Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do Mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões para djmarques@tvi.pt ou rgouveia@tvi.pt
Os feitos do Sheriff na Liga dos Campeões colocaram a Moldávia no mapa do futebol europeu. Nunca como agora se escreveu tanto sobre o futebol deste país periférico do velho continente que surge nos últimos lugares dos mais diversos rankings: como no de pobreza na Europa e no de seleções da FIFA, onde surge no 181.º posto.
Este clube da Transnístria – região separatista pró-russa – venceu 19 (!) dos 21 campeonatos jogados desde a viragem do século. Por isso, Sheriff campeão da Moldávia deixou de ser notícia, mas não pode deixar de o ser o facto de o atual líder da competição ter um português no plantel: Mickael Meira, guarda-redes do Petrocub que fala ao Maisfutebol horas depois de um jogo da Taça e a escassos dias de um duelo com o Sheriff para a Liga.
Aos 27 anos, Mickael está no quarto clube além-fronteiras desde que, já sénior, deixou o Sporting após cinco anos de leão dos 15 aos 20. AEL Limassol (Chipre), Zimbru (Moldávia), Lori (Arménia) e, finalmente, o Petrocub, equipa à qual chegou no início de 2021 e que tem como objetivo roubar o título ao milionário da pobre Moldávia que há semanas abanou o mundo após vencer o Real Madrid no Bernabéu.
Maisfutebol – Olá, Mickael! Vi que jogaram hoje para a Taça da Moldávia [oitavos de final contra o Olimp, uma equipa do segundo escalão] e que quase que empatavam…
Mickael Meira – [risos] Não, não! [n.d.r.: o Petrocub por 6-0]. Aqui, só na primeira liga é que praticamente se joga futebol a sério. A segunda liga é amadora.
MF – Participou no jogo?
MM – Não. Foi para a taça contra um clube da segunda liga. Tenho feito praticamente os jogos todos e agora fiquei de fora, também para descansar um bocado.
MF – Até agora, a época não está a correr nada mal ao Petrocub, verdade?
MM – Está a correr super-bem. Em 15 jogos temos 12 vitórias, um empate e duas derrotas. Só perdemos pontos com os concorrentes diretos, que são o Milsami e o Sheriff. Estamos em primeiro e a jogar bom futebol.
MF – Esta liderança do campeonato está a ir ao encontro dos objetivos traçados no início da época ou acima disso?
MM – O Petrocub tenta lutar com o Sheriff pelo primeiro lugar, mas este ano a luta está a ser mais séria. Mas nos outros anos estava um pouco mais longe. Agora está taco a taco, porque o Sheriff também já perdeu pontos no campeonato: com o Balti e o Zimbru, enquanto nós só perdemos com os candidatos diretos. Vai ser uma luta interessante e penso que até ao fim para ver se somos campeões e se conseguimos chegar à fase de apuramento para a Liga dos Campeões.
MF – Portanto, o Petrocub está apostado em quebrar o domínio do Sheriff, que venceu 19 em 21 campeonatos neste século.
MM – Claramente. A nossa equipa é baseada em moldavos. Mais de metade são jogadores da seleção da Moldávia, que são misturados com estrangeiros para posições que não conseguem colmatar. Temos um jogo forte e estamos na luta. Somos praticamente só nós que lutamos com o Sheriff pelo título. Também o Milsami, mas nós estamos mais perto.
MF – Essa filosofia, de apostar mais em moldavos, é diferente da do Sheriff, que tem muitos jogadores estrangeiros e outros argumentos financeiros.
MM – Apesar de o nosso clube não pagar mal! Mas o que se vê no Sheriff é de outro nível. Chegamos à academia do Sheriff e eles têm três estádios: um coberto, outro onde jogam a Liga dos Campeões e outro que usam só para o campeonato. É outro mundo. Comparando, por exemplo, com a academia do Sporting, que eu conheço, podemos dizer que é semelhante ou até melhor. E sobre os jogadores estrangeiros, aproveitam alguns que passaram pela Liga portuguesa e por outras mais fortes, mas que não deram cartas. E eles têm conseguido mostrar-se, como se tem visto na Liga dos Campeões.
MF – E como se olha de fora, na Moldávia, para o que o Sheriff tem alcançado na Liga dos Campeões? Pergunto isto porque se trata de uma equipa de uma região que se autoproclamou independente da Moldávia...
MM – Na Moldávia, as pessoas torcem pelo Sheriff. Até porque é a primeira vez que um clube da Moldávia está na Liga dos Campeões. Está toda a gente a adorar e a desejar-lhes a maior das sortes. Claro que está tudo surpreendido, incluindo eu que que estou aqui há um ano. Quem é que esperava que eles fossem ganhar ao Real Madrid no Bernabéu? Mas conheço a qualidade do Sheriff, que é uma equipa fortíssima.
