Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões: djmarques@mediacapital.pt ou rgouveia@mediacapital.pt

É o próprio Paulo Jorge Silva quem assume ter uma grande «pancada» por futebol e para prová-lo recorda o dia em que esgotou as últimas poupanças para fazer um estágio com Manuel Cajuda, na altura a treinar o Al Sharjah, dos Emirados Árabes Unidos.

«Mandei emails para todo o lado para fazer um estágio. Nenhum clube português me respondeu e contactei-o pelo Facebook: disse-lhe que estava a tirar a licença de treinador e perguntei-lhe se podia ir lá fazer um estágio de uma semana, para ver como era o futebol profissional. Ao fim de uma semana ele disse-me que eu era bem-vindo.»

Sem telemóvel e apenas com meia dúzia de tostões e bilhete de ida e volta no bolso, Paulo meteu-se no avião e embarcou rumo ao Dubai. «Quando lá cheguei, pus-me à porta do estádio e fiquei lá horas e horas. Até que ele apareceu à noite para dar o treino: ‘Eh pá, você apareceu!’ Deu-me um equipamento e pagou-me hotel, depois de eu ter andado quatro noites a dormir no aeroporto. Isso marcou-me», conta.

Quase uma década depois deste episódio, Paulo – que não tem experiência ao leme de equipas seniores portuguesas – já passou por Alemanha, Inglaterra, Costa Rica, Nigéria, Zimbabué, Zâmbia e, agora, Mongólia, o 18.º maior país do mundo em área e, também, o mais despovoado.

A trabalhar há mais de dois anos na China, o técnico de 47 anos estava num clube de Hohot, uma cidade chinesa que fica na região fronteiriça da Mongólia Interior e onde, conta, a maioria das pessoas não se sente chinesa.

Desde o início deste mês, Paulo Jorge Silva assistiu aos últimos jogos da época – começa em março e terminou agora – e inteirou-se acerca das condições do Deren FC, equipa sediada em Ulan Bator, capital do país. «Fiquei surpreendido com as instalações. Temos um estádio, um campo de treinos próprio e uma boa formação. Aliás, até 2015 o clube só estava direcionado para as camadas jovens e não tinha equipa sénior.»

Paulo diz que terá muito trabalho pela frente, até porque, antes de regressar à Europa para algumas semanas de férias, orientou alguns treinos e tomou o pulso à equipa. «Neste momento só temos 15 jogadores e a maioria tem menos de 19 anos. O plantel é curto e falta intensidade aos jogadores. Só para ter uma ideia, no primeiro treino que dei aqui, posso dizer que quatro jogadores vomitaram: não aguentaram a carga», recorda.

Boicotes, escândalos e macumbas no reino de Mugabe

Paulo Jorge Silva teve um percurso modesto como jogador. Passou por equipas de divisões inferiores em Portugal e já em final de carreira rumou à Alemanha. Conta que foi lá que se iniciou com treinador e em 2015 decidiu lançar-se a solo.

«Mandei currículos para todo o lado. Uruguai, México, Nicarágua, Laos, Vietname e Tailândia. Ia ao Maisfutebol ou ao zerozero: se estivesse lá o email dos clubes, enviava diretamente. Se não estivesse, procurava-os no Facebook e contactava-os por aí. Nunca tive empresário.»

Parece mentira, mas Paulo garante que é mesmo verdade e foi assim que aterrou na Nigéria em 2015 para treinar o COD United, uma equipa da 2.ª divisão sediada em Lagos. «Cheguei a meio da época e fiquei lá três ou quatro meses. Uma equipa do Zimbabué [Dynamos FC] foi estagiar às instalações do clube, o presidente dela disse-me que estavam sem treinador e fui logo. Às vezes as oportunidades aparecem.»

Em Lagos, capital da Nigéria, onde teve a primeira aventura em África

No Zimbabué, onde esteve entre o final de 2015 e maio de 2016, o treinador português experienciou aquilo que pode ser definido com uma «relação complicada».

Tão complicada que ainda agora, alguns dias após a conversa telefónica, continuamos a tentar perceber por que razão quer voltar um dia ao Dynamos FC, o maior clube de um país que entrava naqueles tempos na reta final do regime de Robert Mugabe, que liderou com mão de ferro os destinos da antiga Rodésia durante mais de 30 anos, metade deles sob fortes sanções económicas externas.

A queda do anterior regime não trouxe paz a um país em convulsão, com focos de tensão constante entre povo, autoridades e governo, uma economia estagnada e graves problemas humanitários.

«Apanhei o período em que o presidente mandou a polícia para a rua. Os produtos começaram a escassear, o Obama cortou os dólares ao Zimbabué e andava tudo à briga e a assaltar bancos. Não é fácil ir ao supermercado comprar uma coisa e ter 50 miúdos a olhar para si», recorda.

