João Tomás fez mais de cem golos na Liga, ao serviço de clubes como a Académica, o Benfica, o Sp. Braga e o Rio Ave, construindo uma carreira que o tornou num dos mais proeminentes pontas de lança portugueses do início do século.

Foi seis vezes internacional, numa altura em que a geração de ouro dominava a Seleção Nacional, terminou a carreira aos 37 anos e foi estudar: acabou a licenciatura, depois fez um mestrado e agora está inscrito para tirar um doutoramento.

Em entrevista ao Maisfutebol, o presidente da SAD do Trofense fala de uma carreira que começou nos distritais, quando foi dispensado pelo clube da terra, e chegou ao Benfica, com o qual vai jogar agora, apadrinhando a estreia de Rui Costa como presidente eleito.

Sublinha o impacto que Mourinho teve nele, revela a importância de João Pinto na ambientação ao Benfica e confessa que espera entregar dentro de quatro ou cinco anos a tese de doutoramento, para poder depois cumprir um objetivo antigo: ser professor universitário.

Chegou mais cedo à faculdade do que ao futebol profissional. Nessa altura pensou que o destino era talvez ser professor, como os seus pais?

Sim, poderia ser. Era o agora tão em voga plano B. Eu sempre tive isso bem claro em relação à minha vida profissional: ingressar na faculdade e licenciar-me em Educação Física. Curiosamente acabei por o fazer anos mais tarde, mas na altura tinha isso muito claro na minha mente. Aliás, cheguei a colocar a hipótese de abandonar o futebol profissional e continuar a jogar de uma forma não profissional. Mas depois as coisas mudaram de rumo.

Quando é que isso aconteceu?

No início da minha quarta época na Académica.

Mas aí já estava lançado...

Sim, mas era uma Académica que tinha acabado de descer, íamos iniciar uma época na II Liga e eu ia entrar no meu último ano de contrato. Naturalmente, como uma pessoa minimamente inteligente, sabia que era o ano para fazer alguma coisa de jeito. Caso contrário teria de deixar o futebol profissional e dedicar-me em exclusivo, ou quase em exclusivo, à faculdade.

Sendo filho de pais professores, sempre foi obrigado a olhar para a escola primeiro?

Sim, embora na adolescência tentemos sempre adulterar um bocadinho isso. Mas o meu pai não deixou. Aliás, há períodos da minha formação em que as notas não correspondiam às exigências dele e eu tive de sair do futebol. Aconteceu pelo menos duas vezes.

Uma delas foi no oitavo ano.

Sim, quando chumbei. A outra também foi por aí, ou antes ou depois.

E teve de subir as notas para voltar a jogar?

Fui obrigado pelo meu pai.

Curiosamente fez toda a formação no Oliveira do Bairro. Ser dispensado foi um choque?

Foi. Naturalmente foi um choque. Claro que com o passar dos anos vamos assimilando melhor essas decisões, mas de facto foi muito dececionante. Eu nunca joguei nos seniores do Oliveira do Bairro, nunca treinei nos seniores no Oliveira do Bairro.

Aconteceu após o último ano de júnior, certo?

Sim, mas foi uma consequência natural. Fui dispensado eu e muitos. Aliás, da minha geração só dois chegaram aos seniores. Muitos jovens depois deixaram de jogar e eu fiz o meu trajeto. Curiosamente três anos depois, quando estava no Anadia, joguei em Oliveira do Bairro. Ainda por cima ganhámos lá 1-0, golo meu. E o meu pai era o treinador do Oliveira do Bairro.

E festejou?

Claro.

Mas não lhe custou nem um pouco?

Com a idade que tinha na altura, ainda era um bocadinho inconsciente. Se calhar até festejei de raiva, por aquilo que tinha acontecido, mas não era nada pessoal. O Oliveira do Bairro foi o clube que me abriu as portas do futebol, que me formou, passei lá oito anos maravilhosos, dos dez aos dezoito, mas depois naturalmente seguimos caminhos diferentes e o futuro sorriu-me de outra forma. Até costumo dizer em conversas com o meu pai que se calhar ser dispensado aos dezoito anos foi o melhor que me aconteceu.

O seu trajeto acabou por ser diferente, mas foi um trajeto brutal, não é?

Foi. Costumo dizer no círculo de amigos mais próximos que eu cheguei onde poderia ter chegado. Um miúdo formado no Oliveira do Bairro, que chega ao futebol profissional aos 21 anos, que joga na Académica três épocas e meia, que aos 24 anos é convidado para ir para o Benfica e aos 25 é internacional AA, nem nos meus melhores sonhos de adolescente isso me passaria pela cabeça.

