Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do Mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões para djmarques@tvi.pt ou rgouveia@tvi.pt

João Janeiro é um nome que está a dar que falar na Hungria. O treinador português começou a temporada à frente do modesto Kisvárda, mas surpreendeu tudo e todos com um início de época espetacular, assumindo a liderança do campeonato à frente do histórico Ferencvaros. O sucesso nas terras magiares extravasou fronteiras e, em novembro, o FC DAC 1904, de vizinha Eslováquia, pagou a cláusula de rescisão e levou o «milagreiro» português.

Agora, na Eslováquia, o treinador português está a liderar «o clube mais odiado do país», mas que é adorado pelos húngaros.

Veja daí conhecer o percurso do treinador português que começou a carreira como analista do Athletic Bilbao de Marcelo Bielsa e que ficou amigo de Walter Zenga no Emirados Árabes Unidos.

Começamos pelo início da época. Como começou essa aventura no Kisvárda?

- Começou um ano antes. Eu já tinha contrato com o Kisvárda na temporada anterior, no entanto, não se concretizou porque a federação da Hungria não aceitou a minha inscrição porque ainda estava a tirar o curso da UEFA Pro. Eles aqui são muito exigentes, como em Portugal, enquanto um treinador não tiver a licença não pode estar na I Divisão. Estive parado um ano, mas as coisas acabaram por se proporcionar, acabei por concluir o curso e finalmente pude assumir o Kisvárda. Foi um projeto excecional, deixei muitas saudades lá, mas a vida do futebol é assim mesmo.

O Kisvárda estava há apenas quatro anos no primeiro escalão, quais eram os objetivos que te pediram no início da temporada?

- Pediram basicamente para fazer o melhor possível, como é lógico, as ambições nunca seriam muito grandes, passavam pela manutenção. O campeonato húngaro é extremamente competitivo e forte, com muita gente, com os media muito latentes. Todos os jogos são televisionados, com patrocínios, com o Governo envolvido, é um espetáculo autêntico. A nível de recrutamento foi muito importante, é preciso ir buscar jogadores que se enquadrem na filosofia do treinador. Quando fui à primeira reunião com o Kisvárda eles tinham o dossier preparado sobre mim, como é que eu jogava, filosofia de jogo, etc. Eles queriam a mesma coisa. Depois de uma análise ao plantel, fui contratar jogadores através de uma plataforma muito conhecida, basicamente jogadores que estivessem livres. Acabei por contratar jogadores livres no mercado e quando saí do Kisvárda estávamos em primeiro no campeonato.

Acabou por surpreender toda a gente, colocar o modesto Kisvárda à frente de um histórico como o Ferencvaros…

- Fomos lideres praticamente até eu sair, até à 15.ª jornada. Gostei muito da simbiose que se criou ali com toda a gente, com os jogadores, num ambiente muito austero e muito difícil. É um clube muito isolado, está numa das fronteiras com a Ucrânia, está demasiadamente a leste, por assim dizer.

Na altura, os jornais húngaros falavam no «milagre de Kisvárda», foi mesmo um milagre?

- Não quero ir por aí pelos milagres, os milagres dão sempre muito trabalho para acontecerem, até nas histórias bíblicas. O que aconteceu ali foi que não criámos grandes expetativas e, assim, conseguimos trabalhar melhor. Num mundo em que há tanta pressão para tudo, seja em que área for. A pressão no desporto é saudável, mas há vários tipos de pressão. Há a pressão saudável e há aquela pressão que não faz sentido nenhum. Não vou dizer que foi um milagre, vou dizer que as coisas foram muito bem planeadas. Eu tinha um plantel curto, como gosto, um plantel com dezanove jogadores porque depois vou sempre buscar jogadores à academia. Acabei por introduzir dois ou três jovens na equipa que, entretanto, já foram às respetivas seleções. Tudo isto conta, porque a nível financeiro isto será muito bom para o clube.

E o que aconteceu em novembro? Apareceu o FC DAC e pagou a cláusula?

- Apareceu o DAC. Eu estando na Hungria estava sempre a ouvir falar no DAC porque é um clube que está na fronteira da Eslováquia com a Hungria, mas é praticamente um clube húngaro, toda a região é húngara. É um clube muito específico. Basicamente é um clube que é odiado no país todo, mas que é adorado na Hungria. Tem muitas dificuldades a esse nível.

Mas o DAC chegou e pagou a cláusula de rescisão?

