Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do Mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões para djmarques@tvi.pt ou rgouveia@tvi.pt

Tozé Mendes soltou as amarras que o ligavam ao Vitória de Guimarães há quase quinze anos e lançou-se em janeiro de 2021, pela primeira vez, como treinador principal em Malta ao comando do histórico Valletta FC. Depois de ter passado por todos os escalões do clube minhoto, com saídas esporádicas para a Arábia Saudita e China, sempre no campo da formação, o jovem treinador, de 42 anos, emancipou-se e está agora a viver uma aventura na «majestosa» La Valeta, na «lindíssima» ilha de Malta, em pleno Mediterrâneo.

Foram mais de catorze anos no Vitória. Começou nos infantis, foi campeão nacional de juvenis e ainda treinou a equipa B e os sub-23. Foi difícil cortar esse cordão umbilical com o Vitória?

- A minha relação com o Vitória não posso dizer que foi complicada, mas já tinha saído em 2011, estive uma época fora e regressei em 2012. Depois voltei a sair em janeiro de 2016, voltei a regressar em 2018 e agora voltei a sair em 2020. Foram catorze anos e meio ao serviço do Vitória. Trabalhei em todos os escalões, desde os infantis até à equipa B. Saí de lá na última época como treinador de sub-23. É sempre difícil cortar o cordão umbilical, sou natural de Guimarães e aquilo que nos une ao Vitória é um sentimento muito forte. Há uma forte ligação entre a cidade e o clube.

É um clube com uma cultura forte, não é?

- É um clube com uma cultura muito enraizada no que são os genes da cidade. Para as pessoas de Guimarães o clube é o Vitória, Guimarães é o nome da cidade. Há muita gente que continua a chamar ao clube Guimarães ou Vitória de Guimarães e nós, não é que levemos isso a mal, mas gostamos de lembrar às pessoas que o nome do clube é Vitória Sport Clube. A cultura do clube está tão enraizada na cidade que acabam ambas por se misturarem.

Entre essas entradas e saídas do Vitória, o Tozé já tinha tido experiências no estrangeiro. Já tinha passado pela formação na China e na Arábia Saudita…

- No primeiro ano que saí até foi para a Arábia Saudita em 2011/12, trabalhei um ano na formação do Al-Nassr. Depois em janeiro de 2016 fui para a China e fiz duas épocas. Em 2018 voltei ao Vitória, fiz um ano de sub-19 e outro nos sub-23. Em 2020 voltei à Arábia Saudita para treinar os juniores do Al-Wehda, coincidi lá com o mister Ivo Vieira, depois acabámos por sair quase ao mesmo tempo.

Essas experiências no estrangeiro deram-lhe bagagem para a sua emancipação como treinador para o futebol profissional?

- Todo este trajeto foi-me dando bagagem para alcançar aquilo que queria, que era entrar no futebol profissional e no futebol sénior. Acabei por alcançar em janeiro de 2021 aqui no Valletta FC.

Como surgiu essa oportunidade de ir treinar para Malta?

- Também fiquei com essa curiosidade e só soube depois de cá chegar. Encaixei no perfil de treinador que eles procuravam. Eles queriam um treinador português e jovem, não estavam muito preocupados se tivesse experiência no futebol sénior, até porque queriam rejuvenescer a equipa. Queriam apostar no talento local e isso passava por trabalhar com os jogadores mais jovens. O plantel quando cheguei era extremamente envelhecido, tinha muitos jogadores acima dos 31 e 32 anos. Tivemos de reformular grande parte do plantel. Agora vai ser um processo longo, mas as coisas no futebol mudam muito rapidamente. Ainda agora tivemos o caso do mister Nuno Espírito Santo que no mês de agosto ganhou o prémio de treinador do mês e na semana passada foi despedido. O mundo do futebol está demasiado rápido.

Quando recebeu o convite para treinar o Valletta FC qual foi a sua reação? Já conhecia o futebol maltês?

- Para ser sincero, não conhecia. Já tinha ouvido falar no Valletta FC porque é o maior clube maltês e o que tem mais nome a nível internacional. Agora está a passar por uma fase de reestruturação muito grande. Houve uma mudança na direção, mudança de treinador também.

É um clube grande, é um clube da capital, que condições é que encontrou para trabalhar?

