Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões: djmarques@mediacapital.pt ou rgouveia@mediacapital.pt

Manuel Matias, antigo campeão pelo FC Porto de Bobby Robson e José Mourinho, está a fazer as malas para rumar à Nigéria onde vai trabalhar numa das mais conceituadas academias de formação do mundo, o Garden City Panthers, para uma nova etapa numa carreira incrível. Depois de um percurso de respeito como jogador, o antigo central já soma vinte anos como treinador, tendo percorrido o país de lés-a-lés, do Algarve a Trás-os-Montes, passando pelos Açores e Madeira. Também já trabalhou na Arábia Saudita, Irão e Iraque e, agora, prepara-se para estender o seu infindável currículo ao continente africano.

Formado no Salgueiros, onde se formou como um central duro, à moda antiga, Matias teve uma carreira sólida como jogador, passando pelo Rio Ave, União da Madeira, V. Guimarães, onde chegou a internacional, Leça e FC Porto, onde foi campeão na temporada de 1995/96.

Pendurou as botas em 1997 e, em 2001 começou uma carreira ímpar como treinador, percorrendo todo o país, quase sempre ao serviço de clubes do Campeonato Nacional de Séniores.

Aos 55 anos, Matias acumula quarenta anos de futebol no corpo e prepara-se para um dos desafios mais empolgantes da sua preenchida vida.

Boa tarde Matias, já está na Nigéria?

- Ainda não amigo, vou para lá no início de fevereiro.

Como surgiu esta oportunidade?

- Surgiu através de contatos que fui fazendo, já estive fora do país, estive no Médio Oriente, em três países diferentes, surgiu agora esta oportunidade em África e estou obviamente muito feliz e satisfeito. Os portugueses estão muito bem vistos além-fronteiras. Este contato surgiu do meu historial. Pelo que sei, tinham o currículo de treinadores de vários países, de Portugal, Espanha, Irlanda. Fui escolhido e fico muito orgulhoso.

É a primeira vez que vai trabalhar no continente africano. Já tinha estado em África?

- Nunca lá estive.

Já esteve na Arábia Saudita, Irão e Iraque, mas África é um mundo novo. Com que expetativas é que vai para esta nova aventura?

- Vou com a mesma expetativa com que fui para o Médio Oriente. Vou para transmitir todos os meus conhecimentos, tudo o que o desporto me ensinou. Sei que vou encontrar jovens entre os 19 e os 23 anos que têm em mente o sonho de serem profissionais de futebol. Vou ajudá-los na formação individual e coletiva, prepará-los para um mundo diferente. Vou dar-lhes o que precisam para poderem serem alguém nesta vida, como já fiz no mundo árabe. Quero que sintam que têm ali um amigo, um pai, alguém que vai lá estar quando precisarem.

É uma academia que trabalha essencialmente com a formação. O objetivo é procurar talentos e depois prepará-los para jogarem na Europa?

- Sem dúvida. É uma academia de topo que tem relações com os clubes de topo do futebol europeu. Estamos a falar de miúdos acima da média que precisam de ser lapidados num pormenor ou noutro. Funciona quase como uma academia-satélite da seleção dos sub-23 da Nigéria. Vamos participar em torneios internacionais com outras seleções em vários países, na Dinamarca, Espanha, Dubai, Qatar. E, quando não houver competição, vamos prepará-los na academia para assimilarem tudo o que precisam para jogarem ao mais alto nível. A academia é uma base de preparação para a seleção.

A academia fica na capital, em Abuja. Já sabe que condições é que vai encontrar?

- Tem condições de topo. Tem um estádio magnífico, onde joga a seleção principal da Nigéria e a academia onde vou treinar é ao nível das melhores do mundo. Eles esperam que eu e o meu adjunto possamos ajudar no crescimento dos miúdos não só como homens, mas também desportivamente. Vamos criar um grupo com um ambiente familiar onde a alegria e a boa-disposição vão estar presentes.

Falou num adjunto, vai viajar com Pedro Taborda [antigo diretor desportivo do Leixões], mais alguém?

- Vamos só os dois.