MF – E já foi jogar a Tiraspol, capital da Transnístria e cidade onde joga o Sheriff?
MM – Sim.
MF – E como é entrar num território separatista?
MM – Têm uma fronteira onde temos de mostrar a identificação. É como se fossemos, por exemplo, daqui para a Roménia, porque não fazemos parte da União Europeia. No fundo, é como se fossemos jogar a outro país.
MF – Dizia-nos há pouco que o Petrocub não pagava mal…
MM – Não, mas claro que não podemos comparar o Petrocub com o Sheriff. Agora, comparando com alguns clubes da Liga portuguesa, paga bastante bem. Mas o Sheriff está noutro patamar. Há uns tempos li uma entrevista do Joãozinho, que está agora no Estoril, em que ele disse que o Sheriff foi um dos clubes ou talvez o clube que mais lhe pagou. E ele já esteve em clubes muito considerados!
MF – Petro-cub. Tem alguma coisa a ver com petróleo?
MM – Os investidores estão mais inseridos na indústria dos camiões. Transportes. O atual presidente, que é filho do anterior presidente, é uma pessoa bastante acessível, que sabe tomar conta do clube e mostra muito interessante. As expectativas têm subido de ano para ano e neste ano fomos à Conference League e passámos pela primeira vez uma fase de uma competição europeia. Depois, fomos eliminados pelo Sivasspor [da Turquia], mas demos muita luta. Perdemos 1-0 em casa e 1-0 fora com um golo em fora de jogo aos 70 minutos. Podia ter dado para o nosso lado, porque jogámos bem e fomos superiores durante muitos momentos.
MF – Fale-nos das condições de trabalho do Petrocub.
MM – Tem um estádio normal com capacidade para 5 mil pessoas e dois campos de relva natural. As infraestruturas não são comparáveis às que existem em Portugal, mas são normais. Paga-se bem e temos direito a apartamento.
MF – Onde vive?
MM – Em Chisinau: na capital. O Petrocub fica a 30 minutos, numa pequena cidade chamada Hincesti.
MF – O que é que nos pode dizer da cidade, das pessoas…?
MM – Como se sabe, na Europa de leste as pessoas são mais fechadas, mais frias. Quando nos passam a conhecer, tornam-se mais abertas, mas nos primeiros tempos, em algumas situações perguntava-me o que é que se estava a passar, porque as pessoas são realmente frias.
MF – Por exemplo?
MM – Aconteceu-me ir ao supermercado e a senhora da caixa atirar os produtos à bruta, como se eu tivesse feito alguma coisa. É a tal frieza das pessoas, que também são muito mal pagas aqui e percebe-se que não passem bem. Estamos a falar de 200 ou 300 euros por mês. Não é fácil e depois descarregam. A Moldávia é um país pobre.
MF – Vê-se muita pobreza nas ruas?
MM – Não. Mas os edifícios são muito antigos, embora por dentro muitos apartamentos estejam restaurados. Mas não se veem pessoas a pedir nas ruas. Mas é normal que se tenha essa ideia da Moldávia. Eu também tinha antes de vir para cá.
MF – Antes de ir pela primeira vez para a Moldávia [já tinha jogado no Zimbru em 2017/18 e 2018/19] procurou informar-se sobre o país e sobre o clube que lhe tinha feito o convite?
MM – Claro. É importante se conhecermos outros jogadores que lá tenham estado e fazer perguntas, que foi o que fiz: antes de ir para o Zimbru, estive na Liga portuguesa [Boavista]. Saí de um patamar altíssimo para a Moldávia. Mas ofereceram-me boas condições financeiras e vi que as pessoas eram sérias. Agora, quando voltei para a Moldávia, fi-lo sabendo que o Petrocub é um clube que não tem dificuldades financeiras e que tem condições normais.
MF – E fora do futebol?
MM – Para ser sincero, eu não sou muito de sair, mas já visitei algumas zonas. Vinhas, por exemplo. O vinho aqui é muito bom.
MF – Ao nível do português?
MM – Pode-se dizer que sim. Têm vinho bastante bom.
MF – E que balanço faz até agora destas suas duas passagens pela Moldávia?
MM – No Zimbru, vim para um projeto de ida à Liga Europa. Estava a correr muito bem até a federação tirar 10 pontos à equipa. E, aí, o investimento foi cortado e houve complicações.
MF – Porque é que foram retirados os pontos?
MM – Porque foi utilizado um jogador que tinha cinco amarelos. Aí, foi comunicado aos jogadores que o investimento ia parar e que o melhor era encontrarmos outra solução. Praticamente todos os estrangeiros foram embora. Mas relativamente ao Petrocub faço um balanço muito positivo. Foi a primeira vez em que joguei competições europeias. Como disse, estamos em primeiro no campeonato e está tudo a correr lindamente.
MF – E o futebol moldavo?
