Aos 47 anos e com duas temporadas de muito bom nível no Santa Clara, João Henriques é um dos treinadores do momento em Portugal. Nascido em Tomar, o técnico esteve mais de 20 anos à espera de uma oportunidade no principal escalão português. Agora, confessa em entrevista ao Maisfutebol, sente-se «preparado» para tudo o que a carreira lhe der, incluindo um trabalho num dos maiores emblemas do futebol nacional.

Há mais de um mês com o Santa Clara na Cidade do Futebol, João Henriques reflete sobre o percurso que o levou até ao Leixões e, mais tarde, ao Paços de Ferreira e a Ponta Delgada. Por onde passa o seu futuro imediato? O treinador assume que o ciclo de dois anos nos Açores está terminado, mas deixa em aberto a continuidade e o início de um novo ciclo no mesmo emblema. Tudo depende de uma conversa agendada para o fim do campeonato.  

PARTE I: «Estou preparado para a pressão de treinar um grande»

PARTE II: «Fomos à Luz como se estivéssemos a jogar em casa»

PARTE IV: «O médico tirou-me o melhor jogador por ele ser baixo»

Maisfutebol - Para os treinadores, esta época está a ser um mundo novo.
João Henriques -
Sim, está. Queria saber como é que a equipa reagiria na retoma, às cinco substituições, como poderíamos manter a intensidade e proteger a equipa de lesões. Foi tudo uma novidade. Tivemos de arranjar estratégias para colmatar a paragem enorme que tivemos, houve muito cuidado. Demos sempre especial ênfase à prevenção de lesões no período de confinamento e tentámos não baixar demasiado os índices físicos. Retomámos a competição com competência, bons jogos e bons resultados. Tivemos, no fundo, dois períodos de confinamento. Em Ponta Delgada houve uma cerca sanitária e se algum jogador saía de casa para dar uma corridinha, era logo interpelado para voltar. Portanto, até a questão da relação com a bola teve de ser acertada. Agora estamos noutro confinamento, todos juntos, mas longe das famílias. Temos estado em constante adaptação. O pequeno-almoço, a viagem para a cidade do futebol, o voltar ao hotel, as refeições sempre juntos… por muito unido que seja este grupo, chega a uma altura em que já uma formiga vai incomodar. Tem sido um trabalho exaustivo. Vamos no 13º mês da época.

Mais de um ano.
No início da época festejámos os aniversários de elementos da equipa técnica e atletas e já estamos a festejar esses mesmos aniversários (risos). Isto nunca acontece. Tem sido um desafio interessante. Temos mais quatro jogos e queremos colocar os atletas com disponibilidade mental novamente. Demos dois dias de folga, quisemos que eles desligassem a ficha, quisemos que fossem para as suas famílias. Temos 23 jogadores, 20 de campo e três guarda-redes. Não temos mais ninguém. Em caso de infeção estaríamos com uma carga de trabalhos. A manutenção está consumada e pudemos aliviar aqui um pouco o confinamento nesta fase. Com a administração percebemos que tínhamos de libertar durante dois dias os atletas. Eles regressaram, voltaram mais disponíveis e partimos novamente do zero.

O Santa Clara está bem implantado socialmente em Ponta Delgada, já tem muitos adeptos?
O clube passou muitos anos na II Liga e houve um afastamento normal entre as pessoas e o emblema. Por erros de direções passadas, más gestões pelo que ouço. Os açorianos ficaram muito contra o próprio clube. Quando esta direção entrou, o Santa Clara estava perto de cair no Campeonato de Portugal. Pouco a pouco, as pessoas foram-se aproximando ou reaproximando. Sem futebol de I Liga tantos anos, os três grandes ganharam adeptos. Agora, com o segundo ano do clube na I Liga, os adeptos estão a voltar e sentem que a direção é séria. Estão orgulhosos deste trajeto, mas o trajeto ainda vai no início. Num jogo em casa contra um dos grandes, há mais adeptos dos grandes. As pessoas ainda estão divididas, mas mostrámos aos açorianos que estamos na Liga para ficar. Tivemos duas épocas seguidas com bons resultados e queremos dar continuidade às coisas.

