5 de junho de 2000. Na verdade, já era quase dia 6 quando o Maisfutebol finalmente nasceu. Começava uma grande aventura e no princípio estava Rui Costa. O então jogador da Fiorentina e da seleção nacional, de partida para jogar o Euro 2000, fazia manchete nesse primeiro dia, com uma entrevista já então feita também em vídeo. 20 anos mais tarde, Rui Costa volta a associar-se a este momento especial, ele que foi protagonista e espectador privilegiado destas duas décadas, como jogador e como dirigente. Aqui, as memórias fortes do Euro 2004.  

 A fechar o teu capítulo na seleção, o Euro 2004. Acredito que seja uma memória agridoce.

- É. É disputar uma final do Campeonato da Europa, no currículo também está isso, e é melhor do que não a ter. Mas fica a grande mágoa porque aquela seleção tem de ser campeã da Europa. Com tudo aquilo que acontece ao longo do Europeu, aquela seleção não pode não ser campeã. É um marco positivo para o país e para a seleção, porque pela primeira vez chega à final de uma grande competição, mas é uma final que tem de ser ganha. E fica aqui o garfo entalado para o resto da vida. Em 2003 sou campeão da Europa de clubes, em 2004 perco o Campeonato da Europa de seleções, em 2005 perco o bicampeonato europeu de clubes a ganhar 3-0 ao intervalo na final, portanto para mim está aqui tudo ligado.

- Parecia que o mais difícil já tinha sido feito, depois de dar a volta à derrota na estreia…

- Não ser campeão da Europa naquele quadro, é quase impossível. Até porque nós passámos muito para chegar àquilo. Houve muita polémica em torno daquela seleção, houve muita quezília, vinda de fora. Depois conseguimos unir todos em prol do que estávamos a fazer, conseguimos formar um excelente grupo de trabalho, tínhamos sangue novo na seleção, mostrou-se muita qualidade. Houve ali uma mescla entre nós, mais velhos, para poder apadrinhar aqueles que chegavam e formou-se um grupo extraordinário. Ganhámos uma força tremenda, que começa muito mal, no jogo com a Grécia. Se o país pudesse tirar aqueles jogadores todos e pôr outros era o que tinha feito. E foi aí que nos agarrámos uns aos outros, olhámos uns para os outros e entendemos que tínhamos tudo para poder fazer uma grande competição. Acabámos por conseguir dar a volta ao texto todo e claudicar no jogo em que não podíamos falhar. Não podíamos mesmo falhar.

- Nesse Euro marcaste duas vezes, como suplente. Até à final tinhas o registo, sempre que eras suplente na seleção entravas e marcavas…

- Foi o único jogo na Seleção em que eu entrei e não fiz golo. Foi o único jogo. E na final tive essa fé também, por acaso. Mas pronto, se calhar o destino estava traçado. E eu se calhar até paguei um bocado pela boca, porque lembro-me de dizer, quando acabou o primeiro jogo contra a Grécia, no Porto: «Uma seleção assim pode ganhar um jogo mas não ganha um campeonato.» Sei essa frase de cor porque me ficou na memória. Nunca mais a disse a ninguém…

- O futebol está-nos sempre a ensinar coisas, não é?

- É quase ingrato tirar o mérito à Grécia daquilo que fez. Era um jogo difícil de afrontar porque era um jogo traiçoeiro, muito malandro. Mas eles jogaram com as armas que tinham. Não os podemos culpar a eles, temos de nos culpar a nós por não termos conseguido em dois jogos decifrar a forma da Grécia jogar e criar o antídoto para aquilo, sabendo que éramos muito mais fortes do que eles. E pagámos isso. Jogando no nosso país, jogando em casa…

- Não fomos os únicos…

- Eles eliminam uma super República Checa na meia-final. Curiosamente nós tínhamos ali algum receio de defrontar a República Checa, porque em termos de jogo enquadrava-se muito connosco. Não direi que fizéssemos a festa antes do jogo por ter calhado a Grécia, mas sentíamos que tínhamos tudo para ser campeões. Maldito dia aquele. Em todas as vertentes, até porque é o meu último jogo na seleção.

- Também acreditas que o caminho todo do autocarro, aquele percurso eufórico todo até à final condicionou a equipa?

- Não vejo as coisas por aí. Nós só temos que estar gratos ao que o país fez. O país não festejou antes do jogo: o país levou-nos ao colo até ao estádio. E nós só tínhamos que dar ao país e a nós próprios aquilo que todos merecíamos, que era ser campeões europeus. Felizmente hoje já o somos enquanto país, mas tivemos ali uma oportunidade única para todos de sermos os primeiros. Todos nós lutámos para ser os primeiros. Fomos até superiores no jogo, mas as bolas que entraram noutras ocasiões não entraram naquela e acabámos por desperdiçar uma oportunidade, de ouro para sermos campeões europeus a jogar em casa, seria uma festa para o país inteiro.

