Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões para djmarques@mediacapital.pt ou rgouveia@mediacapital.pt

No lançamento do Estórias Made In para a época 2019/20, o Maisfutebol nota uma especial apetência dos clubes de leste para apostarem no talento lusitano.

Decidimos reiniciar as entrevistas precisamente por aí e Ricardo Alves, médio ofensivo formado no FC Porto e que uns dias antes marcou um golo na vitória do Orenburgo sobre o Rubin Kazan por 2-1, parece-nos uma escolha à medida.

- Podemos combinar na quinta-feira?

- Sim. Vemos um bom horário para os dois, porque aqui são mais quatro horas.

- Por volta de que horas?

- Hora de almoço.

- Aqui ou aí?

- Aqui.

Tratar da logística de um Estórias Made In nem sempre é fácil, sobretudo quando o entrevistado está a mais de 6 mil quilómetros de distância, ainda que já tenhamos passado por desafios mais complexos.

Apanhamos Ricardo Alves à hora combinada: nove em Portugal continental, 13 na Rússia. Perdão: em Orenburgo. É que no maior país do mundo cabem 11 fusos horários.

Aos 26 anos, o médio ofensivo acaba de iniciar a segunda época no clube situado perto da fronteira com o Cazaquistão e nas margens do rio Ural, que estabelece uma das fronteiras físicas entre a Europa e a Ásia.

Vista do espaço sobre Orenburgo, marcada no sul na Rússia (fonte: google maps)

«Não conhecia o clube nem a cidade, mas um colega meu da Eslovénia tinha chegado cá no mês anterior e informei-me com ele quando recebi a proposta. Fiz-lhe algumas perguntas, ele disse-me que o projeto era bom e eu acabei por aceitar. Mas quando aqui aterrei, pensei: ‘Onde é que eu vim meter-me?’»

Ricardo descreve-nos Orenburgo como uma «típica cidade russa», com construções antigas e sem grandes motivos de interesse turístico. «O local mais visitado talvez seja a ponte no centro da cidade que separa a Europa da Ásia», nota.

Primeiro estranha-se e depois aprende-se a gostar. Apesar das idiossincrasias do povo russo - que abordaremos mais à frente - o jogador português diz estar adaptado à nova vida, abraçada depois de três anos na Eslovénia ao serviço do Olimpija Ljubljana.

«A última época correu-me bem. Ganhei a taça, o campeonato e fui considerado um dos melhores jogadores do campeonato. Tive a opção de renovar. As pessoas gostavam de mim, o clube queria continuar a apostar em mim, mas eu estava a precisar de novos desafios, de encontrar novas adversidade e de sair da minha zona de conforto na idade que tenho. Foi uma escolha difícil, por causa da distância, mas o que mais me aliciou foi o campeonato.»

«Já consigo perceber quase tudo se estivermos a falar sobre futebol e já não precisou de tradutor nos treinos. O alfabeto deles é diferentes, o idioma não é fácil de aprender, mas falo o básico»

Ricardo Alves diz que a Liga russa está mesmo no top-6 dos principais campeonatos europeus e explica porquê. «É muito competitivo, há muitos dérbis, muitos clubes candidatos ao título e as equipas de baixo podem surpreender a qualquer momento.»

O Orenburgo pode ser inserido no grupo dos candidatos a surpreender. Poucos dias após a conversa com o Maisfutebol, foi a Moscovo derrotar o histórico Spartak – a equipa mais titulada da Rússia – por 2-1, com o português a ser responsável por uma assistência.

Movidos pela energia de uma gigante

A época 2016/17 foi a primeira em que o Orenburgo participou na 1.ª divisão russa. Atualmente a cumprir a segunda temporada consecutiva no principal escalão do futebol do país (desceu em 2017/18), joga num estádio com capacidade para 7.500 espectadores, que está quase sempre cheio.

O clube, que conheceu vários nomes desde a fundação em 1976, é suportado pela maior companhia russa de exploração e exportação de petróleo e gás, também ela acionista maioritária do Zenit, adversário do Benfica na Liga dos Campeões.

«A Gazprom é dona da equipa. Esta é uma boa zona de petróleo e a empresa tem uma fábrica implantada aqui. Problemas de dinheiro? Isso aqui não existe. Nos últimos anos tem sido feito um investimento forte. O nosso objetivo é lutar pela manutenção e ir o mais longe possível na taça, mas isso pode ser revisto, até porque no ano passado ficámos perto dos lugares da Liga Europa.»

