De herói para super-herói.
Rui Silva marcou no domingo o golo mais importante da história do andebol português. Um golo que carimbou o passaporte de Portugal para os Jogos Olímpicos e que encheu um país de orgulho… e de muitas lágrimas também.
Duas semanas depois do trágico desaparecimento de Alfredo Quintana, uma das figuras do FC Porto e da seleção nacional os companheiros puderam dedicar-lhe um feito com o qual o guarda-redes sonhava.
Depois do tal golo ter garantido a vitória portuguesa sobre a França, a seis segundos do final do jogo, os jogadores abraçaram-se, muitos deles sem controlar o choro. Alfredo Quintana estava na cabeça de todos eles.
E estava também no braço de Rui Silva. O braço que deu o golo histórico tinha tatuada uma imagem do malogrado jogador de 32 anos. Algo que ninguém sabia, para lá dos companheiros e da família de Rui Silva. E que tornou o momento ainda mais emotivo.
Dois dias depois da explosão de emoções que resultaram da vitória sobre o quarto classificado do último Mundial, Rui Silva falou com o Maisfutebol.
Ainda mal refeito de tudo o que acontecera em Montpellier, pois claro.
Maisfutebol: Já caiu em si depois de tantas emoções?
Rui Silva: Sinceramente, ainda não. Às vezes ainda dou por mim a pensar no que se passou e se realmente aconteceu aquilo que aconteceu. Parece mesmo surreal. É um sonho.
MF: Só quando ouvir o hino em Tóquio é que vai perceber que é mesmo verdade?
Rui Silva: Acho que sim. Até lá, acho que vamos estar até com receio. É a oportunidade de uma vida. Até estarmos mesmo lá, acho que vou andar ansioso para que chegue esse dia.
MF: Como foi fazer aquele contra-ataque com todo o país às costas?
Rui Silva: [risos] Nem eu sei. A bola caiu-me nas mãos e nem consigo dizer como fui parar àquele sítio. E depois é tudo tão rápido… Acho que corri mais rápido do que costumo correr, porque só queria que aquilo ficasse resolvido o mais depressa possível. Mas, sinceramente, na hora, nem me passou pela cabeça a responsabilidade de ter de marcar aquele golo.
MF: O que pensou quando viu o remate do Valentin Porte a entrar em cima da buzina?
Rui Silva: Medo. Muito medo mesmo [risos]. Festejei ali meio segundo, ao mesmo tempo comecei a correr para trás porque ainda faltava tempo. Mas depois quando vi toda a gente a festejar… e a bola não entrou mesmo antes do tempo acabar. É preciso reforçar isso. Se por acaso tivessem validado o golo, acho que o pavilhão vinha abaixo.
MF: Que tal o sentimento de ser o autor do golo mais importante da história do andebol português? É uma responsabilidade pesada?
Rui Silva: Não. Não acho que seja pesado. É simplesmente um orgulho enorme poder ter sido eu. Podia ter sido qualquer um dos meus colegas porque acho que todos merecíamos este golo. Mas ficar gravado nesta história é incrível. Eu amo o andebol e farei sempre tudo para levar o andebol mais alto. E agora temos de continuar.
MF: Quem foi a primeira pessoa a quem ligou depois do jogo?
Rui Silva: Liguei à minha mulher, que estava com a minha mãe. Para partilhar com a minha família. Também por saber que um dos grandes sonhos do meu pai era que os filhos tivessem sucesso. Quis partilhar com elas, por todo o apoio que sempre me dão.
MF: Pensei que me ia dizer que tinha sido ao seu irmão [Nuno Silva, também andebolista, a jogar no Madeira SAD]…
Rui Silva: [risos] Foi logo a seguir. Foi a segunda pessoa. Já tinha chamadas dele. Porque ele ainda estava mais eufórico. No dia anterior, ele estava maluco. Porque pensava que já ia festejar, mas não conseguiu. Por isso, no dia do jogo com a França começou os festejos logo ao início da tarde [mais risos]. Na Madeira a situação [da pandemia] está mais calma e dá para ir a uma esplanada. E foi incrível. Porque ele estava louco. Aliás, ainda hoje está louco!
MF: Vocês jogadores sentiram que foi aquele golo mesmo a acabar foi a justiça a acontecer depois da derrota na véspera com a Croácia?
Rui Silva: Claramente. Nós sentimo-nos muito tristes e desiludidos depois do que aconteceu com a Croácia. Porque tivemos a oportunidade na mão. E tendo em conta o que foi o jogo, em que estivemos sempre na frente, acabar por perder o jogo e desperdiçar aquela oportunidade foi uma desilusão. Mas se calhar foi ainda mais saboroso a forma como vencemos no domingo. Acho que voltava a perder com a Croácia para ter aquela vitória assim contra a França.
MF: Teve mais sabor pela forma sofrida como aconteceu?
