Artigo publicado originalmente a 19 de abril

Os sucessos do Barcelona, da seleção espanhola e do Bayern, nos últimos anos, deixaram a ideia de que o futebol direto era, definitivamente, coisa do passado para as equipas de primeiro plano – quando muito, um recurso de sobrevivência para equipas menos ambiciosas, na luta contra adversários fortes, ou solução desesperada para minutos finais com desvantagem no marcador.

O sucesso do Leicester nesta temporada vem, no entanto, pôr um ponto de interrogação à frente dessa ideia – como o demonstra um estudo divulgado nesta segunda-feira pelo CIES (Centro Internacional de Estudos no Desporto). Um olhar para a distribuição das equipas na tabela sugere que a eventual vitória do Leicester na Premier League - o Tottenham ainda não atirou a toalha - é pouco menos surpreendente do que depararmo-nos com um dinossauro a passear na avenida. Mas, antes da confirmação trazida pelos números do CIES, vale a pena um pouco de perspetiva histórica para enquadrar a questão.

A herança de Charles Reep

No princípio dos anos 50, um analista inglês da Força Aérea (RAF) chamado Charles Reep, começou a conciliar as paixões pelos números e pelo futebol com uma série de artigos de análise estatística, publicados no diário News Chronicle. Influenciado pelas ideias de Herbert Chapman, que à boleia da nova lei do fora de jogo tinha revolucionado o Arsenal e o futebol inglês antes da II Guerra, Reep era um adepto do futebol direto e daquilo a que atualmente se chamam transições rápidas.

Resumidamente, acreditava que quanto mais veloz fosse a aproximação à baliza adversária, maiores as hipóteses de um ataque se transformar em golo. O postulado era simples: nos jogos por si analisados, a esmagadora maioria dos golos nascia de ações coletivas com três passes ou menos. Logo, concluía, as ações elaboradas e as trocas de passes demoradas seriam pouco eficazes – e representavam um risco maior de perda de bola e ataque rápido do adversário. Imaginem um anti Tiki-Taka – a rejeição radical da posse e da circulação como fator de eficácia – e terão algo parecido com a seleção norueguesa dos anos 90, o sonho de Reep tornado realidade.

O analista era suficientemente convincente no que escrevia para ser contratado, em 1951, como conselheiro do Brentford, da II divisão. Sob as suas indicações – passes longos sistemáticos, a partir da zona defensiva, para as corridas de extremos muito rápidos, de preferência sem passagem pelo meio-campo, já que os médios deviam funcionar essencialmente como recuperadores – a equipa, que estava em risco de descer, acabou na primeira metade da tabela e duplicou a média de golos marcados.

O sucesso nessa passagem da teoria à prática levou a que, sustentadas em mais de 15 anos de artigos regulares, as ideias de Reep fizessem escola, tornando-se a base de formação dos jovens treinadores ingleses e – embora com exceções importantes – na doutrina dominante do futebol britânico, praticamente até ao início dos anos 90. Por contágio, tornou-se também o padrão de todos os países que escolhiam a Inglaterra como referência futebolística suprema, com destaque para os países nórdicos, como a Noruega e a Suécia.

No excelente livro de Jonathan Wilson, «Inverting the Pyramid», sobre a história da evolução da tática no futebol, há uma ampla descrição deste processo, bem como dos erros de interpretação estatística que estiveram na origem da escola Reep - que Wilson aponta como fator decisivo para o atraso na evolução do futebol britânico, que só a chegada de técnicos estrangeiros veio corrigir.

Bayern, PSG e Barcelona, os reis da posse

Feito este preâmbulo, não deixa de ser curioso constatar que, passados mais de 65 anos sobre as primeiras formulações teóricas de Reep, uma das maiores histórias de sucesso futebolístico das últimas décadas – a caminhada do Leicester na liderança da Premier League – seja uma espécie de desforra das suas ideias, diante de um conjunto de equipas alimentadas com muito mais milhões, mais estrelas e mais sofisticação tática do que a equipa de Claudio Ranieri.

Como já tem sido apontado com frequência (por exemplo, aqui e aqui) o Leicester representa, a vários níveis, um sucesso tardio de um estilo que parecia definitivamente superado pelos modelos triunfantes de Barcelona e Bayern, derivados de Rinus Michels, Johan Cruijff e Guardiola – apesar de alguns antídotos eficazes, como o Inter de Mourinho, ou o At. Madrid de Simeone.

E essa é também a conclusão de um estudo efetuado pelo CIES que, passando em revista as cinco principais Ligas europeias, aponta a equipa de Ranieri como uma das que mais recorrem ao passe longo e ao jogo direto. Segundo os números do estudo, nenhuma outra equipa em Inglaterra usa tanto os passes longos: são 7% do total de passes, um valor que, nos 98 clubes estudados, só é ultrapassado por duas equipas alemãs do meio da tabela, o Darmstadt (com 10,7%) e o Ingolstadt (7,8%).

Como curiosidade, refira-se que o Leicester é de tal forma exceção à regra que, no extremo oposto da tabela, de acordo com os dados do CIES, surgem precisamente os líderes dos restantes quatro campeonatos: Bayern e PSG (1,1% de passes longos), Barcelona (1,4%) e Juventus (1,6%, tal como Nápoles e Dortmund) são as equipas que menos vezes recorrem a esse tipo de solução, optam pela posse e circulação em passes curtos ou de média distância.

Aliás, outro indicador de que os passes longos estão claramente em desuso entre as principais equipas europeias, Leicester à parte, é o facto de nenhum dos semifinalistas da Liga dos Campeões utilizar esse recurso em mais de 3% dos casos. Atrás do já citado Bayern, líder europeu na escola de circulação e posse, vêm Real Madrid (2%), Manchester City (2,4%) e At. Madrid (2,9%).

Equipa Passes longos
1-Darmstadt (Ale) 10,7%
2-Ingolstadt (Ale) 7,8%
3-Leicester (Ing) 6,9%
(…) (…)
19-Hertha (Ale) 5,5%
(…) (…)
65-Mónaco (Fra) 3,6%
71- Man. United (Ing) 3,3%
74- Tottenham (Ing), Arsenal (Ing) 3,1%
77- Chelsea (Ing) 3,0%
82- At. Madrid (Esp)  2,9%
83- Liverpool (Ing) 2,6%
84- Man. City (Ing) 2,4%
90- Real Madrid (Esp) 2,1%
92- Fiorentina (Ita)  1,8%
93-Nápoles, Juventus (Ita), Dortmund (Ale) 1,6%
96- Barcelona (Esp) 1,4%
97- PSG (Fra) e Bayern (Alem) 1,1%

Fonte: CIES (football-observatory.com)