No plantel do Orenburgo há jogadores de 11 nacionalidades. Ricardo Alves dá-se maioritariamente com colegas provenientes da região dos Balcãs: Sérvia, Croácia e Eslovénia, país de Danijel Miskic, com quem jogou no Olimpija Ljubljana.

Frieza de espírito num país gélido

E os russos? «É um povo um pouco frio. Eu chego aqui e cumprimento toda a gente. Eles não: podem chegar e sentar-se sem dizer nada. Eu sou uma pessoa que gosta de comunicar e essa barreira foi um bocado complicada de ultrapassar nos primeiros meses. Os russos não percebem muitas brincadeiras. Às vezes lanças uma piada e eles ficam a olhar para ti [risos]. Estou aqui há um ano e tal e ainda não fui tomar um café com nenhum russo. É um povo diferente, mais resguardado e que não dá muita abertura a quem vem de fora.»

Também na rua, as abordagens numa cidade com cerca de 500 mil habitantes (a população de Lisboa) são escassas. «São poucas as pessoas que se metem connosco na rua. Por um lado é bom, mas por outro também gostamos de sentir o carinho das pessoas. Nós, portugueses, temos uma forma diferente de lidar com as pessoas e de expressar as emoções», conta.

A descrição de Ricardo Alves sobre o povo russo bate certo com a que chega até nós, ocidentais, através de diferentes meios.

Frieza no trato humano e também nas temperaturas. Este sim, o inimigo declarado do nosso interlocutor desde há um ano. Enquanto fala connosco estão entre 5 e 7 graus. «Isto ainda não é bem frio aqui. No ano passado cheguei a apanhar num dia de jogo -21ºC.»

- Perdão?

- Menos 21 graus, mas o jogo acabou por ser cancelado porque não havia condições para jogar. Foi a mais baixa que apanhei.

Paralelamente ao estádio, dotado de piso sintético, o Orenburgo tem um centro de treinos com relva natural e que deixa de ser utilizado por volta desta altura do ano, quando o terreno não resiste às baixas temperaturas.

«Quando começa a fazer mais frio, voltamos ao estádio. Já cheguei a pôr sete ou oito camadas de roupa para treinar. Só mesmo passando por isto é que é possível ter-se uma noção do frio que faz aqui. Na Eslovénia também fazia frio no inverno, mas não era a mesma coisa. O frio na Eslovénia era só aquecimento [risos].»

À esquerda na foto, num dia mais quente do que o habitual

Ricardo aquece-se com roupa, mas há outros métodos de combate eficazes: vodka.

Lançamos o tópico para cima da mesa e o jogador, que está prestes a chegar ao treino da equipa, não contém o riso. «Eles preferem beber vodka a água! Às vezes chego ao treino e cheira mais a vodka do que a qualquer perfume que se possa usar. Eles dizem que é normal: que já foi pior e que antes até os jogadores bebiam vodka antes dos jogos para aquecerem. Mas agora a realidade é outra. Os jogadores não bebem! São outros funcionários», avisa.

Futuro na Rússia e um olhar para o paradigma do FC Porto

Adaptado à nova vida, às idiossincrasias de um povo diferente e titular no Orenburgo, Ricardo Alves vê-se por mais alguns anos na Rússia. «Apesar das saudades e das dificuldades iniciais que tive, tudo foi melhorando. Sinto-me bem aqui, sou feliz e vejo com bons olhos ficar na Rússia mais algum tempo.»

Um regresso a Portugal não está nos planos a curto/médio prazo de Ricardo, que foi internacional nas camadas jovens, esteve presente num Mundial sub-20 (2013) e pertenceu à formação do FC Porto, de onde saiu em 2012 para jogar no Belenenses.

Aos 26 anos, olha para trás e diferencia o paradigma atual dos azuis e brancos daquele que existia no início da década. «Joguei com o João Mário, o Gonçalo Paciência, o André Gomes e o Tozé. É muito bom ver o FC Porto a apostar nos jovens agora. Não falo propriamente por mim, mas havia jogadores da minha geração que tinham muito valor e que podiam acrescentar algo de bom ao clube na altura. Todos tínhamos a ambição de chegar à equipa principal, mas essa ambição não morre, mesmo que tenhamos de seguir outros caminhos. O mundo não acaba ali.»

A mulher e a filha de Ricardo Alves, que está quase a fazer um ano: «Vieram para cá há um mês. Foi difícil estar distante e não estar presente numa fase em que ela evoluía a cada dia que passava, mas agora as coisas estão diferentes»