Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

Esta é uma história de coragem, determinação e persistência. Miguel Lourenço, depois de ter feito toda a formação no Vitória de Setúbal, ficou cansado de fazer de «tapa buracos» na equipa principal e, aos 24 anos, decidiu dar um novo rumo à sua vida. Avisou o empresário que estava aberto a todas as propostas, abrindo, inclusive, a possibilidade de rumar, pela primeira vez, ao estrageiro. Surgiu um convite inusitado do Azerbaijão. O jovem defesa nem sabia onde ficava a antiga República Soviética, mas aceitou o desafio e, depois de contornar a desconfiança da família em relação a um país muçulmano com vizinhos em guerra, partiu rumo a Baku.

Um novo rumo que começou a ganhar forma no final da temporada passada. Miguel Lourenço estava no Vitória há dez anos, desde o catorze, fez parte da fornada que incluiu Frederico Venâncio, Ricardo Horta e Pedro Santos, mas não passava de segunda opção entre os sadinos. Na última época ainda fez treze jogos, mas apenas seis completos. Muito pouco para um central que aspirava jogar com regularidade e seguir os passos do amigo Frederico Venâncio. «A verdade é que o ano passado não fui a aposta que pensava que iria ser. No ano anterior até tinha acabado a época a jogar, sentia-me bem e pensei que o caminho natural das coisas seria jogar com maior regularidade, mas não foi isso que aconteceu», conta o jovem central desde a capital do Azerbaijão.

Quim Machado tinha saído no final da temporada, mas Lourenço estava cansado. «Depois de passar o ano anterior a fazer de tapa buracos não me podia dar ao luxo de, com 24 anos, ter o mesmo papel este ano e, então, decidi arriscar sair e ter a minha primeira experiência fora do meu país», contou.

Miguel Lourenço queria «ser primeira opção», «queria jogar sempre», «fosse onde fosse».

«Família ficou com o pé atrás»

A janela abriu-se com a invulgar proposta que lhe chegou pelas mãos do empresário. «Azerbaijão? Onde é que isso fica?», reagiu Miguel Lourenço antes de ir ao portátil e apontar os motores de pesquisa para a longínqua Baku. «Foi a primeira coisa que fiz, pesquisei a cidade para onde ia que era Baku, pesquisei sobre a cultura, sobre a comida, sobre tudo, porque não sabia nada sobre o Azerbaijão», contou. «Estou ciente que não tem de todo a visibilidade que têm outros campeonatos, mas o mais importante é que me senti desejado. O Zira fez força para eu ir e até aos dias de hoje têm-me valorizado muito a mim e ao meu trabalho e isso é importante para mim», recorda.

Seguiram-se negociações com o Vitória e…com a família. Os pais de Lourenço também foram investigar Baku e descobriram que era um país de maioria muçulmana e que não fica longe de regiões que estão em permanente conflito. O Azerbaijão tem fronteiras com a Rússia, a norte, Arménia e Géorgia, a oeste, e Irão, na parte sul. Mas a verdade é que não fica muito longe da Turquia, Síria e Iraque, países em permanente convulsão, sob a influência do Daesh. «Ficou tudo com o pé atrás como é normal, um país desconhecido, situado numa parte do mundo onde há muitos problemas com guerras e tudo mais, mas por outro lado sempre confiámos e confiamos muito nos meus empresários. Se não fosse bom para mim eles não me tinham proposto está possibilidade. Mas sim, ao início foi complicado aceitar que viria para cá», lembra.

Miguel Lourenço ainda não estava convencido. O defesa estava determinado a levar a namorada para a nova aventura, mas também não a queria submeter às restritas imposições da Charia [lei islâmica]. «Essa foi uma das minhas maiores preocupações, mas informei-me também muito bem acerca desse assunto e vim a descobrir que Baku é uma cidade bastante europeia, onde há liberdade para as mulheres fazerem o que quiserem e usarem as roupas que quiserem. Não têm restrições nenhumas e isso deixou-me muito mais tranquilo porque, como é óbvio, quero o meu bem-estar mas também o da minha namorada e da minha mãe quando cá vier», lembrou.

A decisão estava tomada, mas Miguel Lourenço ainda partiu desconfiado. Um voo de mais de nove horas para cobrir a distância de seis mil quilómetros até à beira do Mar Cáspio, na fronteira com a Ásia. «A primeira sensação que guardo foi o calor que senti quando cheguei.  Por volta das cinco da manhã já estavam trinta e tal graus. Depois fiquei surpreendido. Baku é uma cidade bastante evoluída e em constante evolução porque vê-se muitas coisas em construção, prédios muito altos e espelhados».