Rui Silva: Sim, muito mais sabor. Até pela forma como reagimos à derrota no dia anterior. Isso faz de nós mais equipa, mais homens e mais capazes de superar as dificuldades.
MF: O discurso do selecionador aos jornalistas após derrota com a Croácia foi de que seria quase impossível vencer a França. No balneário acredito que tenha sido diferente.
Rui Silva: Sim, o discurso para nós foi sempre outro. O professor sempre teve uma capacidade de motivação e liderança muito grande. Consegue passar a mensagem mais forte no dia de jogo. E embora soubesse que estávamos tristes pelo que tinha acontecido no dia anterior, ele disse-nos que havia mais uma oportunidade.
MF: O que é que ele vos disse?
Rui Silva: Disse: ‘passou uma bala ontem e agora estamos aqui para levar outra’. E remar. ‘Hoje remamos todos juntos. Vai estar lá aquele senhor [timoneiro] a dizer: remem. E nós remamos todos juntos!’ [risos]. Foi isso que ele disse. E havia a motivação que tínhamos das últimas semanas e que não podíamos deixar de a ter, independentemente da derrota no dia anterior.
MF: Depois do golo na final do Europeu de andebol, em 2016, o Eder declarou que era feriado. Se tivesse de decretar um feriado por causa do dia 14 de março de 2021, que nome lhe darias?
Rui Silva: Dava o nome do Alfredo Quintana. Dia de S. Alfredo Quintana? Sim, exatamente. Porque isto foi ele. Em conjunto connosco, claro. Mas esta conquista é totalmente dedicada a ele, por tudo o que aconteceu. E pelo que nos custa não o ter entre nós.
MF: Não há forma de fugir a isso: em termos emocionais, esta competição foi muito forte...
Rui Silva: Sim. O facto de ser tão recente aquilo que aconteceu [a morte de Alfredo Quintana], pela forma como foi e pela pessoa que é, fez com que tivéssemos uma carga emocional muito forte. Porque é algo que ninguém aceita que tenha acontecido, uma coisa demasiado agressiva para todos nós. E inesperado… Não é isto que nos ensinam e é duro. É duro, mas demos todos uma prova de que somos seres humanos fortes. E de que há sempre mais um motivo para lutar pela vida e pelos nossos objetivos, honrando a pessoa que nos deixou.
MF: Não havia outra forma que não fosse reerguerem-se e irem ali lutar por vocês e por ele, certo?
Rui Silva: Sim. Eu já tinha passado por algo semelhante - perder alguém muito querido – e demorei a recuperar. Por isso, já tinha percebido que a única forma de lutar contra estas rasteiras que a vida nos prega é honrar essas pessoas. E fazer de tudo para que elas fiquem orgulhosas de nós, onde quer que estejam.
MF: Percebo que está a falar também da morte do seu pai. Também foi algo inesperado que o marcou muito…
Rui Silva: Sim, o meu pai foi a pessoa que mais me apoiou, juntamente com a minha mãe. Da mesma forma como aconteceu com o Quintana, é um duro golpe as pessoas deixarem-nos tão cedo, ainda com tanto por fazer e tanto por dizer uns aos outros. Mas depois carregamos connosco para a vida essas que nos marcam tanto. Agora carrego com mais um e luto por mais um. Da mesma forma que luto pelo meu pai há seis anos, agora junto o Quintana e são duas pessoas que irão sempre atrás de mim.
MF: O Quintana está mesmo eternizado no seu corpo…
Rui Silva: Sim. Eu sou uma pessoa muito simples e aquilo era uma coisa para ficar para mim. Claro que as pessoas iriam acabar por saber mais tarde. Foi a forma que encontrei para honrar o Quintana. Mas nunca pensei que acontecesse o que aconteceu no domingo [marcar o golo decisivo contra a França]. Parecia que o destino estava traçado. Tantas vezes pensamos que isto não é real, e depois vão acontecendo estas coisas. A minha ideia sempre foi que o Quintana estivesse comigo em tudo o que fizesse em campo, mas nunca sonhei que fosse desta forma, e tão cedo, que ele me fosse ajudar a marcar o golo mais importante do andebol português.
MF: Mas não é por acaso que ele está tatuado no braço direito…
Rui Silva: Não, não. Foi mesmo com o propósito de ele estar em tudo o que eu faça dentro de campo com este braço. Terá sempre a quota-parte do Quintana. Porque ele está aqui.
MF: Escolheu uma imagem de um Quintana de combate. Porquê aquela imagem e não outra, por exemplo, com ele a sorrir, que era uma imagem de marca?
Rui Silva: Esta imagem demonstra o que o Quintana era: ele era um monstro, um herói. Sempre provou isso ao longo da vida dele. Tanto em termos desportivos, como pessoais. É uma imagem que intimida quem olha para ela. E ele sempre representou isso. Muitas vezes as pessoas partilham imagens de super-heróis e eles nunca se estão a rir. O Quintana está exatamente assim: ele é o meu super-herói, o super-herói que eu escolhi ter no meu braço.
