Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do Mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões para djmarques@mediacapital.pt ou rgouveia@mediacapital.pt

Hildeberto Pereira tinha acabado de pisar solo chinês quando, ainda no aeroporto de Xangai, o termómetro digital leu de 37°C.

Primeiro teste: inconclusivo.

Dia 2, segundo teste: positivo para a covid-19.

Os 14 dias de quarentena protocolados num hotel transformaram-se num longo mês de agosto e parte de setembro fechado num hospital, com leves sintomas nos primeiros dias de internamento: temperatura ligeiramente acima da média e falta de paladar.

O início da mais recente aventura do jogador de 24 anos formado no Benfica pôs-lhe à prova a paciência de chinês. Mau? Já passou por pior, diz quem garante ter aproveitado o tempo isolado do mundo para pôr as ideias no sítio e refletir sobre a vida e o rumo que pretende para a carreira. «Não dá para facilitar mais», assume sem rodeios em entrevista ao Maisfutebol.

Já de regresso aos relvados e, diz, em forma para ajudar o Kunshan a alcançar uma subida inédita à elite do futebol da China, Berto passou em revista os primeiros meses no Oriente, abordou o zelo dos chineses no combate à pandemia e falou sobre a bolha que permite que o futebol prossiga sem sobressaltos. Olhou ainda para o passado recente e não escondeu a tristeza por ver o V. Setúbal, onde esteve nas últimas duas épocas, mergulhado numa crise profunda. O futuro? Continuar a trabalhar para que os sonhos se tornem tangíveis.

Maisfutebol – Nas suas redes sociais usa regularmente a hashtag #dobairroparaomundo. A China é um mundo à parte, não é?
Hildeberto Pereira – [risos] Para onde eu vou, tenho o meu bairro sempre como orgulho. Esse tema veio de um grupo de Whatsapp com os meus amigos de infância. E um deles do nada disse-me: ‘Berto, já viste o que é que já conquistaste?’ Ficámos a falhar sobre isso e chegámos a essa alcunha ‘do bairro do bairro para o mundo’. Agora vim parar a um mundo mesmo à parte, que é a China. É um país diferente dos outros por onde já passei, mas estou a gostar da aventura. É um país moderno, as pessoas são simpáticas e estou a adaptar-me bem.

Quais foram as maiores diferenças que encontrou?
Destaco as pessoas. Gostam muito de aprender com os estrangeiros.

Por exemplo?
Nos treinos, às vezes fico a reparar nos meus colegas. Vejo que eles estão mesmo com atenção e que querem aprender. Querem ser como nós, observam-nos muito e fazem-nos muitas perguntas.

A China estava nos seus planos de carreira ou foi algo que surgiu?
Por acaso, cheguei a dizer ao meu empresário que gostava de vir um dia para a China, mas talvez mais tarde, aos 28 ou 29 anos. Recebi a proposta do Kunshan e pensei em não vir, porque ainda tenho 24 anos, sou novo e podia ter continuado em Portugal ou ir para outros países com mais visibilidade. Mas depois falei com o presidente e o treinador, e eles mostraram-me o projeto que têm para o clube, que foi formado em 2018. E fiquei encantado. Aí não pensei duas vezes.

Acredito que as condições financeiras também tenham pesado na escolha.
Sim, claro. Sou jogador de futebol e quero ganhar dinheiro para ajudar a minha família, mas o que me encantou foi o plano que os dirigentes do Kunshan têm para o futuro do clube e eu sinto que posso ajudar. Acredito que podemos ser um dos grandes clubes da China no futuro.

Curiosamente, o Berto não foi o único jogador a sair do V. Setúbal para o Kunshan. Também está aí o Bruno Pirri. É importante esse suporte de ter alguém conhecido e que fale a mesma língua.
Com certeza. Quando eu soube que ele também vinha para cá, fiquei muito contente. Damo-nos muito bem, já era assim no V. Setúbal. Somos um suporte um para o outro.

Souberam mais ou menos mesmo tempo que iam para a mesma equipa?
Eu soube um dia antes de vir. Foi engraçado. Eu fui à Embaixada da China para assinar uns documentos e quando cheguei vi lá o Pirri. Perguntei-lhe o que é que ele estava lá a fazer. Ele virou-se e disse-me que ia jogar no Kunshan [risos]. Foi muita coincidência.