- Sim. Eu até podia dizer que não, mas quando surge um clube interessado… Isto até pode soar a cliché, mas todos os treinadores gostam que os clubes estejam interessados nos seus serviços. É importante o clube manifestar essa vontade de querer contar contigo. Tivemos algumas reuniões e percebi na altura que o clube estava mesmo interessado em mim. Por outro lado, para virem buscar um treinador naquela altura, queria dizer que o clube não estava bem. Estava e está com uma crise de resultados porque, basicamente, oitenta por cento do plantel foi vendido.

Falou-se que o DAC pagou um milhão de euros para o Kisvárda o libertar…

Não, não foi tanto dinheiro. Se fosse um milhão eu tinha vindo para aqui com um salário principesco e não é o caso. Posso dizer que a mudança de projeto deveu-se a isso, a venderem-me como um projeto futuro. Eu em Kisvárda não podia ter a família comigo, já estou há muitos anos fora e um pouco cansado com isso. Ainda agora, antes de falarmos, vim para casa mais cedo porque a minha filha adoeceu esta noite. Estando à distância, são coisas difíceis de ultrapassar. A ideia de vir para aqui foi essa, em Kisvárda estava muito isolado, aqui tenho três aeroportos à volta e a família pode vir visitar-me. Não tenho muito tempo para ir a Portugal, mas a família, mais ou menos uma vez por mês, tem vindo cá. Se ficar para a próxima época, se calhar juntam-se mesmo a mim. Já viveram comigo na Hungria, mas noutra cidade.

Mas a nível desportivo, não deve ter sido fácil deixar um projeto que estava a ter sucesso. Deixou uma equipa no primeiro lugar na Hungria para ir treinar outra que está em quatro lugar na Eslováquia…

- Foi muito difícil. Ainda hoje, semanalmente, tenho jogadores a contactarem-me, a pedirem-me conselhos e ajuda. Foi mesmo muito difícil, aquilo que pesou mesmo foi o facto de poder estar com a família, pelo menos uma vez de seis em seis semanas eles poderem cá vir. Foi e continua a ser difícil porque é um projeto bom. Acho que vai ser a primeira vez, apesar de ter perdido algumas posições, que o Kisvárda vai conseguir uma qualificação para uma competição europeia, o que é excecional.

O João Janeiro pode até qualificar duas equipas de países diferentes para a Europa na mesma época, não é assim?

- É verdade. Quando vim para aqui, o DAC estava a um ponto do play-out, portanto de ir disputar a descida de divisão ou a manutenção, mas conseguimos inverter a situação, ganhámos 13 ou 14 pontos na altura, e saltámos para a zona de play-off de campeão. Agora, se conseguir ir à Europa com o DAC, que vai ser uma missão quase herculeana. Mas se o conseguir fazer, se calhar o Kisvárda e o DAC vão os dois à Europa.

Há uma grande diferença entre os planteis do Kisvárda e do DAC?

- Não posso fazer comparações. No Kisvárda, o plantel que construí lá, a ideia foi combinar maturidade com juventude. Eles, nesta altura, estão completamente à vontade, estão no segundo lugar com mais seis pontos do que o quarto, portanto, para irem à Europa têm as coisas nas mãos deles. Aqui no DAC, quando há uma mudança de treinador, é sinal que as coisas não vão bem, como é lógico. Quando cheguei cá o plantel tem 32 jogadores, todos numa faixa etária muito jovem. Os que não são jovens também são pouco experimentados. Tenho vinte nacionalidades, com oito religiões diferentes, vinte maneiras de pensar. São projetos que demoram tempo a desenvolver. Vai depender de muita coisa, mas para já estou muito orgulhoso do caminho que temos feito. Estamos em primeiro lugar nas estatísticas e na Big Data, que hoje em dia é muito analisada, em todos os parâmetros ofensivos da liga. Infelizmente não conseguimos fazer golos. A minha linha de ataque é composta por jogadores de 18 ou 19 anos, com pouca experiência, mas o clube fez o seu papel, vendeu jogadores. Vendeu muito bem, é preciso dizê-lo. Depois, quem vai para aqui, tem de sofrer um bocado.

Tem contrato até quando?

- Tenho contrato até ao final da época, pagaram a minha cláusula, mas o meu contrato foi de um ano. Ainda não houve conversas se vou ou não ficar. Estou a dar o meu melhor.

Um plantel com muitas nacionalidades, incluindo três portugueses: o guarda-redes Ricardo Ferreira

(ex-Marítimo e Portimonese), o defesa Alex Pinto (formado no Benfica) e o avançado Andrezinho (contratado ao Mafra).