MM – Está a evoluir bastante ano após ano. Neste ano, todas as equipas que foram à Conference League conseguiram passar a primeira fase. Há três ou quatro clubes que fazem investimentos acima da média. O Sheriff, que está num patamar acima, e, depois, o Petrocub, o Stinul e o Milsami. São quatro clubes que se apuram constantemente para a Europa. Depois, as restantes quatro equipas estão num patamar mais abaixo. O Zimbru está a tentar reaparecer, mas ainda não está ao mesmo nível.
MF – Vi que no fim de semana vão jogar com o Sheriff para o campeonato.
MM – Em casa. Temos duas baixas importantes, mas isso não afeta nada e em casa é difícil superarem-nos. O campeonato tem oito equipas e quatro voltas, ainda falta muito para o fim da época, mas estes jogos podem ser decisivos. Porque o Sheriff e nós dificilmente perdemos pontos com equipas que não sejam candidatas aos primeiros lugares. Vai ser difícil, mas vamos tentar jogar com o facto de eles estarem mais cansados por estarem na Liga dos Campeões.
MF – Que planos tem a nível profissional para o futuro?
MM – Tenho mais um ano de contrato e sinto-me bastante bem no Petrocub. Lutamos pelo primeiro lugar, vamos às competições europeias, financeiramente estou estável e a minha mulher também é moldava, o que ajuda. Mas se houver uma proposta mais aliciante e de um campeonato melhor, não digo que não possa mudar.
MF – E Portugal?
MM – Todos os jogadores gostavam de jogar no seu país, mas financeiramente não é fácil. Esse é o problema do nosso país.
MF – Antes de ter regressado à Moldávia, passou pela Arménia, um país onde já se veem mais jogadores portugueses, mas que não deixa de ser um mercado pouco comum para um jogador português.
MM – Cheguei lá [ao Lori] mesmo antes de começar a pandemia e esse foi o problema. Fiquei lá uns cinco ou seis meses, no máximo, e com o futebol parado durante grande parte do tempo.
MF – E como foram esses tempos?
MM – Tive uma grande ajuda de um colega português: o Diogo Coelho, que está agora na Islândia. Estávamos juntos todos os dias. Acordávamos, fazíamos ginásio, umas brincadeiras, víamos televisão portuguesa. Era assim que passávamos o tempo. Foi complicado, porque gostava de estar junto da família, mas tive uma companhia portuguesa.
MF – Mi-cka-el. Nasceu em França, certo?
MM – Sim. Sou filho de pai e mãe portugueses. Foram emigrantes e depois decidiram voltar para Portugal, para onde fui com nove anos.
MF – E passou pelas formações do Benfica, primeiro, e depois do Sporting. Comecemos pela do Benfica.
MM – Foi um ano. Eu vivia em Leiria e o meu pai levava-me a Lisboa duas vezes por semana: uma vez para treinar e outra para jogar. No ano seguinte, a academia estava cheia e o meu pai decidiu continuar a não fazer essas viagens. Eram 120 quilómetros o que ainda é bastante.
MF – E mais tarde, com 15 anos, vai para o Sporting.
MM – Sim. O senhor Aurélio Pereira é que me indicou ao Sporting. Foram momentos inesquecíveis, grandes momentos com grandes jogadores. Jogar no Sporting é um luxo e vivia na academia. O meu companheiro de quarto era o Farley Rosa, que está agora no Hapoel Tel Aviv, em Israel, e passava muito tempo com o Iuri Medeiros, o Tobias Figueiredo e o Alexandre Guedes. Esse era o nosso grupo.
MF – Fez parte de uma geração do Sporting que produziu grandes talentos.
MM – Sim. Alguns um ano mais velhos, mas o João Mário, Ricardo Esgaio, o Tiago Ilori, o Carlos Mané, o Luka Stojanovic… O jogador português sempre esteve entre os melhores e isso está à vista de todos. Vá para a Eslovénia, para a Polónia, para a Moldávia ou para a Arménia, está sempre a dar cartas. Fala-se sempre do jogador português, porque de facto temos muita qualidade. Cá, os miúdos olham para mim e dizem: ‘É o Meira, o português’. Mas para isso acontecer é preciso fazermos o nosso trabalho dentro de campo, porque se isso não acontecer ninguém quer saber do Meira.
MF – Sente que até exigem mais de si por ser português?
MM – Claramente. O Petrocub tem poucos jogadores estrangeiros e enquanto estrangeiros esperam que façamos a diferença. Foi para isso que fomos contratados.
MF – Sente-se um jogador realizado aos 27 anos?
MM – Não totalmente. Passei por dificuldades, como por exemplo a situação dos salários em atraso no Atlético, mas fico feliz por estar a exercer a minha profissão. Estou bem em termos financeiros, feliz e a jogar. Claro que gostava de jogar em Portugal ou noutros campeonatos com outra visibilidade, mas estou feliz e sinto que estou a dar nas vistas.
FOTOS: DR Petrocub