Abrimos a janela. Às 11. Ao meio-dia. Já depois de almoço, digestão feita. O silêncio substituiu as vozes, os gritos, os festejos, as fugas apressadas. A bolada que fez estremecer o vidro da loja do barrigudo-de-camisola-de-alças que arranja televisões e persegue crianças nos intervalos, esquecendo o SG Gigante a queimar figuras cinzentas e esperança de vida no ar rarefeito. O alcatrão, esse, cumpre funções de caminho-de-cabra fora-de-época-de-eleições, onde se fintam à vez os automóveis. Os pelados são apenas isso, ou circuitos de manutenção para cães, nas suas happy hours.

Lembro-me de correr, bola debaixo do braço ou enfiada num saco de plástico verde, fintando adversários imaginários enquanto voava para um desses pisos acidentalmente despidos de silvados e cardos, talvez por terem sido antigos poisos de naves espaciais de outros planetas. Lembro-me que construíamos o nosso próprio estádio, levávamos os postes aos ombros num longo calvário até cavarmos a sua sepultura com enxadas emprestadas, deixando um mar de gente espantada pelo caminho. Onde íamos nós? Atávamos, pregávamos a trave, ligávamos suportes, encaixávamos tudo à pressa, para que pudéssemos aproveitar de um só fôlego aquele dia inteiro, antes que acabasse e viesse o velho da horta do lado à procura de lenha fácil para as noites frias.

Para onde foram as crianças?

Fazíamos gosto em tackles de loucura impensável, tingindo de uma só vez de castanho as meias de duas raquetes (uma vermelha e outra azul), irritando todos os nossos antepassados dali à Torre do Tombo. Driblávamos raízes que emergiam de tempos a tempos. Marcávamos livres diretos, tirando a esquadria ou enrolando a bola para entrar no mágico ângulo. O momento era solene, nesse primeiro jogo pela Selecção, num outro Jamor, com bancadas imaginárias e um ambiente ensurdecedor, que ecoava pelos nossos poros até ficar de noite.

Éramos profissionais de rua. Gozávamos com os outros, os badochas de calções apertados ou os palitos-feitos-gente, que traziam as camisas dos clubes pelos quais nunca iriam jogar. Gozávamos com o miúdo de dez anos que treinava no Sporting, e mostrávamos-lhe as nossas t-shirts, que nenhum de nós escolheu, mas que faziam parte do uniforme. Uma praia estampada, uma palmeira sobre o peito, sapatilhas de pano com data de validade, e uma técnica a transbordar, capaz de fazer cair chuva no deserto. Desatávamos a correr com a bola colada na parte de fora do pé, e ninguém, nem de um clube a sério, nos apanhava.

Inventávamos fintas. Olha esta! Estás a ver? Desenhávamos ésses sem nos torcermos todos, chegávamos ao meio-campo e voltávamos para trás, só para fazê-la outra vez. Fintávamos quando era obrigatório rematar, rematávamos da nossa baliza a desafiar o golo impossível. Tínhamos mau feitio, a culpa era sempre do choninhas. O gajo é que passou mal! O importante não era ganhar, era jogar, fintar, marcar grandes golos e não pequenos, as tapinhas eram para o basquete, não para ali. Uma hora, duas, três, quatro horas depois ainda corríamos sem cansaço.

Mas onde param as crianças?

Um dia, passei ao lado daquele pelado anos 80 e ainda lá mora. A horta já não. O velho deixou de precisar de se aquecer à noite com os postes alheios. As couves foram engolidas, do casebre só há memória nuns pedaços de madeira e chapa desfeitos, espalhados sem nexo. Apontei, agarrando com a mão direita o olhar do André. Foi dali, daquele mesmo sítio, estás a ver? Foi dali que imitei o Negrette, um mexicano que jogou no Sporting depois de inventar o golo de BMX. Sim, BMX, aquelas bicicletas em que fazíamos truques sem pedalar muito. Mas não foi golo, a baliza era grande, mas os postes ficaram grossos de mais. A bola bateu nos dois e saiu pela linha lateral. O melhor não-golo da minha vida!

O futebol de rua morreu. Paz à sua alma. A bola não sai das quatro linhas. Camisola dentro dos calções, meias a tocar nos joelhos. Chuteiras de pitões, caríssimas, com a assinatura de jogadores a dar mais marca à marca. À bola, joga-se num campo, num pavilhão, num rinque ou num ringue - nem sei porque não é hóquei nem boxe -, e em relva. Nas escolas, é todos para dentro. Ninguém fica cá fora a dar uns toques. Os campos estão interditos, se não há aulas segue-se a biblioteca. E por muito que livros amontoados possam servir de baliza, os corredores são sempre demasiados estreitos para um onze-para-onze. O alcatrão é para os carros e para os peões nas zebras, a terra batida voltou a ser para as naves espaciais e para que os ET venham e assumam lugares no nosso Governo.

Carpe Diem é cada vez mais uma expressão do passado, ressequida pelo latim. Os miúdos são formatados como disquetes, floppy disks (pronto, pens para os mais novos) se não os computadores não as reconhecem. Não há vidros partidos, bolas a bater na parede da miúda que quer estudar para os exames nacionais. As meias brancas perderam as raquetes, são menos um problema para a velhinha máquina de lavar. Perderam-se os túneis de Rui Costa, aquele jeito altivo (e acriançado) de conduzir a bola de Dani, as pedaladas de Figo. Perdeu-se esse jeito da rua.

Para onde foram as crianças? Devolvam-lhes a bola, por favor.


--
«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol. Pode segui-lo noFACEBOOK e no TWITTER. O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.