Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

Há nove meses, Élio Martins era a figura da jornada para o Maisfutebol por ter bisado e feito uma assistência num encontro em que o União da Madeira parecia ter dado um passo de gigante para assegurar a permanência. Mas a formação insular acabou por ser despromovida e o avançado rumou a outras paragens.

Fomos encontrá-lo a quase 5 mil quilómetros de casa, a jogar no Akhaa Ahli Aley em Beirute, no Líbano, num destino que à partida parece improvável, para onde viajou «com medo», mas que se revelou diferente daquilo que esperava, e que rapidamente o conquistou. Há grandes avenidas, casas que custam milhões, e uma convivência inter-religiosa pacífica, lado a lado com «um trânsito infernal» e luz da companhia só disponível 12 horas por dia.

«Quando o União foi despromovido, eu não podia ir para a II Liga com os valores que estavam a pagar porque tinha que pensar no meu futuro e no da minha família», conta o avançado ao Maisfutebol.

Aos 31 anos, com «Rússia, segunda liga de Espanha, Polónia, Líbano e Arábia Saudita» em cima da mesa, Élio apostou as fichas nos sauditas. «Nesta altura, tenho que pensar no que é melhor para mim e para a minha família quando deixar o futebol. O treinador queria que eu fosse, mas o presidente já tinha ido buscar muitos estrangeiros, houve uma confusão, e depois as janelas [de transferência] fecharam e eu fiquei a ver navios.»

Surgiu então a possibilidade de rumar ao Líbano. «Lá aceitei, porque era melhor do que ir para uma segunda liga ganhar pouco», explica. Mas se foi o interesse da família que motivou a decisão, a reação dos familiares não foi de felicidade quando souberam. «Ficaram todos nervosos, apreensivos. Eu também vim com medo, pensava que ia para o meio da guerra», admitiu.

Um medo que agora lhe parece totalmente desprovido de sentido. «Cheguei à noite e fiquei num hotel. Quando saí e fui à cidade tive outra perspetiva, fiquei mais tranquilo e fiquei a gostar. A partir daí, é diferente. Não há nada como vermos com os nossos olhos.»

«As pessoas estão muito enganadas, confundem o Líbano com a Líbia, ou com a Síria. Beirute é Paris do Médio Oriente. Há muita segurança, anda-se à vontade a qualquer hora do dia ou da noite. É uma cidade bonita, as pessoas têm muito dinheiro, há prédios modernos, bons restaurantes, hotéis de grandes cadeias, como o Hilton, lojas como a Louis Vuitton, Prada, Gucci… a praia é bonita, a marina também. Ainda na semana passada esteve cá o Ronaldinho Gaúcho de passagem», explica.

Aliás, Beirute é um destino popular entre os brasileiros. «Há uma grande comunidade e até uma frota da Marinha do Brasil», diz Élio Martins, frisando que «há muitos estrangeiros» em geral.

Foi essa diversidade que o ajudou na adaptação. «Eu vim sozinho, mas tive a sorte de conhecer um colega brasileiro, outro bósnio. Vivemos todos no mesmo prédio, cada um no seu apartamento, mas andamos sempre juntos. Eu não tenho cá a família, mas eles têm a deles. Para mim é mais complicado, estar sozinho, longe, sem a família, mas temos que fazer pela vida.»

A família já foi entretanto de visita a Beirute. «A minha esposa e o meu filho vieram visitar-me em novembro. Não podem cá ficar porque ela trabalha e o miúdo está na escola. É complicado», lamenta.

Visita da família

Em termos culturais, o jogador, natural da Madeira, não sentiu nenhum choque. «A cultura é diferente, mas no Líbano existem muçulmanos, católicos, ortodoxos… é um misto. Isso faz com que as pessoas ainda se sintam mais à vontade. Não há tantas restrições como no Iraque, por exemplo». E encontra semelhanças em termos de atitude em países da Europa. «Em Inglaterra, por exemplo, há várias culturas, pessoas de vários países. Nisso, é como aqui. As pessoas andam à vontade, cada um faz a sua vida», assegura.

«Já precisei de ajuda para me deslocar e houve muçulmanos que entraram no meu carro e me levaram a sítios que eu precisava. As pessoas são simpáticas, acolhedoras. Não há nada que ter medo. É um país mesmo seguro», garante

Os cafés

A segurança fica sobretudo a cargo dos militares. «Há militares por todo o lado, até porque existe guerra perto, na Síria, e depois a situação da Palestina e Israel», explica. Apesar da proximidade, viajar para um país vizinho não é assim tão fácil. «Eu posso ir a Israel sem problemas, mas depois não me deixam entrar de novo no Líbano por causa do carimbo no passaporte», explica. São marcas ainda do conflito armado entre os dois países.

Esta não é a primeira vez que Élio Martins ruma ao estrangeiro. Já tinha estado em Chipre por indicação de André Villas-Boas, e na Bulgária, depois de ter sido campeão da II Liga no Beira Mar com Leonardo Jardim. As comparações são inevitáveis.

