Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões: djmarques@mediacapital.pt ou rgouveia@mediacapital.pt

Ângelo Meneses tinha acabado de ajudar a equipa da terra a subir ao principal escalão do futebol português 25 anos depois. Com mais um ano de contrato com o Famalicão, o defesa-central tinha nos planos manter-se no plantel e estrear-se na Liga numa época especial para o emblema do distrito de Braga.

Só que a empresa Onsoccer International fez-lhe chegar uma proposta que no futebol pode ser definida como «exótica»: Ararat-Arménia.

«Fiquei de pé atrás. Nunca tinha ouvido falar do campeonato da Arménia e confesso que nem sabia ao certo onde ficava o país: só que pertencia à Europa, pelo facto de jogar competições europeias de seleções», conta o defesa de 26 anos em conversa com o Maisfutebol a partir de Chipre, onde está em estágio com a equipa.

Se fosse apenas pelo salário proposto, Ângelo nem teria hesitado, mas um olhar sobre o mapa deixou-o ainda com mais dúvidas: um território de 30 mil quilómetros quadrados situado em pleno Cáucaso, sem mar e entrincheirado por Geórgia, Irão, Turquia e Azerbaijão, estes dois últimos países com os quais a Arménia mantém relações tensas desde há décadas.

«Comecei a mexer-me um bocadinho para saber mais sobre o clube e percebi que na equipa estava lá o Alphonse, jogador que tinha passado pelo Feirense. Liguei-lhe, fiz-lhe uma série de perguntas e ele falou-me super-bem do clube e disse-me que a Arménia não era nada daquilo que as pessoas pensavam e que o país era muito seguro. Também falei com o Ghazaryan, que passou pelo Marítimo e pelo Chaves, e ele também me falou bem do clube e da cidade.»

Ângelo, que ainda tinha um ano de contrato com o Famalicão, passou rapidamente das dúvidas às certezas. «Depois desses feedbacks, decidi avançar logo.»

«No meu primeiro ano de sénior, o Famalicão tinha acabado de subir dos distritais. Pagava de vez em quando. Voltei três ou quatro anos depois e houve uma evolução enorme. Não tenho dúvidas de que poderá chegar nos próximos anos às competições europeias», aponta Ângelo Meneses, que na formação passou pelos infantis e pelos iniciados do FC Porto

Da fundação ao título em tempo recorde

O Ararat-Arménia foi fundado em 2017 com o dinheiro de Samvel Karapetyan, um homem de negócios arménio com uma fortuna avaliada pela Forbes em 3,7 mil milhões de euros. O CEO do clube é Poghos Galystan, um antigo jogador que chegou a ser internacional pela Arménia poucos anos após a dissolução da União Soviética, em 1991.

Depois de ter conseguido subir ao principal escalão logo no primeiro ano, a equipa sediada em Erevan (capital do país) sagrou-se campeã nacional na época de estreia na primeira divisão. «Houve uma aposta imediata forte. Este é um clube que tem melhores condições financeiras do que os outros clubes da Arménia. O objetivo passa por dominar o futebol nacional e chegar a uma fase de grupos da Liga Europa, o que nunca aconteceu na história do país», explica Ângelo Meneses.

Um desses objetivos ficou perto de ser atingido já esta época. O Ararat-Arménia superou duas pré-eliminatórias na Liga Europa e só caiu na derradeira: no desempate por penáltis fora de casa diante dos luxemburgueses do Dudelange.

Apesar de a massa adepta do clube novato ser ainda residual, a eliminatória foi vivida no montanhoso país do Cáucaso como um acontecimento nacional. «O nosso jogo em casa foi transferido para o estádio onde joga a seleção e as bancadas estavam lotadas. Depois, quando fomos jogar ao Luxemburgo, a cidade estava eufórica e até foram espalhados ecrãs gigantes», recorda.

Competitividade ao nível de uma segunda liga portuguesa

O Ararat-Arménia treina e joga numa academia pertencente à Federação de Futebol da Arménia, a alguns quilómetros do centro da cidade. Ao todo, o complexo, situado a alguns quilómetros do centro de Erevan, tem mais de uma dezena de campos relvados, piscina, ginásio e hotel.

O campo principal serve de casa a duas equipas do campeonato: à de Ângelo Meneses e ao Gandzasar, um clube proveniente de uma cidade situada junto à fronteira com o Azerbaijão, mas que nos últimos anos tem jogado na capital.

Dos dez emblemas da primeira divisão, só três não estão na capital e o equilíbrio tem sido nota dominante esta temporada. À 15.ª jornada há apenas um ponto a separar o primeiro do quarto classificado: o Ararat-Arménia é segundo a par do Alashkert e a um ponto do líder Lori. O Pyunik, a equipa mais titulada e da qual saíram o ex-Marítimo e Desp. Chaves Ghazaryan e o médio Henrikk Mkitaryan, atualmente na Roma de Paulo Fonseca por empréstimo do Arsenal, está no sétimo lugar, que não dá acesso à fase de apuramento do campeão. Nesta altura, a competição está parada.

