Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões: rgouveia@mediacapital.pt ou djmarques@mediacapital.pt

A pandemia rasgou planos de milhões de pessoas em todo o Mundo. E André Sousa foi uma delas. Por causa dela, o médio de 29 anos, que no final de janeiro deixou o Belenenses para rumar aos turcos do Gaziantepspor, está há cinco meses sem estar com a família. Em março, durante a paragem competitiva para as seleções, tinha um voo marcado para vir a Portugal buscar a mulher e os dois filhos (um deles uma menina de cinco meses), que iam juntar-se a ele até ao fim da época. Não houve seleções e a suspensão das ligações aéreas adiou um reencontro que ele agora aponta sem hesitar para o «dia seguinte ao fim do campeonato».

Até à interrupção da Liga turca, uma das últimas da Europa a parar, André Sousa somava seis jogos como titular. Só falhou um - o último, já à porta fechada - por risco de lesão. Os adeptos fervorosos do Gaziantepspor até já entoavam o nome dele («Sou-sa, Sou-sa»), mas isso fizeram-no logo desde a estreia, assinalada com uma goleada ao então líder Sivasspor por 5-1. A atravessar um bom momento, o jogador português sentiu-se como se lhe tivessem tirado o tapete dos pés, mas afirma que vingou a decisão mais sensata. «Muitas vidas, incluindo as nossas, ficariam em risco.»

Em entrevista ao Maisfutebol, André Sousa fala do futebol turco, do confinamento (e do desconfinamento) e aborda a adaptação a um país e cultura diferentes, já com peripécias pelo meio: o tratamento VIP numa barbearia, o blackout das redes sociais decretado por imposição do regime, os acordares sobressaltados a meio da noite e a preciosa ajuda do «conversor» e de um tradutor para não se deixar enganar pelos vendedores. A pouco mais de um mês de completar 30 anos, o médio português também já olha para o futuro e para uma carreira de treinador ao lado do «irmão» Gonçalo Silva, capitão do Belenenses.

Maisfutebol – Gaziantep é uma cidade situada perto da fronteira com a Síria, país com o qual a Turquia está em conflito há muitos anos. Sabia disso antes de se transferir?
André Sousa – Fui pesquisar quando o meu empresário me falou da possibilidade de vir para cá. Olhei para o mapa e reparei que era mesmo ao lado da Síria: de carro é cerca de uma hora ou uma hora e meia. Mas decidi arriscar. Na época passada já tinha estado no estrangeiro e gostava de ter continuado fora. Claro que o aspeto financeiro também foi importante.

MF – Se bem que ir jogar para a Turquia não é propriamente como ir para Espanha…
A.S. –
Espanha é praticamente igual a Portugal. Aqui a cultura é muito diferente. A religião muçulmana está muito presente e isso muda tudo, desde os hábitos à própria língua. Na Europa, mesmo falando espanhol, português ou inglês, a construção das frases é muito parecida. O turco não: é completamente diferente, está muito virado para a Ásia.

MF – E que tal a adaptação?
A.S. –
A cultura é muito diferente, claro. Mas sinto-me seguro e adaptei-me bem. Além disso, a cidade de Gaziantep é conhecida por ter uma boa gastronomia. E, como bom português, gosto de comer, embora tenha de ter alguns cuidados. A adaptação foi rápida: no futebol, quando as coisas correm bem dentro do campo, tudo o que é extra-futebol acaba por ficar mais fácil. E eu tive a sorte de termos ganho logo no primeiro jogo por 5-1 ao líder, que era o Sivasspor.

MF – Está sozinho na Turquia?
A.S. –
Vim sozinho, sim.

MF – E tem um filho quase recém-nascido, certo?
A.S. –
Tenho uma menina com sete meses e um filho com seis anos. Quando eu vim para cá, a minha filha tinha três meses. Foi uma decisão difícil de tomar, estava estável no Belenenses, mas estou com 29 anos – faço 30 em julho – e senti que era o momento de arriscar, talvez também pela experiência positiva que tive em Espanha.

MF – Mas a ideia era ir sozinho?
A.S. –
Não. A ideia era virem comigo, mas este vírus trocou-nos as voltas todas. Eu tinha viagem marcada para Portugal durante a paragem das seleções [em março]. Ia ficar em Portugal cinco dias e depois a minha família voltaria comigo até ao final da época. Mas acabei por não conseguir viajar para Portugal, porque os voos foram suspensos: estou há cinco meses sem os ver. Custa muito, claro, mas são decisões que temos de tomar. Como disse, o aspeto financeiro também pesou: em Portugal, só os três grandes e até o Sp. Braga e o V. Guimarães, esse lote de cinco equipas, garantem algum futuro financeiramente. Não há que esconder. Temos um nível de vida acima da média da maioria das pessoas, mas não temos estrutura para seguir tranquilos quando terminamos uma carreira que é curta.