«Tenho 24 anos e se quero chegar um dia a um grande clube europeu não dá para facilitar mais» (foto: arquivo pessoal)

E que balanço faz destes primeiros tempos no futebol chinês?
Estou muito melhor fisicamente e as coisas estão a sair-me bem. Também tenho estado a trabalhar à parte com o meu preparador físico Jaime Ramos. Estou mais focado em mim. Disse para mim: ‘Tenho 24 anos e se quero chegar um dia a um grande clube europeu não dá para facilitar mais.’ Meti isso na cabeça e o trabalho dentro do campo está a aparecer. Estou a jogar, infelizmente ainda não fiz golos, mas já criei muitas oportunidades e consigo fazer 90 minutos como um bom ritmo.

Disse que não pode facilitar mais. Sente que foi isso o impediu até agora de atingir o máximo do seu potencial de forma constante.
Acho que esse foi o meu problema. Não basta fazer 10 ou 15 minutos bons em 90. Isso é válido para um jogo, mas também para a vida. Não vale a pena pensarmos que já demos tudo: temos de pensar que podemos dar mais. Acho que esse foi o meu grande problema. Sinto que se fosse constante e aproveitasse mais o meu potencial, poderia estar numa situação melhor, mas não me queixo. Há jogadores que têm muito talento, mas que não têm oportunidades.

Essa mudança de mentalidade aconteceu agora com a ida para a China?
Sim. Esse clique aconteceu durante o período que passei no hospital. Estive lá um mês fechado.

Por ter testado positivo para a covid-19 quando chegou, certo?
Sim. Pensei muito na vida. Não posso desperdiçar o potencial que tenho se quero conquistar grandes coisas. Ainda vou a tempo de atingir os meus objetivos. Apesar de não ser bom estar no hospital, ainda por cima longe de casa, esse foi um momento em que tive tempo para pensar na vida.

Fale-nos mais dessa chegada atribulada à China.
Quando cheguei ao aeroporto de Xangai estava com um bocadinho de febre, 37. C. Fui fazer o teste e o resultado foi inconclusivo. No dia a seguir repeti o teste e deu positivo.

E depois?
Fui logo para o hospital e fiquei três semanas positivo. Depois deu negativo, mas tive de ficar mais duas semanas de quarentena.

Que sintomas teve para além da febre?
Apesar da febre, eu sentia-me bem, nem me doía a cabeça. Mas passados uns dias deixei de sentir o sabor da comida. A febre baixou passado um dia ou dois e a falta de paladar durou mais ou menos o mesmo tempo.

Esse mês no hospital foi o mais duro da sua vida?
Não diria. Já tive momentos muito piores na vida. Foi triste porque estou longe da família, mas não digo que tenha sido o pior. Tenho é de agradecer por ter saído desta e por ter o apoio dos amigos, família e namorada.

Quando é que treinou pela primeira vez com os seus novos companheiros?
A 14 de setembro. Primeiro tive um treino individual e no dia a seguir treinei integrado.

E que tal?
Foi uma sensação ótima. Voltar a sentir a bola, o ar do relvado, as gargalhadas com a equipa. Fui muito bem recebido e senti-me logo em casa. Ao fim de dois dias já me sentia integrado.

Berto testou positivo para a covid-19 à chegada à China: «A febre baixou passado um dia ou dois e a falta de paladar durou mais ou menos o mesmo tempo» (foto: arquivo pessoal)

E como é que estava fisicamente depois de tanto tempo sem treinar?
O preparador físico e o treinador ficaram encantados, porque eu treinava no hospital com o meu preparador físico Jaime Ramos. O apoio dele tem sido muito bom. Perdi muitos quilos, sinto-me muito melhor e deixei de ter dores na perna e no joelho. Sempre fui um jogador muito rápido, mas com a perda de peso e o ganhar de músculo estou ainda mais rápido e aguento melhor os 90 minutos.

No V. Setúbal alternava entre uma das alas e o ataque. E agora?
Tenho treinado e jogado a ponta de lança, a extremo e atrás do ponta de lança fixo. E as coisas estão a sair naturalmente.

Vi que o Kunshan está a preparar-se para começar a jogar a fase de promoção à Liga chinesa. Subir de divisão é um objetivo para o imediato?
É esse o objetivo, temos equipa para isso.

