David Caiado foi formado no Sporting, chegou a ser lançado na primeira equipa por Paulo Bento, e estava na Crimeia quando a Rússia invadiu pela primeira vez o território ucraniano.

É verdade que o extremo de 34 anos já viveu muita coisa, passou por países como Polónia, Bulgária, Chipre ou Roménia, mas aqueles tempos ficaram-lhe especialmente gravados.

«Eu assinei em janeiro pelo Tavriya e nesse momento a equipa estava em estágio em Antalya, na Turquia. Acabei por me juntar aos meus colegas e quando faltavam duas semanas para o início campeonato fomos para a Crimeia, para Simferepol», recorda.

«Nessa altura havia confrontos em Kiev, eu estava em contacto com o Miguel Veloso e com o Antunes, que jogavam no Dínamo Kiev, mas era algo localizado na capital, era uma tentativa de golpe de estado para depor o presidente que era pró-russo, que tinha muita ligação ao Putin e que tinha prometido a entrada na União Europeia que não veio a concretizar-se.»

Nada, no entanto, fazia prever o que viria a acontecer poucas semanas depois de assinar contrato com o clube da Crimeia: um território, aliás, que David Caiado achou encantador, que era sobretudo um destino de férias cheio de praias banhadas pelo Mar Negro.

«Havia uma revolta do povo, mas era uma coisa muito localizada em Kiev. Nada indicava que pudesse acontecer alguma coisa ali na Crimeia. Nós íamos fazer o primeiro jogo da segunda volta, no reinício do campeonato, contra o Dínamo, em Kiev, e estávamos a trabalhar normalmente. Durante aqueles dez dias os treinos estavam a correr de forma muito normal.»

Até que numa manhã de fevereiro de 2014, em plena crise do Euromaidan, tudo mudou.

«Um dia estávamos a fazer um jogo de preparação no nosso centro de treinos, quando por volta dos sessenta minutos fomos informados que era possível que houvesse uma invasão da Crimeia por parte da Rússia. Claro que se gerou ali algum pânico. Disseram-nos para irmos para os quartos e para preparamos as malas, que íamos viajar de autocarro», revela.

«Estava um bocado confuso, aquilo era tudo novidade e as notícias que saíam em Portugal eram muito assustadoras: falavam de uma invasão e que podia haver bombardeamentos.»

Pouco depois chegou a ordem: era mesmo para sair da Crimeia. O plantel entrou no autocarro, os jogadores puderam levar as famílias, a urgência era viajar rapidamente.

David Caiado e Nuno Pinto, os dois portugueses do Tavriya, estavam sozinhos no país, o que o avançado reconhece que foi uma grande vantagem. Mesmo assim foi assustador.

«O objetivo era numa primeira fase ir para Donetsk e depois ou ficávamos em Donetsk ou apanhávamos o avião e voltávamos para Antalya, na Turquia, enquanto aquela situação não se resolvia. Aquela viagem até sair da Crimeia foi estranha, havia um clima tenso dentro do autocarro e não sabíamos o que íamos encontrar durante o caminho», refere.

«A Crimeia só tem uma estrada para se sair da península em direção a Donetsk, portanto era relativamente fácil bloquearem aquilo. Quando chegámos à saída da Crimeia já havia uma espécie de fronteira com sacos de areia e havia russos encapuzados com metralhadoras, que entraram no autocarro. Nesse momento sentimos medo. Eu não entendia a língua, não estava a perceber o que estava a acontecer, via metralhadoras dentro do autocarro, qualquer voz mais alta pensas que estão exaltar-se e isso provoca momentos de tensão.»

A verdade é que, à distância de oito anos, David Caiado reconhece que foi tudo feito de uma forma tranquila: não houve oposição à invasão e a Rússia rapidamente assumiu o território.

«Aquilo já tinha sido preparado e os russos aproveitaram o golpe de estado, e o facto de não haver governo na Ucrânia, para se apoderarem da Crimeia de uma forma tranquila. Os encapuzados entraram no autocarro, perguntaram a toda a gente, mas sobretudo aos ucranianos, porque é que estavam a sair, porque o objetivo deles era manter o máximo de pessoas daquele lado. Diziam que quem saísse já não seria bem-vindo», sublinha.

«Mas era uma situação tão incerta que nós queríamos era sair ali, sim. Mesmo os ucranianos queriam sair dali. Fomos para Donetsk e apanhámos um avião para Antalya. O jogo em Kiev foi adiado e ficámos à espera que as autoridades decidissem como iria ser.»

O plantel ficou duas semanas na Turquia e depois foi diretamente para Kiev, num jato que o Dínamo Kiev enviou a Antalya para ir buscar o adversário. Só depois voltou à Crimeia.

«Só que Crimeia já não era Ucrânia: era Rússia. Voltámos numa viagem de dez horas de comboio e quando íamos a entrar fomos parados por militares russos, que entraram nas carruagens, pediram-nos o passaporte e carimbaram-no com carimbo da Rússia.»

David Caiado lembra que havia tanques por todo o lado, muitos militares e bandeiras russas.

«Mas o ambiente estava calmo. A Ucrânia vivia uma crise política muito grande, as pessoas perderam a esperança no governo ucraniano e os russos aproveitaram essa fragilidade para a fazer um referendo. Havia a promessa de melhores condições de vida, de melhores salários, de baixar o preço de muitos bens essenciais e praticamente toda a gente votou a favor da integração na Rússia. Portanto quando voltámos, aquilo já não era Ucrânia, era claramente Rússia. Foi um bocado estranho porque saímos da Ucrânia e voltámos para Rússia.»

