Começou a época passada no banco do Boavista, terminou-a no Moreirense e com um oitavo lugar no final da Liga, mas não continuou no cargo. Apesar de ter mais um ano de contrato, Vasco Seabra explica a saída com um fim de ciclo justificado pela diferença de perspetivas com a direção dos minhotos.

Do adeus ao Bessa confessa guardar alguma mágoa, pela forma como não foi possível apresentar resultados numa época de mudança.

«Não podemos trocar 15, 16 ou 17 jogadores e com um estalar de dedos as coisas acontecem», recorda, sobre um plantel em que contou com um «jogador estratosférico» como Angel Gomes.

Por falar em talentos, Vasco salienta também o valor de Filipe Soares e Abdu Conté, dois internacionais sub-21 portugueses que deram nas vistas em Moreira de Cónegos e que estão a ser cobiçados pelo mercado, e recorda o despontar de Diogo Jota nos juniores do Paços.

Tudo numa longa conversa no Maisfutebol, numa tarde de calor no Parque Urbano de Paços de Ferreira, sempre com entusiasmo cativante a falar de futebol e um sorriso fácil, a perspetivar o futuro que tem pela frente.

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MAISFUTEBOL – Saiu do Moreirense no final da época. Acha normal um treinador que termina a Liga em 8.º lugar, superando as expetativas da equipa, não continuar no cargo?

VASCO SEABRA – Fizemos um campeonato muito bom e isso satisfaz-nos, mas tanto para o clube como para nós percebemos que o melhor seria seguirmos caminhos distintos. Fechámos um ciclo ali.

Apesar de ter mais um ano de contrato?

Sim. O ciclo fechou. Felizmente, o telefone já tocou algumas vezes, entretanto. Mas ainda estamos a perceber por onde queremos seguir.

Mas concorda que, para quem está de fora, é uma decisão estranha?

E eu compreendo que se estranhe…

Como aconteceu essa cisão?

Quando nós chegámos tivemos um momento bom, fizemos 30 pontos em 22 jogos, seis vitórias fora de casa, empatámos com os três grandes. Nenhum passou em Moreira de Cónegos. Não se trava os três grandes por acaso. Mas a determinado momento começámos a perceber que entre nós e o clube havia visões diferentes em termos de projeto.

Consegue dar-nos exemplos disso?

Talvez eu e a minha equipa técnica queríamos ser um pouco mais ambiciosos. Quando sentimos que não estamos alinhados em termos de ideia de jogo e de construção do plantel, então, o melhor é seguirmos caminhos diferentes. Mas acredito que as pessoas do Moreirense continuam a desejar-nos sorte, tal como nós desejamos que o Moreirense venha a trilhar este caminho de sucesso.

Portanto, entenderam quebrar o contrato por mútuo acordo.

Sim.

A equipa esteve perto de se qualificar para a Europa, no entanto, surgiram notícias de que a direção não tinha tratado da inscrição. Como geriu essa situação com o grupo?

É verdade. Pelos pontos que fomos conquistando deu-nos a sensação de que poderíamos lá chegar. O discurso para o plantel era de jogo a jogo irmos conquistando os pontos, mas chegámos à penúltima jornada na expetativa de podermos chegar ao sexto lugar.

Essa dúvida de a equipa poder alcançar lugares europeus, mas não ter sido inscrita, manteve-se até ao fim?

Sim. Não tínhamos a certeza se o clube tinha cumprido os pressupostos para poder entrar na Europa. Nunca quisemos que isso fosse um tema, porque não queríamos criar uma pressão desnecessária sobre os jogadores.

Atrás disse que o telefone já tocou algumas vezes. Eram números portugueses ou estrageiros?

[Risos] Ambas as situações, mas ainda não aconteceu, ou por ainda estarmos ligados ao Moreirense ou por não ser o projeto ideal. Acredito que quando eu e a minha equipa técnica entrarmos num projeto voltaremos mais fortes.

O mercado de trabalho dos treinadores está cada vez mais competitivo, não concorda?