De facto, Baku é uma cidade com história, mas moderna. As primeiras referências datam do século VI, como sendo uma cidade integrada no antigo império Persa. Terão sido mesmo os persas a dar o nome à cidade de Baku, um nome que pode ser traduzido por «cidade fustigada pelo vento». «Sim, isso é verdade, já parti um telemóvel por causa do vento e já vi pessoas a cair à minha frente por causa de rajadas de vento, é muito ventoso aqui sim». Mas a cidade, como toda a região, ganhou relevância com a descoberta de petróleo no final do século XIX, ao ponto de ter atraído a mira dos panzers de Adolf Hittler durante a II Grande Guerra Mundial. «Sim, nota-se muito, é um país super-rico, isso vê-se em toda a cidade, pelos prédios, pelos carros, pelas roupas das pessoas, mas por outro lado quando se sai de Baku também se vê muita pobreza. Os ricos cá são muito ricos e os pobres são muito pobres. Nem todos os azeris conseguem desfrutar de tudo o que a cidade lhes dá porque aqui o salário mínimo, para eles, é muito baixo [menos e 60 euros].»

Miguel Loureço está instalado num condomínio na parte privilegiada da cidade. Num prédio com vinte andares, está no 18º, com «vista panorâmica para o mar e para a cidade toda». «A casa que eu tenho cá, em Portugal seria um balúrdio, mas aqui é uma pechincha, foi um achado», comentou. Lourenço vivia na Quinta do Conde, entre o Tejo e o Sado, estava habituado a estar perto do rio e do mar e, em Baku, também tem o Mar Cáspio pela frente. «Durante muitos anos frequentei Setúbal, o mar faz-me falta, faz-me confusão se não o vir, mas aqui não há muitas praias. Penso que há duas ou três em que se pode ir sem problemas, porque o mar Cáspio é muito poluído». Tão poluído que é praticamente impossível matar «saudades do peixe fresco de Setúbal e Sesimbra». «Aqui nunca vão saber o que é isso. «O único peixe que comi aqui foi uma espécie de salmão no Hard Rock Café, que é o sítio mais improvável para se comer peixe», conta.

Tudo ficou mais fácil a partir de novembro passado, quando Miguel passou a contar com a companhia da namorada e do cão. «Só lhe tenho a agradecer todo o apoio e força que ela me tem dado, não é nada fácil para ela também, mas apoiamo-nos muito um ao outro».

Depois da «voltinha» pela cidade, pedimos ao Miguel Lourenço que nos apresentasse o seu clube: o Zira FK. É que, de facto, não há muito informação disponível sobre o clube que foi fundado há menos de três anos, a 28 de julho de 2014. «É um clube recente que ainda está a dar os primeiros passos. Tem um estádio pequeno [com capacidade para 1.300 adeptos] que fica a 45 minutos de Baku e tem um relvado sintético. Esses são os aspetos negativos, mas desde que cá cheguei sempre me deram todas as condições para treinar e jogar, é um clube de boa gente que me recebeu super-bem e continua tratar de igual forma só tenho a agradecer».

E um clube tão recente já tem adeptos? «Tem poucos, mas barulhentos e isso é o mais importante. São muito menos do que os do Vitoria, por exemplo, e menos fervorosos também, mas também são dois clubes muito diferentes. O Vitoria é um histórico de Portugal, o Zira é um clube com três anos». Um clube novo, mas com uma ascensão meteórica, graças ao investimento inicial. Na primeira época subiu logo do segundo para o primeiro escalão e, na segunda, sob o comando do avançado Nélson Bonilla [17 golos], atualmente a jogar no Nacional da Madeira, destacou-se no segundo lugar, apenas atrás do Qarabakh. «Só não foi à Liga Europa porque, segundo os regulamentos da UEFA, os clubes com menos de três anos não podem participar nas competições europeias, mas para o ano já pode».