- Encontrei uma situação sui generis. Nem todos os clubes têm os próprios campos, nós, por exemplo, treinamos num campo alugado que não pertence ao clube. Isto acontece com muitos clubes. O próprio campeonato é desenrolado em três estádios. Jogar em casa ou fora é apenas um proforma porque só existem três campos onde fazemos os nossos jogos. Posso jogar jornadas consecutivas no National Stadium. Já me aconteceu isso esta época, jogar duas jornadas consecutivas no mesmo estádio. A ilha tem esses três campos que são melhores dotados para o futebol sénior. Tem havido uma grande preocupação da federação maltesa em dotar os campos com condições para o desenvolvimento da Premier League aqui.

E os relvados aguentam-se com tantos jogos?

- Dois deles são de relva natural e outro é artificial. A maioria dos jogos são nos dois campos com relva natural e só no inverno é que se torna mais difícil, mas na última jornada antes da paragem também começamos a jogar no campo com relva artificial.

Em relação ao plantel. Tem vários estrangeiros, dois brasileiros, é um plantel jovem, mas também com jogadores experientes. Está satisfeito?

- Conseguimos equilibrar, promovemos alguns jogadores da formação do Valletta e alguns deles já fizeram a sua estreia no campeonato. Há outros que treinam diariamente connosco, depois jogam pela equipa de juniores. Temos procurado potencializar os jovens da nossa formação e as coisas até têm corrido de maneira boa. Os jogadores têm sido chamados às seleções, ainda há duas semanas dois deles foram chamados à seleção de sub-18. É o resultado de um processo de médio e longo prazo. Felizmente trabalho com uma administração que tem uma grande comunhão de ideias.

Há dois portugueses a jogar em Malta - Daniel Fernandes (Birkirkara) e Miguel Lima (Silema Wanderers) – há espaço para os jogadores portugueses. Já pensou em contratar portugueses?

- Já trouxemos o James Arthur que veio do Fafe do campeonato português. Há espaço para mais. O campeonato maltês poderá não ser um campeonato muito apelativo para o jogador português pelo que já me fui apercebendo, já fizemos algumas abordagens e tivemos sempre respostas negativas, mas é um campeonato que está a crescer. Este ano tomaram uma decisão importante que foi a redução do número de equipas. Este ano o campeonato só tem doze equipas e isso está a traduzir-se num equilíbrio maior do que aquele que encontrei na época passada quando cheguei a meio da época. O ano passado existia um fosso muito grande entre as melhores equipas e as do fundo da tabela e esta época isso não tem existido. São jogos muito mais equilibrados, são jogos em que a qualidade de jogo aumentou, o tempo útil de jogo também aumentou muito. O campeonato este ano está extremamente competitivo. Ao reduzirem as equipas também concentraram mais o talento. A ilha é muito pequena e com muitas equipas o talento fica disperso.

Também há muitos brasileiros a jogarem em Malta, é o quinto país da Europa que contrata mais brasileiros…

- Sim, aqui existem muitos brasileiros até nas equipas da II Divisão. Nós só temos dois, o Caio e o Lucas, mas arriscaria a dizer que todas as equipas têm brasileiros.

Chegou em janeiro, em março a época foi interrompida pela pandemia e depois renovou logo em abril. Foi um voto de confiança?

- O campeonato não terminou o ano passado. Malta foi a única federação que deu o campeonato como terminado devido aos casos de covid-19. A última jornada foi disputada a 7 de março, mas depois houve aqui um boom de covid. Para terem uma ideia, a ilha tem meio milhão de habitantes e num único dia, penso que a 10 de março, foram detetados mais de 500 casos no mesmo dia. Então o governo mandou parar as escolas, o futebol, parou o desporto em geral. Tivemos de ir todos para casa, voltar às sessões de treino online. Continuámos a treinar porque ainda estávamos com a expetativa que o campeonato iria terminar. Na altura faltavam sete jornadas para o final, mas a federação deu por terminado. A minha renovação foi depois decidida. Já tinha havido um contato prévio e com a paragem decidimos renovar. Da minha parte fiquei extremamente feliz pelo voto de confiança que a administração depositou em mim mesmo não alcançando um lugar para as pré-eliminatórias das competições europeias.

O Valletta é um dos clubes mais titulados de Malta. O objetivo para esta época passa pela conquista de títulos ou por uma qualificação para as provas europeias?