Qual é a profissão que neste momento não é altamente competitiva? Como em todas as profissões, «temos de dar ao canelo». Somos avaliados pelos pontos que conquistamos, mas nem tudo são resultados. Tivemos momentos em que as coisas corriam mal em termos de resultados e em que acreditávamos que as coisas estavam a ser bem feitas. E também já aconteceu o contrário. A concorrência faz-nos melhorar e estar mais despertos. Não acredito na célebre frase de que «No futebol já tudo foi inventado». O jogo está numa evolução constante.

No entanto, por cada treinador que está empregado, há uma mão cheia há procura de emprego. Esse fator não cria uma pressão maior?

Concordo. Sou jovem, tenho 37 anos, mas não olho para a bancada quando entro no campo. Não estou preocupado com quem está ou deixa de estar. Acredito que as coisas dependem de nós. Existe essa competição, mas a adrenalina e a paixão com que nós vivemos o jogo dá-nos a motivação para ir trabalhar todos os dias. Além disso, quem tem de tomar decisões não pode estar tão sujeito a que quatro ou cinco semanas possam fazer a diferença sobre se o treinador é competente ou não. As equipas técnicas também estão maiores.

E isso decorre de uma especialização cada vez maior, não?

Há cada vez mais coisas para se fazer. Adjuntos, analistas, observadores, fisiologistas, preparadores físicos, malta que controla o GPS e dados de treino… O detalhe é cada vez maior. O futebol decide-se cada vez mais no pormenor e isso faz com que a equipa técnica tenha mais gente a trabalhar cada aspeto. Há que filtrar informação. É muito fácil obtê-la, mas há muita informação cruzada e díspar. Difícil, agora, é selecionar.

Como é a sua rotina em termos de preparação de um jogo?

Temos o nosso analista, que está uma semana adiantado e observa o adversário seguinte. Logo a seguir, revemos a última partida e preparamos os tópicos que temos a melhorar em função da nossa ideia de jogo, analisamos a exibição do jogador individual e coletivamente e só a partir daí definimos o primeiro treino da semana. Procuramos que os nossos exercícios sejam competitivos, em que quem perde tem uma penalização. Queremos que os jogadores se habituem a querer ganhar até aí.

Que aspeto privilegia no seu modelo de jogo?

A nossa equipa quer um jogo de posse, mas se pudermos em dois toques chegar à baliza do adversário não iremos dar 25. Gostamos de um determinado modelo, mas se o adversário está compacto e subido, se nos está a dar as costas, então temos de aproveitar, não vamos pedir a bola no pé e jogar entrelinhas. O treino tem de potenciar isso. Tivemos jogos extraordinários em que defendemos mais baixo e outros em que defendemos mais à frente. Quando o jogador compete, por vezes, descobre soluções que nem o treinador está a idealizar. O treino serve de guia, de modelo organizativo, mas os jogadores têm muitas vezes de descobrir soluções. Não podemos ser uma equipa em que o jogador olha para o banco e pergunta “Então, e agora?” O nosso jogo tem valorizado os jogadores. O mercado tem estado a falar do Abdu Conté, do Filipe Soares… Mas houve muitos outros que fizeram uma excelente época no Moreirense. O nosso jogo não era marcar um golinho por sorte e depois virmos defender cá para trás. Penso que era um jogo audaz. Contra os três grandes passámos grande tempo a defender, pela superioridade do adversário, mas era notória a organização da equipa e as intenções de construir quando tínhamos a bola.

Considera que o Filipe Soares e o Abdu Conté, que têm sido muito falados neste mercado, estão preparados para jogar noutro patamar?

Acredito que sim. Eles precisam de um novo desafio. O Filipe, por exemplo, precisa de sentir-se desconfortável outra vez, de sentir que os que estão à sua volta podem ser melhores e que ele pode não ser titular. A exigência do treinador pode já não chegar para a evolução deles avançar para outro patamar. O Filipe e o Abdu estão no ponto de caramelo para poderem darem esse salto, porque têm tempo para poder falhar, crescer e amadurecer, ficando mais fortes noutro contexto.

