Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

Há quatro anos, Leonel Fernandes partiu para Macau «numa espécie de férias» que acabariam por lhe mudar a vida. Os sonhos no futebol, que estavam adormecidos, foram reavivados e o projeto ambicioso que gizou acabou por não dar certo em Portugal, mas florescer de forma inesperada num regresso a Macau motivado pelo amor. Lidou com o choque cultural, garante que está adaptado e feliz e, desde então, sagrou-se por duas vezes campeão e na época passada foi o melhor marcador da Liga de Elite. Aos 29 anos, o avançado do Benfica de Macau sente-se preparado para jogar a nível superior e ainda sonha com a I Liga.

Foi do outro lado do Atlântico que Leonel Fernandes recebeu o convite para ir pela primeira vez a Macau. «Estava no Rio de Janeiro a terminar o semestre. Tinha interrompido o futebol para fazer um intercâmbio no terceiro ano da faculdade e um amigo português disse-me: ‘Já que estás de malas feitas, vens cá, conheces a Ásia, e ajudas-me a subir a minha equipa [Casa de Portugal] à primeira divisão’», contou o avançado ao Maisfutebol.

Já com o «bichinho das viagens», contagiado pelas histórias contadas pelos colegas de Erasmus da Universidade, resolveu aceitar. «Pensei: ‘Não tenho nada a perder. Se correr mal, volto para Portugal porque tenho o curso para acabar’».

O curso de Administração Público-Privada, na Faculdade de Direito, em Coimbra, foi sempre a prioridade e o motivo para ter trocado a Madeira pelo Continente. Leonel descreve essa primeira migração como «um choque enorme». «Tão grande como senti em Macau», assegura.

«Quando saí foi só para estudar, mas decidi conciliar com o futebol porque acho que tinha qualidade para continuar a jogar. Fui sempre conseguindo ter as duas coisas, apesar de, conforme as exigências académicas iam aumentando, o futebol ir ficando um bocadinho para trás».

«Na altura, para mim, fazia mais sentido assim. Eu queria mesmo acabar o curso e, embora não tivesse tido a sorte de conseguir um bom contrato quando era mais novo, conclui o meu curso e hoje faço o que mais gosto, que é jogar futebol. Não me arrependo de nada e acho que sou um privilegiado», garante.

Chegado a Macau, mesmo com amigos à espera, foi inevitável sentir que estava num mundo diferente. «Para um português, ir ao Brasil, Venezuela... onde haja uma raiz latina, não traz grande choque cultural porque nos identificamos um pouco. Mas quando viajamos para África e para a Ásia, aí sim, sentimos mesmo o verdadeiro choque cultural».

«Embora se notem efetivamente as raízes portuguesas na arquitetura, nos autocarros, nos meios de comunicação – temos três jornais portugueses - , também sentimos o choque cultural porque estamos num mundo completamente diferente, não só pela distância geográfica, mas também pela forma de pensar, pela forma como as pessoas abordam a vida. Há uma comunidadezinha considerável de portugueses em Macau - tendo em conta a pequenez que é esta península, ainda somos alguns - , mas, em termos de população, 80 por cento serão chineses».

A primeira coisa que estranhou foi «a quantidade de pessoas por metro quadrado». «É muita gente para uma ilha tão pequena. Eu sou madeirense e quando penso que Macau é mais pequeno do que o Porto Santo e tem 600 mil habitantes... é impressionante», recorda.

«A maior barreira foi mesmo a língua», explica. Em Macau, as línguas oficiais são o cantonês e o português, mas há outra, global, que acaba por dar muito jeito para comunicar no dia-a-dia: o inglês. «O meu inglês era muito pobre e no início eu queria expressar-me e não conseguia. Tive muitas dificuldades», conta, recordando um episódio que ilustra essa barreira linguística.

«Quando cheguei trabalhava num restaurante à hora de almoço para ganhar umas pataquinhas extra. Ia-me desenrascando com o meu inglês, mas um dia um casal de estrangeiros pediu-me uma spoon. Não percebi o que era e olhei para o menu à procura. Passado um minuto, como não encontrava, lá lhes disse que não devíamos fazer aquele prato ali. A senhora percebeu, riu-se, e apontou para a colher do marido e disse: isto é uma spoon. Acho que isso foi importante para eu admitir que era importante aprender e hoje falo inglês fluente».

Não parou por aí. «Agora estou a tirar outro curso superior, estou a terminar o primeiro ano de mandarim». Outra forma de mergulhar na cultura. «Aprender a ler e a escrever mandarim está a ajudar-me imenso a perceber a cultura chinesa. É como se tivesse que criar outra pessoa em mim porque a forma de falarem, de escreverem, é completamente diferente da nossa. Nós temos o abecedário e eles não. Conseguir ir à China e ter uma conversa é algo extraordinário e que nunca pensei que seria capaz».

