liga. Estive oito anos fora de Portugal, os quatro últimos no Médio Oriente. Foi o Rio Ave que confiou em mim e me abriu as portas para regressar à Europa e ao meu país, portanto não faria isso. Tendo o Reading chegado a acordo com o Rio Ave, sendo uma situação boa para todas as partes, fui para Inglaterra.

Foi difícil a decisão de deixar o Rio Ave e ir para Inglaterra?

Foi difícil largar uma equipa, um grupo de jogadores extraordinário, um grupo espetacular, uma união muito grande. No fundo estávamos a crescer juntos. Foi difícil, toda esta relação que foi crescendo e sendo fortalecida com um início duro e difícil, uma adaptação de 17 jogadores, foi difícil largar.

O Reading era um desafio aliciante para si? Tinha esse objetivo de treinar no futebol inglês?

Era um objetivo. Andei 10 anos a tentar ir para Inglaterra e nunca tinha conseguido. E sem ter procurado surgiu essa oportunidade.

Como é que surgiu esse interesse do Reading?

É uma história que vim a descobrir à posteriori. É muito interessante. No final de um jogo do Rio Ave, no Estádio dos Arcos, estava um amigo à espera e disse-me que queria apresentar-me uma pessoa. Eu disse ‘OK’. A pessoa já estava no parque. Lá fomos, à noite, contornámos o estádio e fomos ter com ele. Era um agente de futebol britânico com ligações ao Reading, mas que eu desconhecia. Tivemos uma conversa de circunstância, talvez 15 minutos. No dia seguinte esse meu amigo ligou-me e contou que o senhor disse que eu teria de ir trabalhar para Inglaterra, porque gostou muito das minhas ideias. Respondi que acabei de chegar, mas podia falar com o presidente. Entretanto passou mais uma semana e ele perguntou quantos elementos eu tinha na equipa técnica. Perguntei o que é que se passava e ele disse que não me dizia nada porque podia não se concretizar. Quatro dias depois, um outro amigo disse-me que estava com um agente inglês em Portugal,um agente muito forte em Inglaterra, que me queria conhecer. Quando ia para o hotel onde estava esse agente ligou-me o meu amigo português: ‘Então vais ter uma reunião e não dizes nada?’ Portanto, havia uma ligação que eu desconhecia em absoluto. Esse agente inglês estava com os dirigentes do Reading, que estavam efetivamente em Portugal para contratar o Luís Castro, falou-se nisso. Conversámos cerca de duas horas e eles estavam convencidos que iria ser o Luís. Não sei o que aconteceu com o Luís. O que sei é que houve depois uma conversa com esse agente que eu tinha conhecido no estádio e um diretor do Reading, que disse que estava em Portugal para contratar treinador, enviou-lhe por Whatsapp uma fotografia do Luís e perguntou se ele conhecia. E ele disse: ‘Esse eu não conheço. Mas conheço este.’ E o dirigente respondeu: ‘Olha, acabei de o conhecer.’ Foi muito engraçado. Às vezes com a falta de tempo, ou o que achamos ser falta de tempo, não valorizamos as pessoas que aparentemente não têm nada para nos oferecer. Não paramos para conversar, para conhecer e estar. E esses 10 ou 15 minutos que aparentemente seriam perdidos, podem às vezes ter muita influência na nossa vida. 

Disse que andava há dez anos a tentar ir para Inglaterra. Sempre teve esse sonho do futebol inglês?

Em primeiro lugar há o futebol inglês, o que vemos da envolvência do futebol em Inglaterra. O número de adeptos, a emoção, os cânticos, o sentir o jogo. Sentir que muitas vezes os jogadores e os técnicos são empurrados pela envolvência do estádio. É uma coisa extraordinária, fantástica. Sempre tive essa atração, desde miúdo. Depois há uma figura que passou pelo futebol português, primeiro no Sporting e depois no FC Porto, que a mim, na altura já a pensar ser treinador, me marcou de forma intensa. Foi o Bobby Robson. Um senhor. Julgo que na altura ele teria 64 anos, mais coisa menos coisa, e estava a treinar o FC Porto. No antigo Estádio das Antas só o campo número 1 é que era fechado. Depois tinha aqueles campos ao lado, e quando havia treinos lá qualquer pessoa podia assistir. Sempre que sabia que o treino era à porta aberta, independentemente de ter aulas na licenciatura de educação física e desporto que frequentava, preferia ir assistir aos treinos.

Então ia para as Antas para junto dos adeptos assistir aos treinos do Bobby Robson em vez de ir às aulas?

Era junto à rede, qualquer pessoa podia assistir. E ainda bem que o fiz porque eram realmente lições. Em primeiro lugar com conteúdo estratégico e tático de fácil compreensão, e depois a forma empolgante como ele vivia o treino. A forma como vibrava, como gritava, como insultava às vezes, e como a seguir abraçava. Era extraordinário. Lembro-me perfeitamente de um exercício que o atual treinador do Portimonense, o Folha, estava a fazer mal. E ele dizia ‘Folha, Folha, repeat.’ Estava furioso. E a seguir o Folha fez bem o exercício e ele pôs-se de joelhos, com os punhos fechados: ‘Fantastic, fantastic!’ Eu associei-o sempre à imagem que já tinha do futebol inglês, aquela paixão.

Portanto, essa paixão tem muito a ver com o Bobby Robson…

Aí marcou-me mais. E depois tudo o que me foi acontecendo em relação ao futebol inglês foi para reforçar. Quer o Bobby Robson, quer muito mais tarde a jogar jogos de Champions ao serviço do FC Porto contra Chelsea, Manchester United e Arsenal. A dimensão Champions já é enorme. Mas jogar na Champions contra adversários ingleses, como visitante, é experienciar tudo isto.