Ambos disputaram a fase final do Europeu de sub-21, recentemente. Acredita que daqui a uns anos poderão estar na seleção principal?

A humildade que eles têm vai dar-lhes a capacidade de se adaptarem ao contexto e lutarem pelo seu espaço, seja onde for. Tanto um como outro têm capacidade para chegar a um clube de maior dimensão e estarem mais preparados para poderem um dia ser chamados à Seleção.

Terminou a última época no Moreirense, mas começou-a como treinador principal do Boavista. Que diferenças encontrou entre os dois projetos?

Posso dizer que já treinei um grande, porque assim considero o Boavista. Antes de treinar o clube passava ao lado do Bessa e sentia que havia ali qualquer coisa de diferente. Agora, entrei num momento de remodelação total. Houve um corte radical com o passado. Ficaram da época anterior uns quatro ou cinco jogadores e a forma como se quis fazer essa transição foi demasiado precipitada. Houve jogadores a chegarem a conta-gotas e vindos de contextos diferentes.

Isso dificultou a gestão do grupo?

Acredito que sim. Eram 13 ou 14 nacionalidades. Era engraçado porque o nosso especialista fazia a análise do adversário a falar com calma para os espanhóis perceberem, tínhamos um adjunto a traduzir para inglês para uns, outro para francês… É preciso tempo para assimilar. O plantel acabou por ficar em determinadas posições algo desequilibrado. Foi também uma pena não termos aqueles adeptos intensos e fervorosos no estádio. Tinham-nos dado num ou noutro momento uma grande ajuda. E houve também alguma falta de sorte. Fizemos alguns jogos extraordinários. Outra coisa negativa foi a gestão das expectativas.

A fasquia estava demasiado elevada?

No momento da mudança [de acionista] foi criada uma expectativa demasiado grande para aquilo que poderia ser feito. Toda a gente achava que podíamos logo lutar pelas competições europeias e isso não foi bem gerido. Não podemos trocar 15, 16 ou 17 jogadores e com um estalar de dedos as coisas acontecem. Não acontecem. Demoraram a acontecer connosco, tal como com o treinador que veio a seguir [Jesualdo Ferreira]. Felizmente, o Boavista conseguiu a manutenção, porque é um clube que precisa de estar na I Liga. E a I Liga precisa do Boavista. É um clube que não pode cair, porque tem uma massa adepta e um historial gigantes. Nós também fomos culpados do processo, mas há passos que têm de ser dados de forma mais consistente.

Por outro lado, teve algumas contratações sonantes e dispôs de alguns jogadores de grande qualidade.

É inegável que tinha jogadores inacreditáveis no plantel. O Angel Gomes é estratosférico. É daqueles que vale a pena pagar o bilhete, mas todos os dias! É uma delícia até vê-lo treinar. Mas nem sempre pudemos contar com todos, até pelo problema da covid.

Como geriu essa questão?

Por exemplo: tivemos uma excelente vitória contra o Benfica, chegámos a Faro e no dia seguinte, na véspera do jogo, ao Reisinho e ao Mangas foi detetada covid. Tiveram de voltar para o Porto. Sentimos a equipa amorfa nesse jogo. E a verdade é que passado três dias voltámos a fazer testes e o Bracali, o Nuno Santos, o Elis e a equipa técnica, incluindo eu, acusaram positivo.

A sua saída do Boavista, em dezembro, surpreendeu-o?

Tínhamos a expectativa de um casamento feliz. Custou-nos sair tão cedo. Acreditávamos que ainda tínhamos alguma margem para alcançar os objetivos. Cometemos erros, mas sentíamos que de um modo geral estávamos a fazer bem as coisas. Cresci muito como treinador do Boavista. Neste momento, sou um treinador diferente. Essa mágoa não surge contra o clube ou contra os adeptos. Aliás, ficámos a torcer para que o clube tenha sucesso.