E como é que isso foi possível?

Foram virtudes minhas, foram momentos de muita sorte, mas também foram muitos momentos de grande dedicação, muito trabalho e grande profissionalismo.

Quando foi dispensado e foi jogar para os distritais, conseguiu continuar a trabalhar com a mesma dedicação e esforço?

Essa foi a minha grande virtude. A paixão de jogar ultrapassou sempre todas as adversidades e todos os obstáculos. Joguei na Arbiscal e no Águas Boas com a mesma dedicação com que joguei no Anadia, na Académica, no Benfica... Foi essa paixão que me fez chegar onde cheguei e atingir os dois pontos altos: o segundo jogar no Benfica e o primeiro jogar na Seleção.

Mas quando foi jogar para os distritais pensava que tinha de subir na carreira ou era só pelo prazer de jogar futebol?

Eu acho que era só pelo prazer de jogar. Nessa etapa da minha vida acho que nunca estabeleci objetivos. O único objetivo era desfrutar do futebol, independentemente do nível competitivo em que estava na altura. Acho que essa foi uma grande virtude que tive.

Que memórias é que guarda desses tempos nos distritais e num futebol mais puro?

Guardo grandes memórias e grandes amigos. Grande parte das pessoas com quem joguei continua a ser minha conhecida e alguns são meus amigos. São ali da zona de onde eu sou natural. Sempre que nos encontramos é uma alegria enorme. Fui colega deles, depois fui colega de jogadores que viam na televisão e de repente era colega do Rui Costa, do Figo, do Vítor Baía, do Pauleta, do Nuno Gomes, do João Pinto, do Jorge Costa e de tantos outros. Mas ali continuei sempre a ser tratado pelo João Henrique e não pelo João Tomás. Essa é a grande memória: sempre que vou a Oliveira do Bairro, sou tratado como o João Henrique que foi colega deles.

Nessa altura era conhecido como João Henrique?

Sim, era o João Henrique.

Curiosamente o João Tomás fez toda a formação como médio e é no segundo ano nos distritais, no Águas Boas, que passa a ponta de lança e muda a sua vida...

Essa é uma história curiosa. A minha formação foi toda feita a médio, eu era um oito, joguei sempre como médio e fui para o Águas Boas como médio. É curioso que há muitas coisas da minha carreira que não me lembro, mas esta nunca esqueci: há um jogo em que ia ficar no banco, na altura não havia telemóveis, eu chego para o jogo, um dos centrais tinha ficado doente, um médio recuou para central e eu entrei para médio, para o meu lugar natural. Nesse jogo marquei quatro golos e no fim o treinador disse-me: ‘eh pá, tu nunca mais jogas a médio, a partir de agora és avançado’. Foi assim e foi uma decisão acertada, porque nesse ano fiz mais de trinta golos.

Mas fez a formação a médio porquê?

Não sei. Eu era franzino, pequenino, só dei o salto a partir dos 17 anos, e o treinador metia-me a médio. Era mais um ali no meio.

Depois vai para o Anadia, no qual faz uma grande época...

Sim, foi onde fiz a minha primeira grande dupla. Jogava com um colega na frente e juntos fizemos quarenta golos. Quase conseguíamos a subida à II Liga. Uma terra vizinha e rival de Oliveira do Bairro, mas onde fui muito bem tratado e onde guardo grandes amigos até hoje.

Nessa altura concilia o futebol com a faculdade em Castelo Branco, certo?

Não, eu entro na faculdade no final da minha época no Anadia. Entrei em Castelo Branco, que era a minha segunda opção, e depois peço a transferência para Coimbra.

Então na Académica é que começa a conciliar o futebol e a faculdade?

Mais ou menos [risos]. Na teoria. Na prática não era bem assim. Fiz umas cadeiras e quando fui para Lisboa congelei a matrícula.

Ia à faculdade de vez em quando, fazia os exames de vez em quando...

Exatamente. Era um bocadinho isso.

E vai para a Académica porque faz testes no clube, não é?

Faço testes, exatamente. Com o Vítor Oliveira. Em maio de 96. Na altura o Anadia tinha um protocolo com a Académica, fui fazer testes juntamente com o Paulo Adriano, ficámos os dois, ele foi emprestado um ano ao Anadia e eu era para fazer o mesmo, o objetivo era assinar e ser emprestado ao Anadia. Mas fiz a pré-época com Vítor Oliveira e ele decidiu que ficaria no plantel.

Fez parte de uma Académica mítica, com o Mickey, o Rocha, o Pedro Roma...