- Este ano o campeonato foi reformulado, são só doze clubes e o nosso primeiro objetivo é ficar no top-6. Depois existe uma segunda fase em que os seis primeiros vão lutar pelo título de campeão e pelo acesso às competições europeias e os últimos seis classificados vão lutar pela manutenção. Claro que nós, neste primeiro momento, com todo o cenário que temos para esta época, com uma administração nova, uma equipa completamente remodelada, o nosso principal objetivo é terminar no top-6 e, depois, perseguir os nossos objetivos.

Nesta altura está no quarto lugar. Teve ali uma sequência de jogos mais complicada, com três derrotas consecutivas.

- Curiosamente foi a seguir à paragem para as seleções. O selecionador, que é italiano, Devis Mangia, introduziu aqui uma normativa que obriga à paragem do campeonato uma semana antes dos restantes países. Como ele tem poucos jogadores que jogam fora de Malta, consegue juntar a equipa e tem mais uma semana de trabalho. A seleção de Malta tem vindo a ter um crescimento notável nos últimos tempos. Eles neste momento só têm dois jogadores que jogam fora de Malta, que é o Teddy Teuma, que joga na Bélgica (Union St. Gilloise), e o Zach Muscat que joga no Casa Pia, em Portugal. São os únicos que não estão na primeira semana, mas os restantes ganham ali uma semana que é muito importante num espaço de seleção. Depois dessa primeira paragem tivemos três derrotas e em todos esses jogos tivemos expulsões.

Uma dessas derrotas foi com o Floriana, que é o grande rival do Valletta. Foi mais difícil de digerir, tendo em conta que é o outro clube da capital?

- Foi complicado porque é o grande rival, é o grande dérbi de Malta. Foi um jogo em que tivemos uma entrada muito boa, vinte minutos de muito bom nível, mas depois inexplicavelmente a equipa começou a quebrar. Sofremos um primeiro golo que nos trouxe algum desequilíbrio emocional. Voltámos a entrar bem na segunda parte, mas depois tivemos uma expulsão. Mesmo com dez ainda conseguimos criar algumas situações de perigo, mas acabámos por sofrer o 2-0 e o 3-0 já na parte final do jogo. Foi o meu primeiro dérbi e não foi nada fácil de digerir.

Mas depois entrou numa sequência mais positiva, com duas vitórias e um empate em casa do atual líder, o Hibernians (1-1).

- Esse jogo com o Hibernians foi muito bom até para o que é a realidade em Malta. Foi um jogo disputado com qualidade, com as equipas a procurarem jogar. Foi um exemplo daquilo que se pode tornar o campeonato maltês. O campeonato está a crescer, o nível competitivo é muito mais equilibrado. É isso que a federação também pretende para a seleção. A seleção de Malta, ainda agora, bateu o recorde de pontos numa fase de qualificação para o Mundial.

E a nível de comunicação. A língua oficial é o maltês, uma espécie de italiano, mas também falam inglês, não é?

- Normalmente todos os malteses falam muito bem inglês e também dominam o italiano devido à proximidade que têm com a Sicília. O maltês é uma mistura de italiano, com inglês, com árabe, é uma grande mistura, mas no balneário falamos em inglês. Temos um italiano, temos bósnios, um albanês, dois brasileiros, um ganês, mas a comunicação é basicamente feita em inglês.

É a primeira vez que está em Malta, algum choque cultural? Alguma experiência fora do normal?

- Ao início fazia-nos confusão conduzir no lado direito. A primeira vez que pegámos no carro foi complicado conseguirmo-nos habituar a conduzir no lado contrário, nas entradas nos cruzamentos, fazer as rotundas ao contrário. Foi difícil, não tivemos nenhum sobressalto porque fomos muito responsáveis. Andávamos muito devagar, ouvimos muitas buzinadelas, houve ali alguns momentos em que tivemos mesmo de conduzir devagar. Depois aconteceu-me também o contrário. Na primeira vez que regressei a Portugal e quando peguei no carro. Quando dei conta, estava numa estrada secundária e estava a conduzir do lado contrário, em contramão. Mas a mudança de chip acabou por ser rápida.

La Valeta é uma cidade muito turística, com muitos monumentos e muita história. E o que nos pode contar sobre a capital de Malta?