MF – Voltando a Gaziantep, qual foi o primeiro impacto que teve quando chegou?
A.S. –
Vinha com a Síria na cabeça, mas maior impacto foi a condução na estrada. Apesar de conduzirmos pelo mesmo lado, eles não querem saber [risos]. Fiquei louco na primeira vez em que cheguei a uma rotunda: aqui os carros que estão na rotunda é que param. Os estrangeiros deviam ter aulas de código quando chegassem [mais risos]. E depois a segurança. Talvez por estarmos perto da Síria, há alarmes por todo o lado, seguranças a passarem os sensores no corpo e muita polícia na rua. E é inevitável falar dos sons dos megafones das mesquitas para o chamamento para as rezas: nos primeiros tempos cheguei a acordar assustado durante a noite.

MF – Essas diferenças culturais também se veem no balneário?
A.S. –
Sim. Os duches, por exemplo, são individuais. E é normal estarmos no balneário e um colega nosso estender ao nosso lado um tapete para rezar. Os horários dos treinos também são adaptados de acordo com as rezas: podemos treinar às duas da tarde, agora estamos a treinar às 17h30 e vamos passar a treinar às 18h30.

MF – Fez seis jogos como titular quando chegou à Turquia e o campeonato foi interrompido depois. É mais duro quando há uma paragem neste contexto? Não só pelo facto de estar a jogar regularmente, mas por ainda se encontrar num período de integração?
A.S. –
Sem dúvida. Cheguei aqui com muita vontade de jogar e comecei muito bem, a jogar sempre e até fiz um golo. Ajudei a criar uma opinião muito positiva em relação a mim, mesmo na imprensa. E quando tudo parou senti-me como se me tivessem tirado o tapete. Estava com os níveis de confiança em alta e fisicamente bem. Ainda se fez uma jornada à porta fechada, em que eu não estive, mas percebeu-se que não havia condições para continuar e que muitas vidas, incluindo as nossas, ficariam em risco se não se parasse o campeonato.

MF – Dá para perceber que se adaptou facilmente ao futebol turco. Não encontrou muitas diferenças no jogo em si?
A.S. –
Encontrei um futebol muito diferente. Em Portugal, o nosso futebol é muito mais tático, estratégico e mais pensado. O treinador português tem muito mais esse lado. E, apesar das diferenças, isso talvez me tenha ajudado na adaptação, porque aqui há mais espaço e isso favorece os jogadores que têm mais conhecimento tático.

MF – Sente que tem mais condições para fazer a diferença aí do que em Portugal?
A.S. –
O facto de o jogo ser mais aberto permite que eu, que tenho um tipo de jogo mais cerebral, faça mais a diferença, sim. A tática com que jogamos aqui também é muito parecida à que tínhamos no Belenenses com o Silas, com três centrais. Os processos são um pouco diferentes, mas as bases estão lá. Estou a jogar numa posição mais recuada, mas sinto que consigo tirar muito mais de mim no futebol turco do que em Portugal.

MF – (…)
A.S. –
Em Portugal luta-se muito pelo ponto, sobretudo entre as equipas que lutam pela manutenção, e isso faz com que os jogos não tenham muitos golos e existam muitos empates. Aqui não! O meu primeiro jogo, em que ganhámos 5-1 ao líder, foi de loucos. Aí percebi logo que o futebol turco era diferente: sempre partido e sem parar, com mais preocupações em atacar do que em defender. É mais interessante para o adepto, porque o jogo está sempre aberto, mas para os treinadores, que gostam de controlar as situações, não é tão bom.

MF – Por falar em treinadores, é treinado por um nome conhecido do futebol português…
A.S. –
O mister [Marius] Sumudica. Não me lembro de ele a jogar no Marítimo, porque eu era muito novo. Fala português e até me ligou antes de eu vir, o que foi importante. Disse-me para eu vir, que me queria muito na equipa dele e passou-me muita confiança.

MF – E falam sobre Portugal?
A.S. –
Falamos muitas vezes. Ele conhece mais a ilha da Madeira, claro, e há um aspeto curioso, que é ele não gostar de andar de avião. Eu uma vez disse-lhe: ‘Não gosta de andar de avião e como é que fazia no Marítimo, onde tinha de andar de 15 em 15 dias?’ Era quase o fim do mundo para ele, até porque ainda apanhou a pista antiga, mais curta. Diz que apanhou grandes sustos [risos]. Ele é uma figura muito carismática aqui na Turquia: tem algumas coisas de Jorge Jesus: aqueles gritos e o espetáculo fora das quatro linhas.