Os primos Campos... Sim, é verdade. Era uma geração jovem, éramos quase todos estudantes universitários e logo no primeiro ano subimos à Liga, com o Vítor Oliveira. Essa é a grande memória que tenho da Académica. Depois faço dois anos na primeira divisão, descemos e eu começo a época seguinte na II Liga, mas saio para o Benfica.

Essa era uma Académia muito estimada no país por respeitar várias tradições de Coimbra.

Sim, é verdade. Era uma Académica com vários universitários, que fazia um corredor com as capas sempre que um jogador se estreava, enfim, de várias tradições.

Gostava da alcunha de ‘Jardel do Calhabé’?

Mais ou menos [risos]. No início era interessante, porque o Jardel era uma referência nos campeonatos nacionais. Era curioso e engraçado. Mas depois criámos a nossa identidade, com as nossas características e as nossas virtudes, e deixou de fazer sentido.

Surpreendeu-o sair de uma II Liga para o Benfica?

Surpreendeu-me, sim. Na altura tinha 17 jogos e 19 golos na II Liga. Foi um grande passo, mas um passo seguro.

Sentia-se preparado?

Na irreverência da idade sentimo-nos sempre preparados. Mas depois o impacto foi grande. O início custou, os primeiros treinos, a primeira abordagem no Estádio da Luz. Foi um impacto muito grande. Mas tive um capitão chamado João Pinto que facilitou todo esse processo.

Era um capitão como se impunha?

Ele era o que ainda é hoje, uma pessoa extremamente educada, cordial, que sabia a dimensão que tinha e que, mesmo assim, quando chegava um miúdo que vinha da II Liga, o ajudava muito. Mas também tenho de falar da ajuda do Calado, do Nuno Gomes, do Paulo Madeira, uma série deles. Acho que deram um contributo muito importante no meu crescimento.

Quando estava em Coimbra, após um ano decidiu regressar a casa dos pais e viver em Oliveira do Bairro. A ambientação a Lisboa foi mais fácil?

Não havia outra hipótese [risos]. Foi difícil. A primeira semana foi muito difícil. Muito trânsito, uma zona totalmente desconhecida... Mas nós somos seres de hábitos e depois habituamo-nos.

No Benfica o João Tomás teve o privilégio de testemunhar o início da carreira de Mourinho. Como é que ele foi recebido no balneário?

Teve algum impacto, o que é normal. Era uma decisão arriscada para o Benfica na altura, mas o tempo veio mostrar que era uma grande decisão. Acabou por ser uma passagem curta, mas proveitosa. Gostei muito de trabalhar com José Mourinho.

Uma passagem curta também por sua culpa, que fez dois golos ao Sporting e precipitou o fim...

Pois, mas isso não foi culpa minha [risos]. Foram decisões que já não me dizem respeito.

Aquele foi o jogo da sua vida?

Sim, posso dizer que sim. Seria mais um jogo, com a dimensão que tinha um dérbi, logicamente, já havia também rumores sobre o futuro do Mourinho e nós entrámos para o campo com a plena noção do que tínhamos que fazer. Tive a felicidade de fazer dois golos e isso teve uma grande implicação na minha carreira, mas na altura não tinha essa noção, só quis desfrutar. Não é todos os dias que se marcam dois golos num dérbi com o Sporting.

O Mourinho também teve um grande impacto no João Tomás?

Teve. Muito. Teve um impacto muito grande porque teve a capacidade de agregar a equipa. Reconheceu o valor de cada individualidade do plantel e transformou tudo isso num coletivo forte. É evidente que estávamos no início de um processo de construção, que acabou por ser interrompido, e depois fizemos a pior época de sempre da história do Benfica.

É verdade que esse Benfica, como clube, era tão desorganizado como o Mourinho mais tarde disse que era?

Não sei. Para mim, que não estava habituado àquela dimensão, o Benfica era um clube diferente e grande. Mas naturalmente que não o podemos comparar com o Benfica da atualidade.

Saiu do Benfica para o Betis, depois Vitória e no Sp. Braga voltou a viver grandes noites...

Sim, no Sp. Braga vivi talvez a minha melhor fase em termos desportivos. Em termos pessoais, o Sp. Braga de Jesualdo Ferreira foi talvez a minha melhor fase. Costumo dizer, por carolice, que o Benfica foi o ponto mais alto da minha carreira, sem dúvida. O Sp. Braga foi o clube no qual de forma consolidada consegui fazer as melhores coisas. E o Rio Ave foi o clube onde mais desfrutei, estava em final de carreira, bati uma série de recordes, ajudei o Rio Ave a crescer...

O João Tomás considera-se o protótipo do jogador inteligente que soube gerir a carreira, o corpo e a abordagem ao jogo?