- Malta é um país fantástico, a ilha é lindíssima, temos uma qualidade vida extraordinária. Hoje, por exemplo, 9 de novembro, fui para o treino com 23 graus. Embora estando nebulado, está uma temperatura a rondar os vinte graus. Para já não baixa disso, vai baixar depois porque quando cheguei cá em janeiro estava bastante mais frio. Em relação a La Valetta, é uma cidade que me faz lembrar Guimarães. É uma cidade histórica, o centro histórico é muito parecido com o de Guimarães. Têm uma cultura histórica lindíssima. A qualquer lado que a gente vá temos igrejas. A cidade de Mdina, que é uma antiga capital de Malta, fica numa colina toda rodeada por uma grande muralha. A própria cidade de La Valetta fica rodeada por mar e tem um porto natural que é uma coisa extraordinária. Eles também têm uma grande conotação religiosa, mas é uma cidade que me deixou completamente apaixonado. Quando se entra na cidade da parte de cima é uma coisa majestosa. É quase entrar num mundo à parte, aquelas ruas pequenas, as escadarias infindáveis, é lindíssimo. É uma cidade fenomenal.

E quanto à alimentação, é muito diferente de Portugal? Têm algum prato típico?

- O prato típico é o coelho. Por acaso já comi e é muito bom, embora seja muito diferente do que estamos habituados a comer em Portugal. O coelho é estufado, mas os condimentos deles são diferentes. Depois há outra zona da ilha em que comem muito carne de cavalo, também é um prato tradicional deles.

Começámos no Vitória e regressamos ao Vitória. Tem acompanhado o percurso de Pepa no Vitória?

- Tenho acompanhado, vejo sempre os jogos, só não vejo se tivermos jogo aqui à mesma hora, caso contrário estou sempre colado na televisão a acompanhar o Vitória.

O Vitória tem um plantel forte, estão atualmente no sétimo lugar, acha que podem chegar mais longe?

- Sim, até pela juventude da equipa, tem uma grande margem de progressão. Depois também tem jogadores mais experientes, como é o caso do Ricardo Quaresma, do André André, o próprio Rochinha que ainda agora completou 100 jogos pelo Vitória. Esta mescla com a nova geração que está a aparecer, com o André Almeida, o Hélder e o André Amaro que até foi utilizado no último jogo. Com esta mescla, o Vitória tem todas as condições para crescer. Agora toda a gente sabe que o Vitória é complicado. Quando as coisas estão bem, temos tudo, mas quando estão menos bem torna-se complicado trabalhar no clube. A nossa massa adepta tem um bocadinho de falta de paciência, mas isso também são os nossos genes de Vitória, é jogar para ganhar. Qualidade futebolística existe, o Vitória esta época tem uma margem de progressão, mas temos de ter paciência com aquilo que é a juventude do plantel. Estou convencido que vai acabar por atingir os objetivos para o resto da época.

Agora que chegou ao futebol profissional, um regresso a Portugal está no horizonte?

- Para ser sincero, no início da carreira tinha planos, queria estar ali, depois ali, mas agora acontece tudo tão rápido que nem dá tempo. A minha vinda para Malta, por exemplo, foi uma loucura. Estávamos na Arábia saudita, surgiu esta oportunidade e, de um dia para o outro, a minha vida mudou totalmente. Regressei à Europa e estou muito mais perto de casa. Neste momento, em relação ao futuro, não sei. Como disse o Jorge Jesus há pouco tempo, um treinador tem sempre a mala feita à porta. Quanto ao regresso a Portugal, não escondo que já começo a apresentar algum desgaste, principalmente pela minha filha. Ela tem cinco anos e só nos últimos dois é que estive em Portugal. Isso começa a pesar.

Não está com a família em Malta?

- Não, já estiveram aqui em Malta, mas de férias. O futebol dá-nos muitas coisas, mas também nos tira muitas coisas. Existe aquela frase do mister Abel Ferreira que disse que hoje sou melhor treinador, mas também sou pior pai, pior marido e por aí fora. Às vezes temos de fazer essa reflexão, se vale a pena fazer a minha família passar por todo este sacrifício, com a minha filha a crescer sem a presença diária do pai. Mas para já o foco está no presente e o futuro será sempre bem ponderado.

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