Aos 30 anos, acabado de recuperar de uma lesão que o afastou dos relvados durante um ano, Ukra fez ao Maisfutebol uma visita guiada por estes 20 anos de carreira.

Numa entrevista à beira mar, em Vila do Conde, o extremo falou dos primeiros passos no Famalicão, dos anos no FC Porto, da passagem pelo Varzim, Olhanense, Sp. Braga, e do Rio Ave, a que chama casa. Falou dos amigos que fez no futebol e dos ídolos com quem partilhou balneário.

Ukra contou ainda algumas peripécias da passagem pela Arábia Saudita, onde, apesar das diferenças culturais, não deixou de fazer as suas já conhecidas brincadeiras, mas onde também sofreu com saudades das filhas.

A lesão no joelho, a cirurgia e recuperação que se seguiu, a experiência falhada na Bulgária, as perspetivas para o futuro, e o sonho de não terminar a carreira sem jogar no Municipal de Famalicão com a camisola do clube da terra, são outros dos temas desta entrevista.

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Há dois anos deixou o Rio Ave para ir para o Al Fateh. Como foi na Arábia Saudita?

É um país onde gostava de voltar. Ainda há uns dias falei com a minha mulher sobre isso. Adaptei-me super-bem.

Mas ia com algum receio?

Tinha muito medo… uma pessoa vai para um país completamente diferente, com uma cultura completamente diferente, e não sabe como as pessoas reagem. Cheguei ao ponto de apagar fotos do meu Instagram porque tinha medo que as pessoas lá reagissem mal.

As mulheres lá andam todas tapadas. Algumas consegue ver-se os olhos, as mãos, e temos a noção mais ou menos da idade, quando sorriem vê-se os rasgos dos olhos. Mas outras nem as mãos, nem a cara se consegue ver. Não se consegue saber se é nova ou velha, se tem olhos azuis… nada.

Eu fui ter à Holanda, ao estágio, e vim cá no final para me casar pelo registo porque senão a Neuza não podia viajar comigo. O último treino foi numa sexta-feira de manhã, cheguei cá à tarde, casei às 10:30 da manhã de segunda-feira e ao meio dia já estava no aeroporto para ir embora.

Nessa altura já viajaram os dois?

Não, só fui eu. Ainda não tinha casa, quis ir primeiro para ver como era, organizar as coisas, e para que quando ela fosse estar mais à vontade e orientado na cidade, saber onde podia ir…

Na altura estava lá o Nathan Júnior, que esteve no Tondela, [estava também o João Guilherme, que foi do Marítimo, e depois chegou também o Luís Leal, que jogou no Belenenses, no Estoril] e nós andávamos sempre juntos. Primeiro estive num hotel duas semanas. Depois arranjámos um apartamento, para estarmos porta com porta, para nos podermos ajudar um ao outro e, quando as mulheres viessem, não terem que estar sozinhas quando fossemos para estágio.

E elas podiam sair à rua sozinhas?

Tinham-nos dito que não, mas podem. Víamos muitas mulheres sozinhas. Nem têm de andar com a burca, bastava usarem a abaya, que é aquela roupa preta. Andavam com o cabelo à mostra e tudo. As mulheres gostavam, olhavam para a Neuza, diziam que ela era bonita, algumas tinham a tentação de lhe pôr a mão no cabelo. Mas há cidades do interior, como por exemplo Buraydah - onde está agora o Pedro Emanuel, o Heldon, e o Cássio -, mais conservadoras, mais rígidas, em que, mesmo as estrangeiras, não podem andar com o cabelo à mostra.

 

Al Qarah Mountains with friends 🔝✔️

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Mas as mulheres árabes também são vaidosas…

Elas são vaidosas, mas só mostram aos maridos ou às outras mulheres. A MAC [loja de maquilhagem] estava sempre cheia, cheia. Eles têm lá as marcas internacionais todas, mas as roupas de marcas árabes para mulheres são muito bonitas. Mesmo! Até eu ficava encantado [risos].

Usam essas roupas em casa?