Nunca esteve em África, já sentiu curiosidade em conhecer Abuja, tem noção do que vai encontrar na Nigéria?

- Já andei no Google a coscuvilhar alguns pormenores, já andei a ver alguns pontos da Nigéria onde posso passear e também andei a ver o que é que eu e o Pedro, nas horas vagas, podemos ir ver para ficar a conhecer melhor um pouco da cultura e da história da Nigéria. Acredito que vai ser muito fértil em termos culturais. Toda a gente diz que África é apaixonante e tenho a certeza que me vou apaixonar. Vou tentar juntar tudo aquilo que é representativo de África e tentar ajudar naquilo que a Nigéria já tem. Eles já foram campeões de África, da CAN, três vezes, isso demonstra a qualidade que existe. Eles querem alguém que ajude a desenvolver esses talentos em termos coletivos e humanos.

Já tinha estado no estrangeiro, há dez anos, no Al Raed, na Arábia Saudita. Que guarda dessa primeira experiência fora de Portugal?

- Foi fantástico, conhecer uma nova cultura, adaptar-me à cultura e aos costumes deles. Uma coisa que guardei para mim, é a admiração e o respeito que eles têm pelos treinadores portugueses. Fui recebido de forma fantástica, sempre preocupados com a minha pessoa, o meu bem-estar, mas acima de tudo um grande respeito e uma grande preocupação para que não me faltasse nada. Fui contratado para ensinar, foi assim na Arábia, vai ser assim em África. É uma mais-valia que nós, os portugueses, temos. Facilmente adaptamo-nos e de corpo e alma demonstramos que vamos ajudar.

Nessa mesma época em que foi para a Arábia Saudita, acabou a treinar no Irão.

- Acabei por ficar mais tempo no Irão. Fui campeão com o Sanat Naft. Na minha carreira tenho duas subidas, uma em Portugal [Valenciano] e outra no estrangeiro [Sanat Naft].

Esteve no Irão em 2010 e acabou por voltar dois anos depois em 2012.

- Gostaram do meu trabalho. O clube, entretanto, desceu de divisão e chamaram-me para voltar a subir. São as tais raízes que deixamos. Fui chamado novamente pela admiração e pelo respeito que lá deixei. Foi uma passagem fantástica pelo Irão.

Pelo meio ainda esteve no Iraque, no Al-Karkh, em 2012/13. Foi uma altura complicada em Bagdad, não?

- Quando cheguei o ambiente era ainda de guerra, estavam, aos poucos, a tentarem levantar-se, havia muita destruição, mas posso dizer que nunca tive receio de nada. Obviamente que andava com alguma preocupação, mas andava sempre com seguranças, era um cenário de guerra. Tinha receio que em algum momento pudesse acontecer alguma coisa. Era um cenário de medo, mas não foi isso que me limitou a desenvolver o meu trabalho. Senti-me sempre protegido, tinha seguranças, estava num hotel muito bem protegido e nunca me faltou nada. Tenho de dar valor às pessoas e ao clube que me preservaram de alguma coisa que pudesse correr mal.

Em Portugal, já treinou quinze clubes diferentes, quase todos do Campeonato de Portugal, do Algarve a Trás-os Montes, passando pelas ilhas. Foi campeão com o Valenciano, foi o projeto que lhe encheu mais as medidas?

- É difícil dizer o que mais me marcou, até porque em Portugal projetos quase não existem. Nos projetos onde passei escolhiam o treinador e o homem Matias para que os clubes pudessem continuar no mesmo patamar, nunca aspirando a outros voos, até porque na parte financeira não tinham condições para que pudesse lutar por outros objetivos. Em todos os clubes que treinei em Portugal foi sempre para encontrar estabilidade. Nunca tive um projeto para subir de patamar. A maior parte dos clubes do CNS, como se sabe, passam por grandes dificuldades.

A verdade é que já percorreu o país todo como treinador. Esteve no Algarve (Almancilense), Alentejo (O Elvas), Madeira (Santana e Portosantense), Açores (Madalena e Marítimo da Graciosa), no interior (Valecambrense, Académico Viseu, Valenciano e Cinfães) e no Norte (Valonguense, Nogueirense, Perafita, Canelas e GD Mirandês). É a melhor forma de se conhecer o futebol português?