A comunidade internacional não reconheceu o referendo e não aceitou a anexação. Mas também não fez nada para que reverter aquela situação e para Caiado esse foi o problema: a guerra na Ucrânia podia ter sido evitada se tivesse havido uma reação forte.

«Na altura da invasão da Crimeia a Rússia já estava a dar um sinal de que isto podia acontecer. E continuava a haver ligações da Europa com Rússia, continuava a haver negócios e continuava a olhar-se para a Rússia da mesma forma. Quando já tinha acontecido algo de muito grave. Aquilo foi notícia durante algum tempo, depois passou e não se fez nada», conta.

«A Rússia agora pensou que podia fazer o que está a fazer, porque já o tinha feito antes. As sanções que foram impostas agora à Rússia, e que têm um grande impacto no país, já deviam ter sido aplicadas muito antes. Logo em 2014. Por isso é que o Putin achou que podia entrar por ali a dentro e ir conquistar Kiev, que era o objetivo dele: tomar Kiev, deitar abaixo o governo e colocar no poder um presidente pró- Rússia.»

David Caiado considera que a invasão da Crimeia foi uma resposta ao golpe de estado que depôs Viktor Yanukovytch, o antigo presidente ucraniano pró-Rússia.

No entanto, o facto de ter sido uma invasão incontestada lançou uma falsa sensação de que não se passava nada, que mais tarde acabou por provocar o conflito que escalou até à guerra.

«Os meus colegas ucranianos aceitaram muito bem a anexação. Até porque na altura falava-se que ia haver um investimento russo no clube e que o Tavriya e o Sebastopol, os dois clubes da Crimeia, na época seguinte iam jogar para o campeonato russo. Eles viam isso com bons olhos, era uma oportunidade de jogarem no campeonato russo», sublinha.

«Mas com o tempo percebemos que não seria nada assim. Os clubes nunca foram integrados no campeonato russo, o proprietário do Tavriya era ucraniano e abandonou o clube e os jogadores ficaram com salários em atraso. Notou-se também que os preços aumentaram, o custo de vida subiu, deixou de ser possível pagar em moeda ucraniana, enfim.»

No início, porém, o clima era de esperança.

«Lembro-me que havia música nas ruas, as pessoas estavam esperançosas num futuro melhor. Uns dias após voltarmos, houve uma manhã em que estávamos nos quartos, no centro de estágio, e começaram a passar aviões militares por cima de nós. Aquilo fazia um barulho incrível e nós pensámos que íamos ser bombardeados. Depois viemos a saber que era tudo porque o Putin vinha à Crimeia celebrar a anexão e havia um clima de festa.»

Na região, na cidade ou no balneário, embora houvesse militares e restrições, sair da Crimeia era sempre complicado, por exemplo, mas no território David Caiado não sentia animosidade.

«Nunca senti que houvesse problemas. Só tive uma situação, em Donetsk, numa altura em que entrámos num táxi para dar uma volta pela cidade. Um tunisino, que já jogava na Ucrânia há muito tempo, falou com o taxista em russo e o taxista não aceitou levar-nos. Ao ouvi-lo falar russo disse que não nos levava a lado nenhum e acabámos por ter de sair do táxi.»

David Caiado percebeu também nessa altura a diferença que havia entre as situações na Crimeia e no Donbass. Enquanto na Crimeia a invasão russa tinha sido aceite, em Donetsk e Luhansk tinha originado um conflito que escalou para a guerra.

«Acho que há uma grande diferença entre o que está a acontecer agora e o que aconteceu na invasão da Crimeia: um governo forte e no qual as pessoas veem uma esperança para o país. Por isso até houve muita gente a voltar para a Ucrânia, o que não é normal. Mas as pessoas veem no governo de Zelinski um futuro para o país», refere.

«A Rússia pensou que ia encontrar uma Ucrânia muito mais frágil, que se entregaria num primeiro momento, ou até que fosse mais fácil de conquistar num segundo momento, e isso não aconteceu. O povo ucraniano é muito orgulhoso e está a dar-nos uma lição do que é defender o país deles. Estas imagens que nós vemos, e que são muito tristes, confirmam aquilo que eu compreendi enquanto estive lá: eles não têm medo em morrer para defender o seu país. São muito orgulhosos e muito competitivos. Notava isso até nos treinos. Querem ganhar sempre e não se rendem.»

Depois de deixar a Crimeia, David Caiado ainda voltou à Ucrânia, para jogar no Metalist em 2015, e a partir da agora muito sacrificada Karkhiv viu um país diferente.

«Apanhei um país conformado, porque a comunidade internacional também o estava. Já não se ia para o Donbass: o Zorya estava em Zaporizhzhya e o Shakhtar estava em Lviv, portanto já não íamos para aquela zona, onde o conflito continuava e muita gente morria», refere.

«Os bombardeamentos no Donbass foram notícia durante algum tempo e não se quis saber mais. Mas havia pessoas a morrer. Sempre houve pessoas a morrer no Donbass. O que eu espero é que agora não aconteça o mesmo e que as pessoas não olhem para aquilo como algo normal, lá longe onde morrem pessoas constantemente.»

Artigo original 11/04/22, 23h50