Ou quando estão só com mulheres. Mesmo as abayas… aquilo é roupa pretinha, simples, mas algumas custam cinco mil euros, porque têm as pedras Swarovski, têm as mangas não sei de quê… Fui a um casamento e essa abaya, então, era mesmo fenomenal.

Como foi essa experiência?

Era o casamento do diretor de comunicação da seleção da Arábia Saudita, que é sobrinho do maior diretor do clube onde eu estava. Ele convidou os jogadores estrangeiros, mais alguns de lá. Eu disse que não tinha a roupa deles e ele chamou o roupeiro e disse: «Ó Sheker vai levar aí o Ukra, o Nathan e o João a comprar roupa». Lá fomos comprar a roupa e no dia seguinte houve o casamento, com a dança tradicional das espadas.

Eles só me queriam ver a dançar. Já me doía o ombro só de pegar na espada! Virei-me para o noivo e disse-lhe: «Olha, a tua sorte aqui é não haver álcool». Ele olhou para mim, começou a rir-se e perguntou: «Mas porquê?» E eu respondei «Se houvesse álcool já tinha matado três ou quatro, com a espada» [risos].

 

Dança tradicional no casamento árabe 🇸🇦😍🗡

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Ah, e nos casamentos é assim, os homens vão para um lado, e as mulheres estão noutro totalmente diferente. Aqui era como os homens estarem no Porto e as mulheres em Gaia, por exemplo. E aí é que as mulheres estão à vontade, mostram as roupas que têm.

Uma realidade muito diferente da portuguesa…

E o homem pode não aceitar casar. Porque primeiro vai a mãe do noivo conhecer a noiva, as mães falam, vão conhecer o resto da família [da noiva], se têm posses, ou não, o que é que os pais fazem. Depois marcam outro dia para o futuro marido vir conhecer a mulher.

E ele pode vê-la?

Pode. Vai ele, a futura esposa, se ela tiver irmãos, está o irmão mais o pai. Ela tem que andar à frente dele, e ele tem que ver se está tudo bem, se ela não é manca [risos]. Ele tem que lhe fazer perguntas e ela tem que lhe responder, para ver que ela não é surda nem é muda… E pode vê-la sem a burka ou sem a abaya, mas não pode contar a ninguém o que viu, nem ao melhor amigo. Porque mais tarde pode acontecer alguma coisa, e o outro vai dizer: «Ele contou-me como é que era a tua filha, que era isto, que era aquilo...» E pronto, se o noivo quiser mesmo casar, então depois as famílias marcam o casamento. E é assim que fazem.

Esteve lá um ano. Houve algum episódio mais caricato?

Tantos… Eles têm cinco rezas por dias. Na primeira vez que fui ao supermercado com o Nathan, tínhamos o carrinho cheio, íamos para a caixa pagar, começaram a chamar para a oração, e eles fecharam tudo para irem rezar. Algumas pessoas deixaram os carrinhos assim e foram rezar. Nós tivemos que esperar 20 ou 30 minutos, que eles voltassem, para podermos pagar. Mas podíamos deixar os carrinhos, ir para casa, e depois voltávamos.

Fui tentando saber como são as coisas. Tinha um colega de equipa, que era o mais religioso da equipa, e ele explicou-me que as casas lá têm duas salas: a de homens e a de família. Se fossemos para casa dele, mesmo que fossem muitas horas, que fossemos para jantar, os homens ficavam sempre na sala de homens, e as mulheres na sala de família. Nunca havia misturas. É muito raro ver dois casais andarem no mesmo carro também.

E a língua?

Aprendi muitas coisas. Nos 12 dias do estágio, eles ficaram surpreendidos como eu já conseguia dizer muita coisa em árabe. Como sou interessado, ia perguntando, apontava nas notas do telemóvel, e dava uma revisão todos os dias. Já sabia dizer: nariz, cabeça, olhos, boca, língua, almofada, cama…

Como lidou com o calor?