MF – Falando da pandemia: como estava a situação na Turquia quando o campeonato foi interrompido?
A.S. –
Ainda não era muito preocupante. Deu-se um bocadinho mais tarde do que na Europa e isso foi estranho, porque Istambul é o elo de ligação entre a Europa e a Ásia e tem um dos maiores aeroportos do Mundo. Falo com colegas turcos, que dizem é fácil perceber que são Istambul, Esmire e Alanya, que são cidades que recebem mais turistas. Mas a informação que chega até às pessoas não é muita e é filtrada pelo Estado na Turquia.

MF – Isso é percetível também para um estrangeiro?
A.S. –
Sim. Posso dar como exemplo um ataque que foi feito em fevereiro a uma base militar turca na Síria. O acesso às redes sociais foi cortado. Eu estava em casa e tinha as redes sociais todas bloqueadas: Facebook, Twitter e Instagram. Só funcionava o Whatsapp, através de mensagens e com falhas. Também já tive de comprar um telemóvel com um número turco, porque disseram-me que a rede dos telemóveis estrangeiros também é desativada ao fim de quatro ou cinco meses e que só é reativada quando voltamos a sair do país. E se eu quiser jogar poker com os meus amigos com dinheiro real também não consigo, porque os acessos às aplicações também são condicionados. Voltando à pandemia, agora já se vai sabendo mais informação, mas ao início era muita pouca a que nos chegava.

MF – E aí em Gaziantep em concreto?
A.S. –
Não é um ponto turístico como os que referi e a situação está mais controlada. Ao início as pessoas levavam o dia a dia normalmente. Talvez achassem que a pandemia não chegaria aqui, mas chegaram a um ponto em que viram que as coisas podiam ficar sérias e foram aplicadas algumas medidas: durante alguns dias da semana está tudo fechado. Há um recolher obrigatório e nós, jogadores, temos um papel assinado pelo governador de Gaziantep para nos podermos deslocar para os treinos e apresentarmos à polícia se formos mandados parar.

MF – E já foi mandado parar?
A.S. –
Já fui! Mas basta dizermos que jogamos no Futebol Clube de Gaziantep e podemos passar. Numa das vezes eu comecei a levantar o papel e o polícia mandou-me logo seguir.

MF – Dizia que as pessoas estão agora mais consciencializadas.
A.S. –
Perceberam que a situação é séria e há muitas restrições, mas a pouco e pouco, como em todo o lado, já se começa a observar algum desconfinamento. Neste momento ainda está tudo fechado, à exceção de farmácias, supermercados e também os barbeiros, que abriram esta semana…

MF – Pelo que vejo, nota-se que já foi cortar o cabelo [risos].
A.S. –
Já, já. Mas nós temos barbeiros que vão à academia. Eles gostam de estar muito disponíveis para os jogadores de futebol. Na primeira vez em que fui ao barbeiro, só queria cortar o cabelo e fiquei lá duas horas. Foram massagens nas mãos, cremes na cara, sobrancelhas feitas [risos].

MF – E só pagou pelo cabelo?
A.S. –
Só paguei pelo cabelo [risos]. Mas pedem-me 100 liras turcas e eu dou sempre mais qualquer coisa, porque estão sempre disponíveis, também à procura dessa lira a mais que não nos custa nada. Um euro são sete liras: 100 liras são uns 15 euros. Tenho aqui um conversor no telemóvel, que é para não me enganarem [risos].

MF – E regatear? Já teve de ser?
A.S. –
Temos de estar atentos! No aluguer dos carros, por exemplo, eles às vezes tentam pedir um pouco mais por sermos jogadores. Mas o nosso tradutor tem-me ajudado muito e não deixa que me enganem. Aqui já vi coisas que são inimagináveis em Portugal: ir à Zara num shopping e ver gente a regatear o preço da roupa. Aqui é possível discutir até preço da roupa num shopping.

MF – Vi no Instagram que já voltou aos treinos. Como foi o seu dia a dia durante o confinamento?
A.S. –
Fomos sempre acompanhados pelo preparador físico. Tínhamos um treino por dia via-Zoom às duas da tarde. Claro que não é a mesma coisa, mas tínhamos sempre a nossa atividade física. Falava e falo muito com a família, também para que a minha filhinha pequena ouça e grave a voz do pai. E joguei muito Football Manager: um vício muito grande para passar o tempo.

MF – Pensa em seguir carreira de treinador?
A.S. –
Até há um ano e tal não pensava, mas agora penso nisso. Eu e o Gonçalo Silva, que é o capitão do Belenenses, somos grandes amigos e ele convidou-me para ir tirar o curso com ele. Na altura eu não tinha essa ambição, mas aquele bichinho começou a crescer. Fiz um estágio em Espanha nos iniciados do Gijón: foi uma experiência enriquecedora num clube que trabalha muito bem a formação e já começo a pensar mais seriamente nisso. Muito provavelmente vou seguir essa vertente quando terminar de jogar e já falei com o Gonçalo: vamos trabalhar juntos.