- Vieram agora mesmo a acabar o mercado de inverno. O guarda-redes titular queria sair, fomos buscar o Ricardo para trazer mais experiência para o balneário, mas, entretanto, o Ricardo lesionou-se e não tem estado a jogar. Depois veio o Alex Pinto, estava livre no mercado, e veio o André do Mafra, um jogador para fazer a ligação do jogo. Mas isto são processos que demoram tempo. Eles chegaram praticamente a fechar o mercado, estão cá só há dois meses. É um processo de adaptação para eles também, é uma liga muito diferente, uma liga que não para, o ritmo de jogo é muito elevado. É a quinta liga europeia que mais exporta jogadores e é também a primeira liga europeia que mais despede treinadores. É uma liga difícil e os portugueses que vieram agora precisam de tempo de adaptação. Têm contratos por mais do que uma época, portanto têm este período para se adaptarem e, depois, para o ano, podem começar já a dar mais de si. Mesmo assim, estou satisfeito, têm dado uma boa resposta.

O Kisvárda destacava-se por um futebol extremamente ofensivo, é isso que também quer aplicar no DAC?

- Segundo as estatísticas da liga eslovaca, o DAC está em primeiro lugar em todos os parâmetros ofensivos. Seja em drible, entrada na área, seja em remates, seja e chances de golo. Há uma métrica muito importante que é o Expeted Goals (XG) que envolve mais de cinquenta parâmetros e nós somos o top da liga. Infelizmente, lá está, por um motivo ou por outro, as bolas não estão a entrar. Ainda este fim de semana jogámos em Bratislava com o líder Slovan e tivemos dez chances de golo. Eles tiveram três e ganharam por 3-1. A diferença é esta porque, em termos de futebol ofensivo, na liga não há ninguém a praticar o nosso tipo de futebol. Isso deixa-me orgulhoso pelos jogadores. Não há vitórias morais no futebol, todos sabemos disso, mas estas métricas também nos ajudam a cultivar-nos. O futebol também é isto, quem fizer menos erros poderá ganhar mais vezes. Quando cheguei tive uma abordagem mais pragmática, foi nessa altura que fizemos muitos pontos, mas a partir de fevereiro, quando começou a segunda parte da liga (play-off), aí sim, começamos a jogar um futebol mais ofensivo, mas por isso mesmo também somos mais penalizados a nível defensivo. Paga-se um bocado caro, mas é continuar a acreditar no processo.

O DAC não tem ganho muito, mas também raramente perde. Nos últimos jogos tem seis empates…

- Exato, também não perdemos, desde que estou aqui tivemos três derrotas e foram sempre contra os primeiros. Em termos de métrica, do Expected Goals, em cada partida, quase duplicamos os valores do adversário com quem jogamos. É uma frustração enorme para o treinador, mas tento não passar esta frustração, nem para mim e muito menos para os jogadores. Recorro ao Big Data para que eles continuem a acreditar. São dores de crescimento. Vamos dar o máximo até ao final da época para tentar ir à Europa, mais não posso fazer, não jogamos sozinhos.

O DAC jogou agora com o Slovan, vai receber o Zilina, e depois volta a jogar com o Slovan Bratislava em casa. Mais um jogo grande?

- É uma liga extremamente esquisita. Há jogos que não têm VAR, há jogos que têm um determinado horário, depois são alterados os dias. Agora estamos na fase play-off, somos seis equipas e jogamos todos uns contra os outros, mas a ordem dos jogos não segue uma lógica.

Disse que o DAC é um clube odiado na Eslováquia, quer aprofundar?

 - É um clube que está numa situação específica e política por ter uma grande comunidade húngara. Depois há problemas com as arbitragens, temos de viver com isso, não vale a pena estar a chorar. Mas tem sido uma experiência enriquecedora para mim, é um desafio enorme. Nestes seis meses, tenho uma sensação de trabalho de cinco anos.

Voltando um pouco atrás, começaste a carreira há onze anos, como observador/analista no Athletic Bilbao. Como correu essa primeira experiência?

- Foi muito bom, chegámos a uma final europeia [Liga Europa] que depois perdemos. Jogámos com o Sporting [meias-finais, 2-1 em Alvalade, 3-1 em San Mamés] e, por acaso, tivemos alguma sorte, principalmente em Bilbau.

No Athletic trabalhaste com o Marcelo Bielsa? Quais eram as tuas funções?

- O Bielsa era o treinador principal. Eu era treinador/analista. Analisava os adversários e a própria equipa. Também fazia análises mais profundas que ele me pedia. Lembro-me que na altura fiz-lhe um dossier completo sobre o Inter Milão no final da época.

É uma pessoa fácil de lidar?