E como foi a adaptação à comida? «Em Portugal gostava muito de ir aos restaurantes chineses, apesar de não ter nada a ver porque são ocidentalizados. Eu gosto muito da gastronomia chinesa porque é muito rica e muito diversa. Há pessoas que, mesmo estando em Macau, só comem comida portuguesa. Eu não. Gosto mesmo de experimentar outras coisas».

Mas, nas aventuras gastronómicas, tem alguns limites. «No que toca a vegetais, têm combinações deliciosas. No que diz respeito a animais, confesso que não gosto de ir muito além. Eles aqui exageram um bocado, até baratas comem».

E cães... «Essa história de eles comerem cães é como as bruxas, ninguém acredita, mas lá que existem, existem. Nunca os vi, mas comem-nos. Eu repudio, mas se pensarmos que, por exemplo, na Índia temos que parar o trânsito porque passa uma vaca. Se os indianos souberem que nós comemos vaca, sentem a mesma coisa que nós sentimos com os cães».

A primeira experiência em Macau durou poucos meses porque Leonel regressou para terminar o curso, mas deixou marca. «As coisas em Macau correram bem, eu gostei, e as pessoas vinham falar comigo sobre a minha forma de jogar, com elogios que não ouvia há algum tempo. Fizeram-me voltar a acreditar».

Por isso, chegou a Portugal com um plano montado: «A minha ideia era começar no distrital e chegar à I Liga em três anos», conta. «E, por incrível que pareça, o meu plano estava a correr bem».

«Quando cheguei, nenhum clube me queria. Fui jogar para o distrital e, em dezembro, o Fátima ligou-me para reforçar o plantel. Já estava a dar um passo no caminho que queria. Cheguei ao Fátima e fui o melhor marcador. Fiz acho que sete golos nesses seis meses. Só pensava: ‘Se num ano já aconteceu isto, de certeza que vai dar [para chegar à I Liga]’. Depois tive imensas propostas e escolhi o Tirsense porque estava numa série muito competitiva», recorda.

Mas a época não correu bem. «Foram dois treinadores embora. Entradas e saídas de jogadores. Foi demasiado para mim. Entretanto, tinha em Macau a minha namorada, que é agora minha mulher, e a distância já não ajudava muito. Por isso, em dezembro, tomei a decisão de deixar o futebol e ir para Macau».

Estávamos no final de 2014 e o jogador não tinha um plano definido. «Não tinha nada, ia ver quando chegasse». E o que acabou por ver foi a entrada na equipa do Benfica de Macau, em que se sagrou campeão nas últimas duas temporadas. «Quando pensava que os meus sonhos tinham acabado, cheguei aqui e as coisas estão a correr extremamente bem».

«Em Portugal joguei na II B [Campeonato de Portugal]. Fiquei duas vezes em segundo lugar, mas nunca consegui jogar acima disso», conta. «Em Macau já fui duas vezes campeão e no ano passado fui o melhor marcador do campeonato, com uma média de 1,5 golo por jogo, jogámos o apuramento para a Taça AFC, que é o equivalente asiático à Liga Europa. Foi muito bom e isso dá-me força e sinto-me preparado para jogar a um nível superior. É para isso que trabalho, porque se me acomodasse não teria feito tantos jogos e tantos golos», garante.

«Quando vim a primeira vez estava resignado em relação ao futebol. Hoje em dia já temos casos de jogadores que andam desaparecidos e depois aparecem aos 29, 30, 31, com uma força... antigamente, aos 21 anos, já era tarde. Hoje tenho 29 anos e acho que há condições de ainda chegar a um bom clube, num patamar superior», afirma.

«Já estou completamente adaptado e gosto imenso de cá estar. Sinto-me feliz, mas nunca se sabe se daqui não vou fazer um ano na I Liga. É um sonho que eu tenho, mas numa ambição meramente desportiva. Fazer um jogo na I Liga com 50 mil pessoas à volta e depois dizer: conseguiste».

Enquanto se mantém por Macau, e a fazer aquilo de que gosta, Leonel Fernandes aproveita para alimentar outra paixão: viajar. «Tenho viajado muito e vou continuar a viajar porque o meu objetivo é conhecer o mundo inteiro. Vou visitando dois a três países por ano aqui pela Ásia. Considero-me um felizardo por ter a oportunidade de conhecer outros países, outras culturas. Não há como ir e ver».

E Portugal? «Tento ir uma vez por ano. Sinto falta porque é um país especial, e sinto falta da minha ilha, a Madeira. Mas também faz parte da nossa raiz, abrir horizontes e ir».