Como é a vida de um treinador profissional em Ponta Delgada?
As pessoas estão muito próximas e vêem-nos a fazer o que qualquer mortal faz. Ir ao supermercado, ir ao café, abordam-nos com frequência porque somos os representantes deles na Liga. Não conseguimos fugir para muitos lados, o meio é pequeno. A paisagem é paradisíaca e estou encantado com a beleza natural de São Miguel. As pessoas são muito acolhedoras e estão em constante contacto com treinadores e jogadores. Sentimos que estão atentas ao que fazemos. Já as vi mais pessimistas e hoje vejo-as mais otimistas.

 

O João Henriques vai continuar no Santa Clara?Eu e o presidente temos um almoço agendado. O presidente até disse que será para comer um peixinho, porque sabe que é o meu prato favorito. Vamos comer o peixinho e conversar sobre isso. Ambos sabemos que este ciclo de dois anos termina agora e o balanço é ótimo em tudo o que foi planeado, organizado e operacionalizado. Vamos ver o que é melhor para as duas partes. Ele sabe qual é a minha ambição e eu sei o que o clube quer. Vamos conversar e ver se o melhor é a minha continuidade ou o Santa Clara procurar outra solução. É normal as pessoas falarem em cada final de ciclo. Temos abertura e frontalidade para falar sobre isso, não há nenhum fantasma por só faltarem dois jogos e ainda não haver decisão. Não há problema nenhum, sempre foi assim. Sempre tranquilos e frontais. Vai ser uma conversa extraordinária.

Consegue destacar algum jogador do Santa Clara neste percurso de dois anos?
Há vários jogadores com um percurso interessante. O Osama Rashid é um miúdo que passou por situações complicadas na vida, foi obrigado a crescer rapidamente. Tem maturidade e qualidade, é um miúdo bem formado, com grande estrutura e por isso é um dos capitães. O Fábio Cardoso tem sido um dos esteios da equipa pela regularidade e qualidade como central. Anda muita a gente a dormir, o Fábio tem capacidade para estar num patamar mais elevado. É um líder dentro e fora do campo, treina como joga. O guarda-redes Marco era suplente na II Liga e vi que o potencial estava adormecido. Tem 32 anos e mostrou tarde a qualidade na I Liga. Este ano tivemos o Rafael Ramos a ressurgir, o Francisco Ramos que não jogava no Vitória e que nos deu maturidade e qualidade, até pelo passado nas seleções. O Zaidu e o Nené vieram do Campeonato de Portugal e têm sido fantásticos. O Zaidu com mais minutos e o Nené com grande potencial de crescimento. O Lincoln foi titular do Grémio com 17 anos, lançado pelo Scolari, e agora está completamente adaptado. O Thiago Santana está bem, o Schettine não nos ajudou tanto esta época por causa da saída anunciada para o Sp. Braga… o Santa Clara tem sabido contratar muito bem. Temos só um jogador emprestado, o Francisco Ramos. Não queremos estar a formar para os outros ganharem dinheiro.

Preferem ter jogadores do Santa Clara.
O presidente até lhes chama os ananases dos Açores (risos). A estufa, eu sou o agricultor, metemos lá os ananases e depois eles vão ser vendidos. Essa é a filosofia, potenciar para vender. Mas também temos atletas que são contratados para serem mais-valias imediatas e não para vender. O João Afonso e o Ukra garantem qualidade, estabilidade e experiência. O Zé Manuel também. Tem de existir este misto na construção do plantel. Atletas de escalões inferiores, portugueses que estão no estrangeiro e querem relançar-se, miúdos com potencial enorme no Brasil… estes são os jogadores que o Santa Clara procura. Há uma junção de negócio e parte desportiva, o treinador tem de perceber que é um gestor neste sentido. Posso ainda falar no exemplo do Kaio Pantaleão.

Foi vendido no verão passado ao Krasnodar.
Por mais de três milhões. Foi um negócio extraordinário. Na II Liga não era utilizado. Quando cheguei, o diretor desportivo disse-me que o atleta estava na lista de dispensas, apesar de ver nele algum potencial. ‘João, se quiseres ficar com ele, ficas. Se não quiseres, ele é dispensado’. Identifiquei algum potencial, mas esteve sem jogar de julho a janeiro. O trabalho com ele foi feito e as pessoas ficaram surpreendidas quando ele aparecer. ‘Quem é este jogador?’. E o Kaio acabou a ser vendido. É isto que também valoriza um treinador.