- Percorri o meu país de lés-a-lés amigo. Encontrei dificuldades quase em todos, de uma forma ou de outra, as dificuldades estavam presentes. O que procurava fazer, juntamente com os presidentes e com a federação, era minimizar esses problemas para que os clubes pudessem continuar a subsistir e a competir. Tenho obviamente muitas histórias, levei a minha caminhada aonde as pessoas acreditavam em mim, não só como homem, mas também como treinador.

Pode-se dizer que é um profundo conhecedor da realidade do futebol português, com toda essa experiência acumulada?

- Posso dizer que tenho essa experiência, especialmente neste escalão (CNS) onde são mais patentes todas as dificuldades em todas as vertentes, onde tem de se demonstrar, além de treinador, o valor como homem. Mais importante do que os resultados, muitas vezes, está a questão humana. Isso vai ficando para trás, mas é a vida de treinador, temos de encarar o dia-a-dia. Mas sem um suporte financeiro é muito difícil trabalhar outras coisas em Portugal.

Mais recentemente, em 2017/18, passou pelo Canelas numa altura complicada. Pegou no clube pouco depois da polémica agressão de Marco Gonçalves a um árbitro. Foi difícil liderar uma equipa que era permanentemente conotada com a violência em campo?

- Foi um momento agitado e conturbado, mas procurámos ultrapassar essa situação, hoje o clube está estável e é um clube apetecível, não só para treinadores, mas também para jogadores.

Mas fez uma época com um Canelas muito mediático, a ser analisado à lupa a cada jogo.

- A imagem que era passada não era precisa. Há fases da nossa vida em que a nossa maneira de ser é mais agitada, mais agressiva, mas com compreensão, falando com as pessoas, tudo se consegue encaixar. Foi isso que fiz, fui falando com as pessoas, demonstrando que aquele não era o caminho correto. A instituição era falada no mau sentido, tínhamos de ser nós a demonstrar que essa fase estava ultrapassada e que o Canelas podia ser um clube apetecível.

Ficou surpreendido com o percurso do Canelas esta época na Taça de Portugal [chegou aos quartos de final]?

- Não fiquei nada surpreendido. As pessoas já olham para o Canelas de outra forma, começam a sentir a mística das pessoas que estão à frente do clube, começam a identificar com essa mística, sem violência, sem atitudes incorretas, olhando apenas para o lado desportivo. Está enraizado naquela casa o querer ganhar e querer ganhar. Não pode ser ganhar a todo o custo, é preciso saber ganhar, foi essa a mensagem que passei enquanto lá estive. Fico feliz por o Canelas ter feito o seu caminho e que as pessoas comecem agora a olhar para o Canelas de outra forma.

O Matias já tem vinte anos como treinador e já tinha uma carreira de outros vinte anos como jogador. Tudo somado, são quarenta anos ligado ao futebol.

- É uma vida. É quase um filho casado e a dar-me netos. É uma felicidade enorme. O tempo passa por nós e às vezes é bom lembrar.

Como jogador, fez a formação no Salgueiros, esteve em destaque no Vitória de Guimarães e foi campeão no FC Porto.

- E cheguei a ser internacional. É um passado, está lá. Tenho orgulho no meu passado. Lutei por isto, num momento diferente do futebol onde nem tudo era fértil, não havia tantas ferramentas como hoje. Hoje facilmente existe uma visão a nível mundial, é mais fácil conseguir chegar a outros patamares. Hoje em dia as portas abrem-se muito mais cedo, consegue melhorar a sua vida profissional financeiramente. Dentro do que era possível no meu tempo, sinto-me feliz com o que consegui. Superei muitas dificuldades.

No FC Porto foi campeão em 1995/96 com o Bobby Robson.

- Exatamente quando o Mourinho era o tradutor do mister.

O Matias não fez muito jogos, estava tapado pelo Aloísio e Jorge Costa?