- Não tive muito contato com ele, falava mais com os adjuntos, com o Diego Reyes que penso que ainda trabalha com ele. Ele é uma pessoa que vive no seu mundo, tenta utilizar tudo o que pode para ter um descargo de consciência de que fez tudo para ganhar o jogo. É uma pessoa que provoca algum desgaste, principalmente nos jogadores. Ele tem aquele primeiro impacto no primeiro ano, mas depois provoca algum desgaste. Não é que seja má pessoa, não é, mas enfim… Há métricas que ele quer saber e que eu já não uso. Mas trabalhei com muitos outros, também trabalhei com Zenga, fiz trabalhos para o Chelsea, para o Zenit, para muita gente. Eu, na altura, desenvolvi uma maneira de análise do adversário que fosse aplicada ao modelo de jogo da própria equipa. Basicamente filtrava o que interessava para o jogo, porque há muitas análises que se fazem que não interessam para o jogo. Tu não vais mudar a forma de jogar, podes mudar a estratégia. Ainda a semana passada vi o Real Madrid a defender com uma linha de seis e a sair em contra-ataque. Isto era uma coisa impensável há três anos atrás para o Real Madrid. O Real Madrid abdica da posse de bola, mas quer ganhar o jogo em velocidade. Para mim é muito prazeroso ver este Real Madrid porque é um jogo baseado na velocidade e gosto muito.

Também passaste pelos Emirados árabes Unidos, no Al Jazira, também acrescentou alguma coisa à tua carreira?

- Fiz um trabalho de consultadoria que foi muito positivo. Acho que todas as experiências que tive foram positivas. Foi nessa altura que conheci o Zenga e estive para ir com ele para a Sampdória e depois para o Wolverhampton. Depois estive na II Liga e na I Liga, com Belenenses e Estoril. Depois de ter estado na I Liga saltei para o Campeonato de Portugal sempre com a ideia que haveria de lá chegar. Abdiquei de uma vida mais confortável, preferi seguir a minha via, com muito sacrifício.

Ainda antes de ires para a Hungria, também passaste pelos Estados Unidos, no FC Tulsa.

- Foi porque fiz um curso na Irlanda e conheci um diretor de lá. Nos Estados Unidos os clubes são franchisados e funcionam de uma maneira diferente dos clubes europeus. Era um clube franchisado do FC Dallas. Fui para lá dar periodização tática, foi extremamente positivo, eles hoje em dia ainda estão a colher resultados. Ainda há pouco tempo um dos presidentes mandou-me uma mensagem a lembrar que apostei num jogador que, na altura, tinha 17 anos e agora já é internacional A pelos Estados Unidos com 21. Foi uma experiência brutal, adorei os Estados Unidos, a maneira como vivem o jogo, com os estádios sempre cheios. A forma como promovem o jogo. Taticamente deixam um pouco a desejar, mas dão tudo nos treinos, é espetacular.

Só na Hungria é que começas mesmo como treinador principal?

- Sim, tinha lá ido fazer umas palestras e fui convidado para treinar um clube – o Szeged – que tinha descido à III Divisão e que ia inaugurar um estádio novo no final do ano. Estamos a falar de um estádio de 45 milhões de euros. Vim para a Hungria, subimos à II Divisão, fizemos uma excelente primeira volta, mas depois chegou a pandemia e parou tudo. Entretanto, pedi a rescisão, vim para casa e foi nessa altura que recebi o convite do Kisgárda. Agora estou aqui em Dunajská Streda, que é na Eslováquia, mas para mim continua a ser a Hungria. Vamos ver como vai ser o meu futuro.

Já são quase quatro na Hungria, chegaste a aprender a língua?

- Sim, logo no primeiro ano, tive um professor da parte do clube e aprendi alguma coisa. É uma das línguas mais difíceis do mundo, não sou fluente na língua, mas se alguém estiver a falar, percebo oitenta por cento. Responder é um pouco mais difícil, tenho de recorrer ao inglês na maior parte das vezes. No clube onde estou agora, na Eslováquia, o inglês é mesmo a língua oficial porque com 32 jogadores e vinte nacionalidades diferentes no plantel tem mesmo de ser em inglês. Aqui tenho de falar inglês, francês, porque tenho africanos das ex-colónias francesas, e português porque também tenho um brasileiro e os três portugueses.

O que nos pode contar de Dunajská Streda, a cidade que acolhe o DAC?

- É uma vilazita que fazia parte da Hungria, mas depois da II Grande Guerra, ficou a pertencer à Checoslováquia que, por sua vez, dividiu-se entre a República Checa e a Eslováquia. Ficou na parte eslovaca, mas isto basicamente continua a ser uma cidade húngara. É um clube que é adorado por toda a Hungria, mas que ninguém gosta na Eslováquia.

Sok sikert [boa sorte em húngaro] João Janeiro.

Mais Estórias Made In

Artigo original 12/04/22, 23h50