Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

Buraydah, coração da Arábia Saudita, cidade com cerca de 600 mil habitantes, onde se realiza o maior mercado de camelos do mundo, e que é conhecida como sendo uma das mais conservadoras e fechadas de um país já de si famoso por valores e regras conservadores. É aqui, a mais de 5 mil quilómetros da sua Vila Nova de Gaia natal, que vive Ricardo Machado.

O central de 28 anos, formado nos Dragões Sandinenses, jogou no Nacional, Machico e Marítimo e ajudou à subida do Feirense à I Liga na temporada 2010/2011, tendo depois começado o percurso de emigrante. Primeiro no Brasov, depois no Dínamo de Bucareste, ambos da Roménia. E foi a seguir que se mudou para a Arábia Saudita para representar o Al Taawon.

Buraydah

Ricardo Machado chegou ao país há ano e meio para jogar no Al Taawon, na altura treinado por José Gomes e com uma equipa técnica totalmente composta por portugueses. Mas as diferenças na Arábia Saudita são muitas e o central rapidamente se apercebeu disso, até porque chegou ao país numa altura particular e o choque cultural foi imediato.

«Senti logo no primeiro momento que cheguei. Estavam na altura do Ramadão, e foi uma coisa fora do normal para aquilo a que estava habituado», conta Ricardo Machado ao Maisfutebol.

Durante o mês do Ramadão, os muçulmanos abstêm-se de comer, beber, fumar ou ter relações sexuais desde que o sol nasce até que o sol se põe e, além das cinco orações diárias, fazem uma oração noturna após a refeição que é normalmente feita em família.

Mas mesmo fora do Ramadão, a religião está sempre presente. «A oração é feita cinco vezes ao dia, e interrompe os trabalhos das pessoas, que aproveitam para fazer uma pausa de 30 minutos», explica o jogador.

Jantar de equipa

Questionado sobre o que custou mais na adaptação, e embora admita que o árabe «é uma língua muito complicada de aprender», o clima desértico acabou por ser mais o mais difícil. «Treinar com 55 graus não é fácil, bebíamos água de cinco em cinco minutos para não desidratar. Acabei por me habituar, custou o início, depois o corpo adapta-se».

Aliás, Ricardo Machado diz que já está completamente adaptado à Arábia Saudita. «Sim, já me adaptei ao clima, à cultura e às próprias pessoas que têm pensamentos e personalidades diferentes do que se encontra na Europa».

Treino debaixo de calor intenso

«Tirando a oração, tudo funciona da mesma maneira como nos outros sítios, apesar das limitações que esta cultura impõe», conta.

E as limitações vão desde haver horários definidos onde homens podem frequentar sozinhos determinados estabelecimentos como centros comerciais, a ter cabines individuais no balneário para não tomarem banho nus à frente dos companheiros, até às restrições de vestuário que se aplicam também aos estrangeiros. Os homens não podem usar calções curtos, mas as regras são mais apertadas para as mulheres. Se em algumas cidades do país as mulheres ainda podem andar de cara destapada, em Buraydah têm que se cobrir totalmente.

«A minha família só vem de visita, porque o meu filho mais velho já anda na escola, e então não pode estar sempre comigo, mas no inicio foi estranho porque a minha esposa teve que usar a burca para podermos ir ao shopping ou às compras», conta.

Mulheres têm que estar tapadas

Foi com a família que Ricardo Machado aproveitou para ir visitando um pouco do país. «Viajamos muito para outras cidades, mas não tenho oportunidade de as conhecer verdadeiramente, é passageira a visita. Cheguei a ir com a família a Riade, e conhecer um pouco a capital. Tem sítios históricos e uma cultura da qual gosto», explica.

No que diz respeito ao futebol, as coisas não estão a correr nada mal para o central português. Na época passada fez todos os jogos da Liga e conseguiu um 4.º lugar com o Al Taawon, além de um histórico apuramento para a Liga dos Campeões Asiática. A estreia da equipa nesta Liga aconteceu precisamente esta segunda-feira, frente ao Lokomotiv Tashkent, do Uzebequistão, com Ricardo Machado a titular.

Esta época, o central falhou apenas dois encontros da Liga, tendo feito já 17 jogos e marcado quatro golos, sendo que um deles valeu o apuramento para os oitavos de final da Taça do Rei.

«Está a correr bem, e também à equipa, que é o mais importante. O período de adaptação foi ultrapassado, agora posso dar mais rendimento a equipa», disse o jogador, que garante não estar arrependido de ter decidido ir para a Arábia Saudita. «Estou muito bem aqui, sinto-me acarinhado pelas pessoas do clube e pelos meus colegas, por isso, voltava a vir», assegura.

E os adeptos também dão uma ajuda. «Adoram futebol e são mais animados do que os adeptos portugueses», conta. «Costumam ir ao estádio, e vêm muitas vezes aos treinos. Gostam de tirar selfies com os jogadores, e sou bastante reconhecido aqui».

A chegada

Ricardo Machado assume, sem rodeios, que foi «a questão financeira o principal motivo para ir para a Arábia Saudita. «Estava cá um treinador português, José Gomes, que quis a minha transferência, e dado o bom relacionamento com o meu agente, Jorge Teixeira, tudo se concretizou», conta, frisando que «nunca tinha entrado no país».

Com mais dois anos de contrato, Ricardo Machado não mostra vontade de sair, mesmo depois de José Gomes ter deixado o clube. O curioso é que o novo técnico é romeno e o central pode treinar o idioma que aprendeu quando jogou na Roménia. 

«Por enquanto estou bem aqui, sinto-me bem aqui, sou apoiado, mas no futebol nunca se sabe. Conta muito o momento. Se puder continuar, ótimo, garante.

E diz que não tem receio que o campeonato onde joga lhe tire visibilidade. «Chega uma altura da carreira de um jogador, em que temos noção daquilo que podemos alcançar ou não, e o mais importante não são os clubes onde joguei ou os países onde estive, o mais importante é eu continuar a fazer o que gosto, e que no final da minha carreira futebolística tenha garantido de certa forma estabilidade para a minha família. É um sacrifício grande agora, para um bem maior depois».

Festejos após uma vitória

Ainda assim, o central admite que sente «muita falta de Portugal». E de que sente mais falta? «Obviamente da minha família, e da francesinha», conta, mostrando as raízes do Grande Porto.

Para o futuro, «depois de tantos anos fora», Ricardo Machado diz que «gostava de regressar». «Desfrutar da minha família e Portugal, e se puder continuar ligado à formação no futebol, seria um prazer ajudar outros a conseguirem o seu sonho».