Sim, sim. Costumo dizer que aprendi com todos os treinadores e todos os jogadores com quem joguei. Aprendi coisas para o bem e para o mal. Por exemplo, quando entrei no meu último ano no Rio Ave, entrou o Nuno Espírito Santo, que trazia uma metodologia de treino diferenciada e uma abordagem ao pré-treino muito consistente. Para mim aquilo era novo. Uma vez o Nuno Espírito Santo falou comigo e explicou que era uma abordagem nova ao treino que trazia. A minha resposta foi: ‘Ok, prof, tudo bem. O que é que é preciso fazer?’ Ele disse: é isto. E eu, ok, se é para o nosso bem, vamos fazer. Esse sempre foi o meu princípio: estar pronto para mudar e para aprender. Isso permitiu-me sustentar a passagem dos anos. Aliás, se não tivesse saído para Angola, tinha continuado a jogar facilmente.

Acabou a carreira, voltou a estudar e até já terminou o mestrado. Foi uma preparação para chegar onde está agora?

Sempre me preparei para continuar no desporto. Mas podia ser a dar aulas, podia ser ligado ao ensino, podia ser no treino. Aliás, acabei a minha carreira, ingressei na formação do Sp. Braga e estava na área do treino. No entanto, ser ex-jogador não é suficiente. Temos de adquirir determinados conhecimentos para estar ao nível das exigências e para fazer a diferença. Foi esse passo que quis dar quando terminei a carreira. ‘Ok, agora vou tirar três anos para terminar a licenciatura’, depois ‘agora vou tirar dois anos para tirar o mestrado’ e agora espero terminar o doutoramento, no qual já estou inscrito na Universidade de Coimbra. Vamos ver se consigo fazer das tripas coração para daqui a quatro ou cinco anos lançar a minha tese de doutoramento, que é o patamar mais alto da vertente académica.

Está a fazer um doutoramento também em desporto?

Em Ciências do Desporto, sim.

E porquê o doutoramento? Geralmente o doutoramento é para quem quer seguir a carreira académica...

Sim e eu quero acabar a minha carreira contributiva a dar aulas. É o sonho que eu tenho e é um objetivo de vida.

Mas dar aulas na faculdade?

Claro.

É um projeto bastante diferente do que tem agora...

É um desafio, sem dúvida. Poderá ser o bichinho dos meus pais, que eram professores.

Imagina-se um catedrático cheio de livros debaixo do braço?

[risos] Se tiver que o fazer. Imagino-me sobretudo a dar aulas de desporto.

Mas antes disso, a médio prazo, quais são os seus objetivos?

Só tenho o objetivo a longo prazo, que é dar aulas na faculdade. A médio prazo não estabeleço objetivos. Espero ter sucesso neste papel que desempenho agora, claro, mas acima de tudo quero desfrutar das coisas boas que a vida nos dá.

E qual é o projeto que tem para o Trofense?

É um projeto de sucesso. Procuramos o sucesso desportivo, na sustentabilidade financeira, na criação de infraestrutura. Estamos no ano 2. O primeiro ano foi no Campeonto de Portugal, foi extremamente difícil e trouxe-nos o sucesso desportivo. Estar na II Liga é um desafio muito diferente e fundamentalmente o nosso grande objetivo é estabilizar o clube nas ligas profissionais, criar rentabilidade através dos jogadores mais jovens, enfim, queremos que o Trofense seja visto como um clube respeitador e que compete de forma digna.

O João Tomás vai apadrinhar a estreia de Rui Costa como presidente eleito do Benfica, é a chegada da geração de ouro aos gabinetes?

Não se pode falar da geração de ouro porque eu acho que não pertenço à geração de ouro [risos].

Integrou aquela geração mais tarde.

Estive ao lado deles algumas vezes, digamos. Mas claro que fico feliz que o Rui Costa tenha avançado para as funções que exerce. É um motivo de orgulho para mim recebê-lo. Acho que ele tem noção do desafio que enfrenta, que não é comparável com o meu. Estive com ele antes das eleições, não lhe disse nada, mas vou dizer-lho agora: espero que tenha o maior sucesso possível, que seja uma referência e que abra as portas para antigas referências estejam nestes cargos. Acho que este é o caminho, mas os ex-jogadores têm de perceber que precisam de se preparar para estes cargos, porque o conhecimento empírico não é suficiente. Nós qualidade temos, depois precisamos de estar num nível de conhecimento muito grande para fazer a diferença.

Vai ser uma fotografia refrescante ver Rui Costa e João Tomás lado a lado na tribuna?

[risos] Acho que sim, acho que sim.