MF – E qual dos dois vai ser o treinador principal?
A.S. –
Vou ser eu [risos].

MF – Mas ele sabe disso?
A.S. –
Sim, sim. Nós partilhamos os mesmos ideais e numa conversa ele disse que trabalhava comigo, mas só se eu fosse o treinador principal. Assumo essa responsabilidade e acho que podemos ter bases para tentar essa vertente, porque também já trabalhámos com muitos treinadores.

MF – Algum em particular que o tenha marcado? Que lhe tenha passado mais ensinamentos?
A.S. –
Todos influenciaram. Se calhar até aprendi mais com os treinadores com quem as coisas não me correram muito bem. Mas houve alguns treinadores que foram muito importantes em determinadas alturas: o Ulisses Morais estreou-me no Beira-Mar e o Sá Pinto meteu-me a titular na Liga Europa logo depois de vir na II Liga. Todos me deram coisas importantes, mas alguns foram mais importantes em determinados momentos.

MF – Mas há treinadores que percebem melhor as características do jogador e tiram mais rendimento dele…
A.S. –
Sim, sem dúvida. O Sá Pinto fê-lo muito bem comigo. Lembro-me de termos falado uma vez no ginásio precisamente sobre as minhas características. Era um treinador espetacular para o grupo. Dos treinadores que apanhei, foi aquele que mais defendia a equipa. Apesar do seu temperamento. Foi o treinador com quem mais gostei de trabalhar. Tem uma grande paixão pelo que faz e que contagia.

MF – Voltemos ao campeonato turco. O regresso está previsto para 12 de junho, mas tem havido muitos casos de covid-19 confirmados em equipas: o Besiktas, o Fenerbahçe e o Galatasaray já suspenderam inclusivamente treinos. No Gaziantepspor já houve diagnósticos positivos?
A.S. –
Na nossa equipa ainda não houve casos. Já fizemos um teste na semana passada e vamos fazer outro esta quinta-feira.

MF – Que protocolos são adotados aí ao nível dos treinos?
A.S. –
No portão da academia passamos pelo controlo de temperatura, somos aconselhados a não transportar mais do que um colega no carro, temos desinfetantes posicionados estrategicamente e é obrigatório o uso de máscara dentro das instalações do clube. No refeitório, as mesas estão todas afastadas e cada mesa não pode ter mais de duas pessoas. E a própria comida, que era servida em self-service, é agora dada pelo cozinheiro para não haver partilha de colheres, por exemplo. São estratégias necessárias, porque a única forma de lutarmos contra este vírus neste momento é evitar que ele se espalhe: porque se ele não se espalhar, não vive.

MF – E como imagina o primeiro jogo após o regresso? Também será muito diferente, a começar pela ausência dos adeptos.
A.S. –
Jogar sem adeptos vai ser completamente diferente. Vai ser difícil encontrarmos motivação para tirar o melhor de nós. O futebol vive de paixões e a paixão dos nossos adeptos contagia-nos. Mas estou muito curioso para perceber como será, mesmo a questão dos festejos: ainda não sabemos se vamos poder festejar abraçados. Mas de uma coisa tenho a certeza: as duras dos treinadores vão ser muito audíveis e isso também vai ser ouvido por quem assiste em casa [risos].

MF – Dos treinadores que teve, qual deles se faria ouvir mais num cenário assim?
A.S. –
O Sumudica, sem dúvida! Se um jogo nosso passar em Portugal, fiquem atentos ao nosso treinador [risos]!

MF – Ainda tem mais uma época de contrato. Pensa em continuar mais tempo na Turquia?
A.S. –
O objetivo é esse. Jogar o máximo possível e dar sempre o melhor. Se o clube quiser renovar, renovo. Sinto-me adaptado, conheço toda a gente no clube e as pessoas também me receberam bem. Mas sou uma pessoa ambiciosa e se surgir uma proposta de outro clube que lute por objetivos, mesmo na Turquia, pensarei nisso. Claro que serão mais uns anos de muita saudade da família, mas faço questão de continuar.

MF – E gostava de voltar um dia ao Belenenses. Eventualmente para terminar a carreira?
A.S. –
Foi o clube onde estive mais épocas, pelo qual renovei três vezes, onde alcancei as minhas maiores conquistas e onde fui muito bem tratado. Não quero opinar sobre a situação que atravessa. Houve uma mudança muito grande no Belenenses nos últimos anos, mas eu sinto que joguei sempre pelo Belenenses. Gostava de voltar um dia e poder despedir-me no Belenenses e a jogar na Liga.