A maior parte do plantel do Zira é composto por jogadores locais, mas Miguel Lourenço não é o único estrangeiro. «Tem dois sérvios, um albanês, um paraguaio e um nigeriano que já cá está há muitos anos no Azerbaijão. Tive muita sorte com os colegas que apanhei cá. São casados ou namoram e são-super profissionais. Quanto aos Azeris não falo tanto por causa da barreira linguística mas há sempre brincadeiras e, como já vou dizendo algumas coisas na língua deles, torna-se mais fácil a comunicação, mas é tudo gente boa não tenho nada a apontar». O azeri, uma mistura entre o russo e o turcomano, não é de facto uma língua fácil de aprender. «Muito complicada, mas já vou dizendo algumas coisas. Olá, como estás, adeus, obrigado, as direções e mais algumas coisas. Mas às vezes já consigo perceber algumas conversas ou o contexto das conversas», conta Migel Lourenso [não são gralhas, é o nome que aparece na camisola do Lourenço na liga azeri]. «É a maneira como se escreve aqui o meu nome, por exemplo a letra ç tem outro significado e o u não se utiliza depois do g».

Tal como quase todos os interlocutores do «Made in», Miguel Lourenço, quando diz que é português, não consegue escapar às consequentes perguntas sobre Cristiano Ronaldo. «É inevitável, logo quando cheguei todos os meus colegas perguntaram-me por ele. Sempre que digo a alguém que sou português, a primeira coisa que me dizem é Ronaldo».

«Ao intervalo vão todos rezar»

A verdade é que quando a bola começa a rolar, as diferenças e nacionalidades esbatem-se e só ao intervalo dos jogos é que Miguel Lourenço volta a ter consciência que está de facto num país diferente. «Na minha equipa acontece todos os jogos. Quando vamos para intervalo eles vão diretos para uma sala e vão rezar. Acaba por não haver quase tempo nenhum para retificar nada ao intervalo, isso faz-me alguma confusão, mas há que respeitar».

Tirando isso, não há diferenças gritantes, a não ser quando o calor aperta. «A eles faz-lhes um bocado confusão as roupas ou as calças rasgadas e alguns não usam calções porque dizem que os homens têm de andar de calças. Mesmo que faça 40 graus», conta.

O campeonato azeri conta com apenas oito equipas, mas é disputado em quatro voltas [28 jornadas]. O Zira, nesta altura, ocupa um modesto sexto lugar, mas ainda faltam disputar mais duas voltas. «O nosso objetivo ir à Liga Europa. Em princípio o quarto lugar vai nos dar acesso à liga Europa». A maior parte das equipas da Premyer Liqasi, a liga azeri, são dos arredores de Baku, mas há algumas deslocações mais longas. «Há dois clubes do nosso campeonato que ficam a quatro horas da capital, o resto é tudo aqui perto, mas para a taça fizemos oito ou nove horas de comboio».

A verdade é que Miguel Lourenço está a cumprir todos os seus objetivos no Azerbaijão. É titular e joga com regularidade. «Até agora joguei os jogos todos [14 na liga]. Em termos individuais acho que está a correr muito bem. É a primeira vez que estou fora e adaptei-me bem ao país e felizmente tenho feito bons jogos. Só me está a faltar um golinho, mas pode ser que em 2017 tenha mais sorte».

Miguel Lourenço jogou ainda no passado sábado [derrota no terreno do Sumqayit por 0-1] e volta a jogar esta quarta-feira, antes de voltar a Lisboa para passar o Natal com a família. «Ainda tenho um jogo, mas se tudo correr bem, no dia 22 já estou em Portugal e só regresso dia 3».

Entretanto, Miguel Lourenço pode vir a ter novidades. O central, como já dissemos, está cedido pelo V. Setúbal, a título de empréstimo, mas o Zira tem opção de compra que pode vir a ser exercida até ao final do ano. «Não sei de nada, ainda nem se fala de nada que eu saiba. Tenho um ano de contrato de empréstimo e, de qualquer das maneiras, vou terminar a época pelo Zira, mas é claro se aparecerem coisas boas é sempre melhor». «Coisas boas» que até podem passar pelo Vitória, uma vez que Lourenço partiu para Baku, ainda antes do início da pré-época, e não chegou a falar com José Couceiro. «Tudo é possível, vamos ver como vai ser o desenrolar das coisas».

A verdade é que Lourenço não conseguiu cortar definitivamente o cordão que o liga ao Bonfim e tem acompanhado o percurso dos sadinos ao pormenor. «Não perco nenhum jogo, têm uma equipa cheia de talento e qualidade. Foram eliminados agora da Taça de Portugal contra um Sporting que é sempre forte, mas deram uma excelente réplica», comentou.

Por esta altura, Miguel Lourenço conta os dias e as horas para o regresso à Quinta do Conde para matar saudades da família, mas não só. «A primeira coisa que vou fazer é abraçar os meus pais e depois beber um café como deve ser», atirou ainda a fechar a conversa.