A fase final vai ser centralizada num só local, certo?
Sim. Vamos estar numa bolha, num hotel e só podemos sair para jogar e para treinar. Na primeira fase também não jogámos em casa: jogámos em campo neutro também e as equipas do nosso grupo ficaram todas no mesmo hotel.

Pela comparação que já pode fazer, sente que há mais restrições na China do que cá por causa da pandemia?
As pessoas cuidam-se muito. O meu tradutor disse-me que durante dois ou três meses, depois de a pandemia ter começado cá, as pessoas não saíam sequer de casa e o país foi melhorando com o tempo. Aqui em Xangai, onde eu estou agora, não há casos. A maioria das pessoas já anda sem máscara e leva uma vida relativamente normal. Sinto-me bastante seguro cá.

E os jogos? Já têm tido público?
Alguns jogos têm público autorizado, mas não muito. Até já tenho saudades daqueles assobios nos jogos fora de casa quando tenho a bola [risos]. Mas quando dermos conta, os estádios vão estar cheios novamente.

Imagina-se a ficar muito mais tempo na China?
Sim. Quero fazer história aqui, neste clube. Claro que trabalho para ir para um clube grande e para um dia cumprir o sonho de jogar na Liga dos Campeões. Mas agora só penso no Kunshan e em fazer história com os meus colegas.

Tem 24 anos, mas já vai no terceiro país estrangeiro, depois de Inglaterra (Nottingham Forest e Northampton Town) e da Polónia, onde esteve no Legia Varsóvia. Há algum outro país que gostasse de experimentar?
O meu clube de sonho é o Borussia Dortmund. É um clube que me encanta desde o dia em que entrei naquele estádio pela primeira vez, quando jogava nos juniores do Benfica e fomos a um torneio na Alemanha. Foi amor à primeira vista. Quem sabe…

E onde sente que esteve mais perto do seu melhor enquanto jogador?
Em Inglaterra, quando estive no Nottingham Forest [2016/17]. Estive bem no início, as coisas saíram bem e estava numa forma espetacular. Mas na segunda metade da época não estive tão bem. Não tinha a cabeça no lugar e isso prejudicou, mas isso é passado e agora tenho outra mentalidade e há que olhar em frente.

Um regresso a Inglaterra também está no horizonte?
Quero jogar em grandes palcos e Inglaterra não foge a isso. É um sonho jogar na Premier League.

E o futebol português?
Passa pela cabeça, claro. Em Portugal também há grandes clubes e não fecho as portas a nenhum. Fui formado no Benfica, mas não descarto jogar num rival. Rejeitar um grande só por ter jogado na formação do Benfica não seria bom para mim. Mas tenho grandes memórias do Benfica, fiz-me homem lá e é o meu clube de infância.

«Fui formado no Benfica, mas não descarto jogar num rival. Rejeitar um grande só por ter jogado na formação do Benfica não seria bom para mim»

No V. Setúbal foi onde teve a oportunidade de se estrear na Liga e onde esteve dois anos. Como recebeu a notícia da queda do clube para o Campeonato de Portugal já depois do fim da época?
Foi um momento muito triste. O Vitória é um clube enorme, histórico, com nome e os adeptos e os jogadores não mereciam isso. O Vitória está no meu coração. Espero que um dia volte ao lugar onde merece estar, que é na Liga. Acredito que voltará a acontecer em breve, mas agora os adeptos têm de apoiar o clube e unir-se. Não será fácil, porque o futebol está desenvolvido e até no Campeonato de Portugal há jogadores com muita qualidade. Vai ser difícil, mas com união será possível alcançar os objetivos.

Foram públicas as dificuldades que o clube viveu nos últimos meses da época, com muita instabilidade e salários em atraso. Apesar disso, a equipa cumpriu em campo e conseguiu evitar a descida desportivamente. Custou mais por ter sido algo que não podiam controlar?
Claro. Nós fomos uns guerreiros, porque apesar de todas as dificuldades demos sempre tudo em campo e conseguimos o nosso objetivo. É muito pior saber que se vai descer depois de tanto trabalho, esforço, suor, guerras e até sentimento de missão cumprida. Dias depois recebemos essa notícia e sentimo-la como uma facada nas costas. Ficámos muito tristes, mas agora só espero que o Vitória chegue à Liga o mais rapidamente possível.