- Quando o Jorge Costa sai é quando jogo mais com o Aloísio. Quando cheguei do V. Guimarães, estava o Zé Carlos a ir para o Brasil [Vasco da Gama], foi nessa transição que joguei mais. O Bobby Robson tinha vindo do Sporting para o FC Porto e estava a fazer uma equipa à sua imagem.

Falou há pouco da boa imagem que os treinadores portugueses têm no estrangeiro. José Mourinho contribuiu muito para isso. Como foi esse primeiro contato com Mourinho no FC Porto?

- Mourinho abriu muitas portas aos treinadores portugueses por tudo o que tem feito. Hoje olham para nós de outra forma, respeitam-nos de outra forma, dão-nos um valor que muitas vezes aqui, em Portugal, ignoram. Já na altura dava para sentir que o Mourinho era acima da média em termos da sua visão.

Desse plantel do FC Porto, de 1995/96, muitos jogadores acabaram por dar treinadores: Jorge Costa, João Manuel Pinto, Rui Jorge, Rui Barros, Domingos Paciência, Folha e o próprio Matias…

- É verdade, foi uma grande fornada. Sentia-se que era um grupo especial.

Tem uma fotografia no Facebook dessa altura em que aparece com o Mourinho, Drulovic, Edmilson…e o Tim do Xutos e Pontapés. Em que contexto foi tirada essa foto?

- Era um grupo bem-disposto, que gostava de música, um plantel que era apaixonado por esse grupo. Os Xutos também foram marcantes na nossa juventude. Essa fotografia fazia parte do nosso crescimento. Eles faziam parte dessa geração que estava a crescer e ouvia Xutos, foi nesse contexto.

O Matias na altura era facilmente identificado pelo bigode, era a sua imagem de marca. Ainda mantém? É para continuar?

- Mantenho. É uma marca bem vincada, já com algumas brancas, mas já não sai. O Matias sem bigode, não é o Matias. As pessoas nem me conhecem sem o bigode.

Quarenta anos no futebol, vai agora partir para a Nigéria, que expetativas é que guarda para o futuro?

- O futuro, como costumo dizer, é o dia-a-dia. Agora vou para a Nigéria à procura de ser feliz e de fazer as pessoas felizes. Depois vamos ver o que Deus tem para dar. Agora Deus abriu-me as portas de África, vou para lá dar a conhecer o que sou, transmitir o que aprendi, depois logo se verá. Agora vou ajudar quem necessita de mim e quem acredita em mim.

A finalizar, tem um filho de 16 anos, o Gonçalo, que estava na formação do Boavista. Continua a jogar, vai seguir as pisadas do pai?

- Continua, é o Matias Júnior, joga como lateral direito. Esteve dez anos no Boavista, chegou a ser capitão, mas entendeu que queria sair e mudar de ares. Agora está no Salgueiros, um clube que foi marcante para o pai. Está nos Sub-17, está feliz e, se ele está feliz, eu estou muito mais feliz.

A carreira de Matias como jogador

Salgueiros: toda a formação, depois de 1982/83 a 1988/89

Rio Ave: 1989/90

União Madeira: 1990/91

V. Guimarães: 1991/92 a 1994/95

Leça: 1995/96

FC Porto: 1995/96

V. Setúbal: 1996/97

Gil Vicente: 1996/97

A carreira de Matias como treinador

Valonguense: 2001/02

Valenciano: 2002 a 2004

UD Santana: 2004/05

Portosantense: 2004/05

O Elvas: 2005/06

Madalena: 2005 a 2007

Nogueirense: 2007/08

Marítimo Graciosa: 2007/08

Valecambrense: 2008/09

Al Raed (Arábia Saudita): 2009/10

Sanat Naft (Irão): 2009/10

Académico Viseu: 2010/11

Shahrdari Bandar (Irão): 2010/11

Madalena: 2022/12

Sanat Naft (Irão): 2012/13

Al-Karkh (Iraque): 2013/14

Perafita: 2013 a 2015

Almancilense: 2016/17

Canelas: 2017/18

CD Cinfães: 2018/19

Mirandês: 2018/19

Garden City Panthers (Nigéria): 2020

Artigo original: 20-02; 23h50