Cheguei a apanhar 56 graus. Quando aqui chove muito, paramos o carro de um lado da rua e queremos ir para o outro, damos uma corrida, para não nos molharmos. Eu fazia isso lá para entrar num sítio com ar condicionado, porque é impossível. Ainda há dias vi a entrevista de Jorge Jesus, e ele dizia o mesmo. As pessoas chegam ao ponto de pararem o carro, deixarem o ar condicionado ligado, irem comer ou outra coisa qualquer, para terem o carro fresco quando voltarem.

Só dá mesmo para estar com ar condicionado então?

Sim. Uma vez, quando estava no hotel, o ar condicionado avariou. Tentaram arranjar, não conseguiram, quando voltei do treino, que é à noite, por causa da temperatura e do sol, o quarto parecia uma sauna. Não tinham mais quartos disponíveis, era muito tarde, dormi no chão, encostado à parede, com o frigorífico aberto, para ver se entrava o ar fresco.

Não foi uma noite fácil…

São experiências que uma pessoa leva e que, olhando para trás, são engraçadas. Nesse dia até fiz uma vídeochamada com o Tarantini e com o Vilas Boas para lhes contar essas coisas todas. É raro estar maldisposto ou mais em baixo. Mesmo quando as coisas correm mal. Acho que, se as coisas forem levadas com um sorriso, com alegria, são mais fáceis de ultrapassar.

A minha mulher até já disse: «Eu não tenho três crianças em casa, tenho quatro, ainda és pior do que as tuas filhas». Mas desde miúdo que sou assim, gosto que as pessoas se sintam bem ao pé de mim. Não é ser o palhacinho de todas as festas, mas é a minha maneira de estar. E as pessoas gostam de vir ter comigo, sabem que vão ficar bem-dispostas.

Nunca ninguém ficou chateado com essas brincadeiras?

Não. Porque, até os que são mais introvertidos, qualquer coisa que eu faça, mesmo não estando habituados, dizem logo: é o Ukra, deixa estar, não há maldade. Mesmo esses, com o passar do tempo, vêm ter comigo para pegar comigo.

Mesmo na Arábia Saudita?

Cheguei a fazer coisas a meio da época que eles diziam: «Se fizesses isso logo quando vieste, davam-te um soco. Matavam-te aqui».

Por exemplo...

Aqui tomamos banho todos juntos, mas lá é impensável. Temos chuveiros individuais e entramos de toalha ou de boxers, e saíamos também tapados. Nunca saí de lá nu, mas as vezes saía de lá em fio dental, de toalhinha ao ombro. Alguns começavam-se a rir, outros diziam: «No good, No good».

E eu dizia: «olha, aproveita, se quiseres deixo-te pôr a mão, porque tenho o rabo muito melhor do que muitas árabes» [risos]. E eles começavam-se a rir.

Não houve então nenhum problema de adaptação?

Nunca tive nenhum problema. Mesmo a minha mulher gostava de lá estar. Por exemplo, se ela estivesse de pijama e eu dissesse para irmos sair, ela ia à porta, punha a abaya e dizia: «Estou pronta». Nunca foi tão rápida a arranjar-se. Nunca vi uma mulher preparar-se tão rápido para sair de casa [risos].

Mas não vou dizer que foi fácil, porque foi a primeira vez que deixei as minhas filhas. Até novembro, cheguei ao ponto de falar com a minha mulher, com o meu empresário, e dizer: «em janeiro quero ir embora. O dinheiro não é importante». Estive quase quatro meses sem ver as minhas filhas. Foi uma coisa que me custou muito, muito, muito porque estava habituado a vê-las todos os dias.

Chegávamos ao ponto de jogar às escondidas durante as videochamadas – uma contava e a outra escondia o telemóvel, que era como se fosse o pai a esconder-se -, mas não é a mesma coisa. Queremos sentir o toque, dar um abraço, um beijinho… até me adaptar a isso, foi um bocadinho complicado.

Desportivamente também não estava tudo a correr bem, não foi?

Os resultados não estavam a aparecer e isso tudo foi formando uma bola de neve. Antes tinha o Sá Pinto, a equipa técnica portuguesa, tínhamos sempre alguém que nos pudesse ajudar, de repente tiraram-nos tudo e ficámos um bocadinho perdidos. Mas depois as coisas começaram a correr muito bem em termos individuais e de equipa, e isso deu-me ânimo outra vez para ficar.