Apesar disso, Paulo Jorge Silva garante nunca ter-se sentido inseguro. «Nós tínhamos guarda-costas, mas eu mandava-os embora e sempre andei à vontade nas ruas. Era o povo à bulha e eu, quando passava, parecia que havia flores. O clima mudava.»

O treinador natural de Santarém sente que foi amado no Dynamos FC como em nenhum outro clube. «Fui para o melhor clube do Zimbabué. Quando lá cheguei, estavam umas 10 mil pessoas no aeroporto. Chegaram a comparar-me ao Mourinho e até havia pessoas a vender camisolas com o meu nome nos semáforos de Harare [a capital].»

Paulo diz ter feito um bom trabalho e que saiu do Dynamos após ser aconselhado pela embaixada portuguesa a abandonar o país, devido à deterioração das condições de segurança.

As versões de jornais locais são diferentes: uma inevitabilidade provocada pela sequência de maus resultados, com apenas uma vitória nas primeiras cinco jornadas do campeonato e cinco pontos alcançado em 15 possíveis. «Nós estávamos a um ponto do primeiro lugar e tínhamos um jogo a menos», contraria o treinador, que aponta o dedo à «falta de profissionalismo» da imprensa local.

Há relatos de problemas com os adjuntos – Paulo assume que um deles lhe boicotava o trabalho – dúvidas relativas ao percurso profissional, trocas de identidade entre ele, que até jogava como avançado, e o antigo guarda-redes internacional português Paulo [Jorge da Silva dos] Santos e uma notícia de uma agressão a uma jornalista à margem de um treino da equipa ainda durante a pré-época.

Pontos nos is: «O que se passou foi que nós estávamos a treinar e um jipe da televisão entrou no campo e parou mesmo no meio. Eu disse ao motorista para tirar o carro e quando o camera-man sai, começa a filmar os meus jogadores a tomar o pequeno-almoço à mão dentro de uma panela enquanto faziam uma roda. Eu disse-lhe para não filmar, meti a mão à frente da câmara e empurrei-o. Não era mulher nenhuma! Um jornal escreveu que eu torci o pulso a uma jornalista e outro que até fui eu quem conduziu a carrinha, veja lá!»

Paulo Jorge Silva só encontra uma explicação para tanta informação e contra-informação: as vendas de jornais que, diz, «disparavam» com notícias dele. «Uma vez apanhei dois jogadores com meninas no hotel e mandei-os embora do estágio: no dia a seguir, um dos jornais disse que eu os tinha mandado embora porque queria as namoradas deles. O próprio presidente dizia-me: ‘O Paulo vende jornais’. Acabei por passar a falar só para a televisão, porque eu dizia uma coisa aos jornais e eles, no dia a seguir, escreviam outra. Era ‘verdinho’», reconhece.

No Dynamos FC, do Zimbabué

Algumas semanas após deixar o Dynamos FC, o técnico reapareceu no Mufulira Wanderers: outro histórico, agora da Zâmbia. «Foi o presidente do Dynamos que me mandou para lá. Ele também estava ligado a esse clube e disse-me que ficava lá dois ou três meses, que terminava a época e que depois voltava. Achavam que aquilo ia melhorar, mas não aconteceu. Ainda hoje tenho convites para voltar. Eu tive uma relação de amor-ódio com o presidente, mas já lhe disse que se ele conseguisse meter pelo menos metade do meu ordenado em Portugal, eu voltava para lá já amanhã», lamenta.

Em pouco mais de um ano, três clubes em África e muitos episódios sórdidos para a coleção.

«No Zimbabué havia muita macumba, nem queira saber! Eram galinhas desmembradas nos balneários nos jogos fora, os jogadores a não quererem aquecer no relvado, a entrarem no campo ao pé-coxinho e não me deixavam entrar no nosso estádio na véspera dos jogos. Uma vez, o nosso motorista deixou-nos no meio da estrada porque recebeu uma chamada da mulher, que lhe disse que teve uma visão e que ele não podia conduzir o resto da viagem. Desceu do autocarro, pôs-se a rezar e tivemos de ir todos de táxi», conta entre risos.

Agora, Paulo Jorge Silva prepara-se para um novo desafio, na Mongólia, que encara com total confiança. «Vou tentar ser campeão, ganhar um caneco!», diz, mostrando-se pouco seduzido por um regresso a Portugal. «Quando vou ver um treino ao meu país, vejo-me a mim a trabalhar. É verdade que também não tenho muitos contactos, mas sinto que posso ajudar mais fora do meu país.»

Artigo original: 15/11/19; 23h50