- Anuncias o abandono à Seleção ainda antes da final…

- Sim, mas já era uma decisão tomada antes de começar a prova.

- A posteriori, vendo por exemplo que o Figo e o Pauleta ainda jogam uma meia final no Mundial 2006, não ficaste com uma pedra no sapato?

- Não. A única tristeza com que fico, é que tinha como meta, fiquei com 94 internacionalizações, estava a seis da centena e gostava de ter feito esse número redondo, mas sentia também e senti que depois do Europeu a minha presença na seleção deixava de existir. Como devem calcular, não foi um pensamento do pé para a mão. Representar a seleção para mim foi sempre o meu maior orgulho. Ser considerado um dos melhores do país é o orgulho de cada um de nós. E eu tinha essa vaidade, esse orgulho, de representar a seleção, e representava-a hoje. Mas para isso a gente também tem que sentir que nos querem lá. E eu senti que aquela era a última competição onde eu serviria a seleção. E não valia a pena tornar-me conflituoso ou vir a ser um problema para a seleção se era ou não convocado ou se ia ou não jogar, porque esse nunca foi o meu problema.

- Começas esse Europeu como titular e perdes esse estatuto para o Deco…

- Inclusive levantou-se muito a lebre porque eu me manifestei… Não fui o único, fomos vários jogadores, que já tínhamos feito no passado, em relação ao Emerson do Belenenses e do FC Porto, do Isaías no Benfica, por aí fora. Nós já nos tínhamos manifestado internamente. Nunca houve a questão pessoal, deste ou daquele jogador. Até porque o Deco, como excelente jogador que sempre foi, podia representar a Seleção e quis-se pôr a coisa como a guerra dos dois números 10. O próprio Deco pode ser testemunha, e hoje tenho uma excelente relação com ele. Basta ver o meu golo contra a Inglaterra, o meu relacionamento com o Deco está ali muito bem explicado. Aliás, a primeira coisa que eu faço na primeira convocatória em que o Deco chega à seleção é bater-lhe à porta do quarto e dizer-lhe: «Dequinho, aquilo que eu manifestei não é pessoalmente contigo, tem a ver com a Seleção. Foi uma opinião de grupo que nós tivemos, foi exposta lá para fora pelos jogadores mais representativos. A partir do momento em que tens esse fato de treino vestido és meu colega de equipa e tudo farei para que tenhas sucesso aqui dentro. E assim foi. Nunca houve rivalidade entre mim e o Deco, como nunca tive com o Kaká, que acaba por ser o jogador que acaba o meu ciclo no Milan. Tenho excelente relação com os dois, excelente apreço e enorme respeito quer pelo ser humano Deco e pelo Kaká e enormíssimo respeito pelos enormes jogadores que eles são.

- Não acabou por ser essa a causa do adeus à Seleção?

- Nunca houve essa rivalidade, nunca houve isso tudo, mas toda essa campanha que envolveu esse Europeu, depois de um 2002 onde eu tinha sido quase considerado um dos culpados… Se não joguei, como é que posso ser culpado?! E daquilo que era a minha grande paixão pela seleção, eu previa e sentia que pós Europeu 2004 o meu ciclo tinha acabado. E que havia já gente que podia prosseguir esse ciclo. Nunca quis ser uma complicação para a seleção, sempre quis ser uma solução. E decidi, na altura de começarmos o Europeu, que seria a minha última competição. Todos os meus colegas já sabiam disso. Inclusive na Federação já sabiam disso.

- Ainda no Euro 2004, o Portugal-Inglaterra é também o grande jogo para a memória…

- Também ele tem a parte positiva e a parte negativa. Faço o golo que dá o 2-1 e é um golo extraordinário, mas que não chega para ganharmos o jogo. E depois vamos a penáltis e eu falho o penálti. Cada vez que uma televisão passa esse jogo, eu só vejo até ao golo, não consigo ver mais… Mas é dos dias mais felizes para o país em termos futebolísticos, sem dúvida alguma. Retirando o meu sentimento pessoal pelo que aconteceu em campo, é dos dias mais bonitos do futebol português, pela emoção, pela paixão, pelo choro. Lembro-me perfeitamente de vermos na TV as imagens do estádio, o choro das pessoas, a alegria das pessoas… De arrepiar mesmo. E deu-me um gosto tremendo fazer aquele golo, como é óbvio, e na altura dava-nos a convicção, quase, que o jogo ficava por ali. Merecia ter ficado. Nós nos treinos, quando está a chegar ao fim e fazemos um grande golo, o treinador diz, «Pronto, chega, acabou.» Rouba ali dois ou três minutos para que o treino finalize com um golo bonito, até para ficar na memória. Depois daquele golo, com pouca humildade e vaidosamente digo, o jogo devia ter ficado por ali.