E entretanto, veio a lesão...

Depois lesionei-me no joelho. Tive uma pancada num jogo, fui fazer uma ressonância e não tinha nada, passado dois meses, ou mês e meio, num treino, senti outra vez. Fui fazer outra ressonância e eles disseram que não tinha nada. Entretanto, o joelho também não inchou, não tinha dores, fiz mais 15 dias, nem tanto, de tratamento, recuperei-me, e, como me sentia bem, fui jogar. Fiz 90 minutos para a Liga dos Campeões Asiática e depois um jogo para o campeonato, mas aí senti o joelho instável. Saí e o joelho inchou mais um bocadinho. Como só faltavam dois jogos, e já tinham falado comigo para renovar - até diziam: «Se jogas noutra equipa da Arábia Saudita, matamos-te. Vais ficar aqui connosco» -, vim logo para Portugal. Quando cheguei aqui, fui diretamente ao Rio Ave, mostrei os exames e o médico dizia que eu, no segundo exame, já estava lixado do joelho.

O que é que se passou? Acha que não quiseram revelar a lesão?

Não acredito nisso porque não iam colocar-me em campo sem estar em condições. Sei que não foi por maldade, porque eles gostavam muito de mim. E não iam prescindir de outro bom para me pôr a mim a jogar, ainda por cima numa fase em que precisávamos de garantir a manutenção. Ou não leram bem os resultados, ou não viram bem os exames…

Mesmo aqui, nos testes manuais, o meu joelho não cedia. E eu fazia tudo no campo, sem medo. Quando se sente o joelho fraco, vai-se para o campo já com receio. Num jogo fazemos movimentos de torção, rotação, salto… se o joelho estiver frágil, cede, e a mim não me cedeu.

Como é que são os adeptos na Arábia Saudita?

A minha equipa, em termos de adeptos, tinha mais ou menos tantas pessoas no estádio como o Rio Ave. Três, quatro mil pessoas. No jogo do play-off da Liga dos Campeões Asiática, em que eu marquei o golo, chegámos a ter 10, 12 mil pessoas.

Mas há clubes com mais adeptos. O Al-Ittihad onde vai jogar leva sempre muita gente, é como o Benfica aqui. Cheguei a jogar em Jeddah, no estádio que é do Al Ahli e do Al-Ittihad, com 40 mil pessoas. Mas um dérbi está sempre cheio, com 65 mil. Mesmo o Al-Hilal, onde está o Jorge Jesus e o Carlos Eduardo, também leva 50, 60 mil pessoas quando joga em casa. E agora se calhar têm que aumentar os estádios porque as mulheres também podem ir.

E as sauditas gostam de futebol?

Gostam. Quando íamos ao shopping, elas reconheciam-me e pediam autorização à minha mulher para me tirarem uma foto. 

Era assim abordado na rua por homens e mulheres?

Sim, sim. Mas as mulheres pediam primeiro autorização à Neuza.

E se fosse sozinho?

Não falavam. Eu ouvia-as a dizer Ukra, via nos olhos que se estavam a rir, mas eu não ia falar com elas e nem elas me vinham falar comigo. A minha mulher até dizia, na brincadeira, que, quando vinha a Portugal, vinha tranquila porque sabia que nenhuma mulher lá me abordava [risos].

E como é que os adeptos são nos jogos?

Sempre a cantar. Eu digo que às vezes eles nem querem saber se jogamos bem ou mal. Querem é golos.

Não sentia então pressão dos adeptos?

Nada. Mesmo nada, e passámos muito tempo em baixo na tabela até garantir a manutenção. Pelo contrário, os adeptos vinham dar-nos força para conseguirmos. É diferente de cá. São maneiras de estar diferentes.

Entrevista completa:

«Tenho saudades de jogar»

«Ao ir para o FC Porto pensei: ‘Será que Hulk e Falcao vão aceitar brincadeiras?’»

«Cheguei a fazer coisas que eles diziam: 'Se fosse quando vieste, matavam-te'»

«O treinador que mais me marcou foi o André Villas-Boas, é espetacular»