Adeptos a assistirem através de um ecrã gigante ao duelo entre o Ararat-Arménia e o Dudelange no Luxemburgo. Futebol arménio esteve quase a fazer história

Fica assim mais de dois meses: congelada como as temperaturas negativas constantes que se registam nesta altura do ano e que ajudam a cobrir de branco as montanhas de Ararate, visíveis no horizonte do apartamento de Ângelo.

«Este campeonato é uma espécie de segunda liga portuguesa. É muito competitivo. As equipas grandes perdem pontos frequentemente e as pequenas fecham-se muito, sobretudo contra nós, porque reconhecem-nos como a mais forte», analisou Ângelo, que conversou com o Maisfutebol poucos dias antes do clube anunciar um reforço sonante: Yoan Gouffran, ex-Bordéus e Newcastle, e internacional por França nos escalões de formação para o ataque à fase decisiva da temporada.

Vida em Erevan longe do caos do centro da cidade

Cinco minutos é o tempo que Ângelo Meneses demora a pé entre casa e a academia. Quando chegou a Erevan deram-lhe a escolher entre viver no centro da cidade ou num bloco de apartamentos junto ao centro de treinos. Optou pela segunda opção: por ser mais prática, mas talvez porque o trânsito nas mais movimentadas artérias da capital é caótico.

«Nos primeiros tempos ainda ponderei ficar com um carro, mas umas semanas depois tirei essa ideia da cabeça. É uma confusão danada na estrada. Aqui não há respeito: quem apitar mais é quem leva a melhor. É mil vezes pior do que em Portugal, não há comparação possível. E toda a gente anda de carro. Uma vez falei com um dos poucos taxistas que se encontram aqui que falam inglês e ele disse-me que Erevan tem um milhão e meio de habitantes e perto de 2 milhões de carros [risos].»

Um ponto negativo entre muitos positivos que encurtaram um processo de adaptação sempre incerto para quem há pouco mais de seis meses tomou a decisão de emigrar pela primeira vez na vida.

Apesar de reconhecer que há muitas diferenças entre a Arménia e Portugal, o defesa de 26 anos diz que a experiência e a integração têm superado as expetativas. Fora do campo, aproveita para conhecer os recantos de uma cidade localizada a quase mil metros de altitude e que acredita-se ser das mais antigas da história da humanidade. «Aconselho a Praça da República, que fica no coração de Erevan, tem um edifício muito grande e uma fonte enorme que liga ao som da música. E há também um sítio que é a cascata: uma escadaria enorme, onde são tiradas grande parte das fotografias dos turistas», nota.

Vista da Praça da República, em Erevan, durante umas eleições legislativas

Mas é impossível render-se a tudo: a gastronomia é exemplo disso mesmo. Ângelo acreditava que ia dar-se bem com os hábitos alimentares dos arménios, algo que não aconteceu. «Não se alimentam muito bem. Comem essencialmente um tipo de pão [lavash, pão de folha] e tapas. A nossa comida ganha-lhes de longe [risos], e nesse aspeto não me posso queixar. Aqui temos o Carrefour, onde compramos tudo o que há em Portugal, e a minha namorada, que está comigo cá, cozinha muito bem.»

Ambição de dar o salto, mas regresso a Portugal pode esperar

No Ararat-Arménia há jogadores provenientes de mais de uma dezena de países. Em maioria estão os arménios e os russos, povos com temperamentos idênticos. «São frios, observadores e desconfiados. Observam-nos mesmo muito. Num primeiro impacto, quase que ficas com a sensação de que te querem bater [risos]. Inicialmente não dão muita abertura aos colegas estrangeiros, mas depois de nos conhecerem tornam-se mais acessíveis», diz.

As saudades de casa – de um «bom dia» em português e das brincadeiras mais descomplexadas no balneário – existem, mas Ângelo não pensa em voltar para Portugal a curto/médio prazo. Admite que a Arménia é uma ponte para um salto para campeonatos melhores, mas sublinha que a nível financeiro dá-lhe conforto e que não ficará desiludido se não der um salto imediato para um campeonato mais competitivo num dos países vizinhos.

«Gostava de conseguir abrir portas para a Rússia, a Ucrânia ou a Turquia. Há muitos jogadores que saem daqui para esses países, sobretudo para a Rússia, com quem há uma ligação forte. Quero que surja uma oportunidade, mas se não acontecer prefiro ficar cá a ir para Portugal», conclui.

Artigo original: 03-02-2020, 23h54