«Quando estive na Bulgária, as pessoas nem se davam ao trabalho de querer falar inglês. Aqui não. Há universidades francesas, americanas», conta.

Um cosmopolitismo que não é só um mar de rosas. «É tudo caro. As pessoas têm muito dinheiro, vivem bem, há grandes prédios, grandes apartamentos, mas custam 300 mil dólares [279 mil euros] no mínimo. E isso é um apartamento normal, nada muito luxuoso. No centro de Beirute os preços sobem para 5 a 11 milhões [4,6 a 10, 2 milhões de euros]. É uma coisa absurda», exclama.

«Aqui não se veem casas, só apartamentos, seja na cidade ou na montanha. E tudo moderno. A guerra [a última foi em 2006] deixou marcas, mas, onde ainda se nota, eles aproveitam para fazer uns apartamentos vintage, com cenários e assim», explica.

Cidade de prédios altos

Essa modernidade não chegou a todos os setores. «A luz da companhia só está disponível 12 horas por dia, o resto tem que ser por gerador, que todas a casas têm. Mas com o dinheiro que eles têm, não percebo como não mudam isso», conta Élio Martins, com queixas também da internet, que «é cara e um pouco lenta».

Fora de casa também há desafios. «A condução é o salve-se quem puder, fez-me um pouco de confusão. Ninguém respeita ninguém. Numa avenida de três faixas, eu vou no meu sentido, e aparecem-me motas pela frente, em sentido contrário», admite o jogador. «E há muito trânsito na cidade. É infernal. Não há rotundas, há sempre motas a aparecer pela frente, bicicletas, gente a passar», conta. E há outra coisa que lhe causa estranheza em termos rodoviários. «Com tantos milhões de habitantes, uma condução em que ninguém respeita ninguém, como e que não vejo acidentes. Eles conseguem desenrascar-se.»

O clima também trouxe algumas surpresas. «Está muito frio aqui, e está a nevar. Não é o que se espera do Médio Oriente».

Adepto da comida portuguesa e pouco fã de experiências gastronómicas, Élio Martins não está rendido à gastronomia libanesa. «Usam muitos temperos, mexe um bocado com o estômago de quem não está acostumado. No dia-a-dia costumo cozinhar, mas ao fim de semana vou ao restaurante. Como existem muitos estrangeiros, e muitos hotéis, há muita comida internacional», explica.

Outra surpresa é o facto de o «desporto rei» no Líbano ser o basquetebol, não o futebol. «No futebol, o campeonato não é muito atrativo, apesar de ter bons jogadores. Só podemos ter três estrangeiros por equipa», explica.

Em campo também surgem algumas surpresas. «A minha equipa luta pela manutenção, mas ganhámos pela primeira vez ao Al-Ansar, uma equipa que entrou para o Guinness por ter ganho o campeonato durante 11 anos seguidos [entre 1988 e 1999]. Eu marquei três golos e ganhámos por 5-1. Para os meus colegas e para os adeptos foi uma grande festa», conta Élio Martins.

A festa não se ficou pelo dia do jogo. «No treino a seguir trouxeram um bolo, deram-me flores, os adeptos começaram a cantar. Parecia que tínhamos ganho um campeonato. Festejaram, dançaram… sei lá. E eu estava admirado com aquilo. Tudo bem, tínhamos ganho, mas não ganhámos nada», recorda.

A festa pela vitória ao Al-Ansar

O avançado não tem estado de mal com a baliza. «Em oito jogos marquei seis golos», começa por dizer, mas depois corrige. «Tinha marcado sete, mas houve uma situação num jogo contra o Al-Ansar em que estávamos a ganhar 2-0, depois eles marcaram o 2-1, e a seguir houve uma situação em que era penálti e gerou-se uma confusão entre adeptos e o jogo teve que ser interrompido e repetido».

O contrato com o Akhaa Ahli Aley é por uma temporada, ou seja, até abril, altura em que termina o campeonato, porque Élio não gosta de traçar «objetivos futuros». «De ano a ano, passo curto. Prefiro estar concentrado no presente», diz.

«E depois vê-se. Há aqui boas equipas, que lutam pelo campeonato, pela liga dos campeões asiáticos, têm boas referências minhas, por isso vou continuar a trabalhar a ver se surge uma oportunidade melhor», adianta.

Prémio de melhor em campo

Se ficar no Líbano é uma opção que não descarta, o avançado confessa que sente «falta de jogar na I Liga portuguesa». «Já vi alguns jogos e podia estar a jogar na Liga perfeitamente. Tinha valor, mas não fui convidado, pronto. Tive que ir para onde me quiseram. Mas também de que me servia jogar na I Liga para depois acabar o futebol e não ter dinheiro», diz, não escondendo alguma mágoa em relação ao futebol português.

«O futebol em Portugal é uma ilusão. Tirando os três grandes, em termos financeiros é muito fraco. Há jogadores na I Liga a ganhar dois mil e tal euros. E nós não estamos em Itália, onde ainda chegam aos 35, 36 anos. Em Portugal, aos 32 anos, acabou-se a I Liga». E Élio já está com 31.