Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

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Na maior cidade da Transilvânia, região que o romancista irlandês Bram Stoker deu a conhecer ao mundo através de Drácula, há um português que reina.

Mário Camora já nem se sente bem assim. Português de gema. O lateral aterrou há uma década na Roménia e é hoje um dos jogadores mais respeitados da história do CFR Cluj.

«Claramente que já me sinto romeno. É a minha primeira casa e será o sítio onde vou continuar a viver mesmo quando deixar de jogar. É complicado dizer se me sinto mais romeno do que português, porque tenho família portuguesa. Mas tudo o que tenho devo à Roménia e ao clube», diz o jogador de 32 anos em conversa com o Maisfutebol.

Pedra basilar do atual campeão romeno, Camora aterrou no país dos Cárpatos no verão de 2011. Para trás ficava um percurso com passagens pelo clube da terra natal (Samora Correia), Beira-Mar, Pampilhosa e pela extinta Naval, onde esteve três anos sempre no principal escalão do futebol português.

«O mister Paulo Sérgio estava para vir para o clube e numa conversa surgiu o meu nome. Depois, as coisas não se confirmaram. Contrataram o Jorge Costa, mas acabei por vir na mesma», conta.

Na altura, pelo menos metade dos clubes da primeira divisão romena tinham portugueses. Só no Cluj, o número (sem equipa técnica) era de oito, mais de 1/5 do plantel, cenário que hoje não acontece.

Em sete temporadas e meia, Camora participou nas conquistas de quatro títulos: uma Taça, uma Supertaça e dois campeonatos, o primeiro na temporada de estreia e o último na época passada.

Camora (com a taça) durante as celebrações do título romeno em 2017/18 (arquivo pessoal)

Camora, hoje capitão do Cluj, coloca a participação na Liga dos Campeões em 2012/13 também num lugar especial, quase ao lado dos títulos alcançados. «Fomos ganhar a Manchester e vencemos os dois jogos com o Sp. Braga. Fizemos dez pontos, mas não nos qualificámos para os oitavos de final, o que é raríssimo», recorda.

Uma história de amor para durar

Mário Camora renovou recentemente por mais três épocas o contrato que o liga ao campeão romeno. Se o cumprir, ultrapassará uma década ao serviço de um clube no qual já viveu sensações distintas.

Além dos títulos, houve também tempos turbulentas, com classificações modestas e uma insolvência declarada em 2015. «Aqui não temos uma SAD. Temos um patrão e com certeza que o nosso teria alguns problemas pessoais, mas não sei o que se passou ao certo», conta.

«Foram tempos complicados. Salários por pagar há seis ou sete meses, jogadores a perder muito dinheiro e a rescindir contratos. No meu caso foram 175 mil euros e com a chegada de novos investidores recebi vinte e poucos mil euros dessa verba. Tive ofertas para sair e podia sair a custo zero, mas optei por ficar.»

Questionado por que razão decidiu ficar, Camora fala em sentimento de gratidão. «Optei por ajudar o clube. Deram-me tudo aqui e precisavam de ajuda.»

O lateral português ficou no Cluj e continuou a somar capítulos a uma história que continua a enriquecer. «Se sinto que estou na história do clube? Sim. Sou o estrangeiro com mais jogos pela equipa na primeira divisão e já fui considerado três vezes o jogador preferido dos adeptos. Eles sabem que eu vou dar tudo em campo enquanto puder. Às vezes os jogos não saem tão bem. Não somos máquinas, mas normalmente sou muito regular. Desde que aqui cheguei nunca tive uma lesão», recorda sensivelmente a meio da temporada.

Lançados em busca do inédito bicampeonato

Depois da pausa de inverno, o campeonato romeno foi retomado no fim de semana passado. O Cluj não foi além de um empate caseiro diante do Hermannstadt de Pedro Moreira, mas manteve a vantagem de seis pontos para o colosso Steaua Bucareste, que segue na vice-liderança da prova.

«O campeonato é complicado e ao mesmo tempo injusto», observa. «Temos a fase regular e depois o play-off, onde são retirados metade dos pontos. Se o campeonato acabasse agora, ficaríamos apenas com três pontos de vantagem na fase seguinte. Bastaria termos um azar para perdermos a liderança. Não é um campeonato justo e não falo só por mim: se fosse outra equipa a ir à frente, diria o mesmo.»

Com Javier Zanetti durante um jogo entre o CFR Cluj em o Inter para a Liga Europa em 2012/13

Caso vença a Liga, o CFR Cluj – orientado por António Conceição – alcança o primeiro bicampeonato da história, depois de não ter conseguido defender os títulos conquistados em 2007/08, 2009/10 e 2011/12. Uma proeza digna de registo para um clube que renasceu quase das cinzas após ter registado uma dívida superior a 20 milhões de euros e que chegou a estar impedido de participar nas competições europeias.

Mário Camora diz até que, apesar da pujança atual, o CFR Cluj talvez até nem seja a equipa com mais adeptos de Cluj-Napoca. «Só há 15 ou 16 anos é que o nosso clube começou a crescer. O Universitatea Cluj, a outra equipa da cidade, tem mais história. Não tem mais campeonatos ganhos, mas esteve muito tempo na primeira divisão. O nosso estádio não costuma estar cheio, à exceção dos dérbis e dos jogos decisivos. Mas os poucos que vêm ver-nos são bons», refere.

A seleção e o futuro… no Cluj, pois claro

Fluente no idioma local e com mulher e filho romenos, Camora sente-se assim... romeno. Ainda não tem dupla nacionalidade, mas esse é um cenário que quer resolver em breve. E a seleção romena? O jogador português garante não viver obcecado, mas admite que veria com agrado essa possibilidade, caso ela surgisse.

«Houve uma altura em que se falou sobre isso. É uma coisa que não mexe com a minha cabeça, mas se fosse o primeiro jogador estrangeiro a jogar pela Roménia, claramente que ficaria feliz. Mas se não foi há dois ou três anos, agora também sou realista e sei que será mais difícil», diz.

Camora vive em Cluj-Napoca desde 2011: «É uma cidade com vida: tem monumentos, restaurantes e muitas pessoas estrangeiras por causa da universidade. Tem tudo o que uma cidade europeia normal tem» (arquivo pessoal)

Camora lembra os 32 anos (completa 33 em setembro) e a nova geração de jogadores romenos que se apurou para o próximo Europeu de sub-21 à frente de Portugal no Grupo 8 da fase de qualificação. «Poderão vir a ser a próxima geração de ouro», aponta, chamando a atenção para o reforço da aposta no jogador romeno.

«Temos uma regra que obriga a apostar nos sub-21. Em todos os jogos uma equipa tem de ter um jogador desta faixa etária durante os 90 minutos. E se esse sair, tem de entrar outro sub-21 para o lugar dele. E para o ano vai ser mais: vão ser dois jogadores. Os clubes estão a apostar mais nos jovens romenos e já se vê os frutos na seleção sub-21. Têm tudo para que se oiça falar deles num futuro próximo.»

No Cluj, Camora não sente, para já, vontade em ceder o lugar aos mais novos. Quer continuar a prolongar a história de amor ao clube, ao qual «deve tudo», por pelo menos mais três anos.

«Quando cheguei, pensava em ficar uns dois anos e ir depois para outro campeonato, mas acabei por ficar. Quando terminar a carreira quero tirar o curso de treinador e gostava de um dia treinar o Cluj. Se me apaixonei pela Roménia? Sim, claramente.»

São assim as verdadeiras histórias de amor. Duradoras.

Artigo original: 05/02; 23h50