MF: Chegou a ter esse ‘monstro’ como adversário. Como era nessa altura?
Rui Silva: [risos] Era super-complicado! Ganhei pouco quando o tive como adversário e ganhei muito mais quando passei a tê-lo como companheiro.
MF: A imagem do Quintana foi a primeira tatuagem que fez…
Rui Silva: Sim, sim. Pensei fazer uma tatuagem na altura em que perdi o meu pai, mas fui adiando porque aparecia sempre alguma coisa. Mas agora tinha mesmo de ser. Talvez agora faça uma também dos Jogos Olímpicos…
MF: Sobre os Jogos Olímpicos, o selecionador já apontou às medalhas porque diz que ‘tem corrido bem ser maluco’. Como se sente nesse papel de louco?
Rui Silva: Essa loucura que temos foi o que nos trouxe até aqui. Acreditamos que podemos chegar sempre mais além e que sonhar nos faz bem. Porque faz-nos sentir vivos e mais motivados. Acho que isso nos fez crescer mais como jogadores e depois, a nível coletivo, como seleção. Os últimos dois anos e meio foram absolutamente incríveis. Tem de haver uma parte muito grande da mentalidade, motivação e da parte psicológica.
MF: Nesse período, Portugal venceu três vezes a França; venceu a Suécia por dez golos; esteve muito perto de derrotar a Croácia. São três das seleções mais fortes do mundo. O que é que aconteceu ao andebol português?
Rui Silva: Isto era algo que não imaginávamos que pudesse acontecer. Se alguém me dissesse há três anos que isto iria acontecer, eu diria: ‘estás maluco, até logo’ [risos]. Mas acho que os clubes têm muita responsabilidade neste momento. Aquilo que o FC Porto, o Sporting, e mesmo o Benfica, têm feito nas competições europeias, fez com que o nível dos jogadores subisse para outro patamar.
MF: Além disso, há uma base clara do FC Porto na seleção.
Rui Silva: Sim. Também tem de se salientar este grupo do FC Porto e a ligação que foi possível fazer com a seleção. Porque isso faz-nos sentir mais confortáveis. A verdade é essa. Nós treinamos todos os dias juntos, por isso temos uma ligação muito forte, que vai facilitar muito momentos da seleção. E depois, é a questão da mentalidade que nos tem sido passada de que todos os adversários são iguais a nós: têm dois braços, duas pernas e uma cabeça. Ou seja, percebemos que dentro do campo, tudo é possível. Sempre nos disseram: ‘vocês são bons, vocês são bons, vocês são bons’. E acreditar nisso todos os dias – e trabalhando ainda mais – fez com que estivéssemos preparados emocionalmente para defrontar as melhores equipas.
MF: Foi sobretudo uma questão mental, portanto?
Rui Silva: Sim. Porque nós somos os mesmos de há dois anos. Somos melhores jogadores, claro, porque jogamos mais vezes contra os melhores e só isso nos permite evoluir. Mas o facto de termos percebido que do outro lado está um adversário a quem podemos ganhar, seja quem for, tira-nos pressão. Porque deixámos de entrar com mentalidade de derrotados. Deixámos de entrar para tentar perder por poucos e passámos a entrar para ganhar. Foi isso que nos fez melhorar e nos trouxe até aqui.
MF: Se tivesse de apontar três nomes fundamentais para essa mudança de mentalidade, quais seriam?
Rui Silva: Só três nomes? Alguém vai ficar chateado [risos]. Alfredo Quintana, Magnus Andersson e Paulo Jorge Pereira. Mas tenho de dizer quatro e acrescentar o professor José Magalhães.
MF: Agora é razoável apontar às medalhas nos Jogos Olímpicos?
Rui Silva: Não sei… Sonhar faz bem e o foi o que nos fez chegar até aqui. Mas sonhar demasiado também pode ser um erro. Temos de ter os pés bem assentes na terra. Porque não passámos a ser melhores do que ninguém. Simplesmente, conseguimos chegar ao nível dos outros. Acho que podemos atingir um bom resultado nos Jogos, mas vai depender de muita coisa. Claro que eu sonho ganhar uma medalha, da mesma forma que sonhava ir aos Jogos Olímpicos. Mas temos de ir passo a passo.
MF: Foi o capitão da seleção no Mundial, mas depois no torneio pré-olímpico não foi. Como reagiu a isso?
Rui Silva: Reagi bem. Eu tenho uma relação super-boa com o Tiago [Rocha]. Ele é meu amigo e nunca deixou de ser o capitão. Não é por não ter ido a um estágio ou a uma competição que deixa de ser o capitão. Ele trabalhou muito para conquistar o estatuto e o lugar dele. E esse lugar vai estar sempre lá enquanto ele jogar e quiser ir à seleção. O facto de o ambiente na seleção ser tão saudável faz com que não seja um problema esse tipo de situações.