Em 2008 a redação do Maisfutebol, em parceria com o cartoonista Ricardo Galvão, publicou na Prime Books o livro «Doze Euros no Bolso», que passava em revista, de forma bem-humorada, os momentos mais marcantes da história dos Campeonatos da Europa. São alguns desses textos, adaptados e atualizados, que recuperamos agora, para intervalar a atualidade do Euro 2016 com as memórias que ajudam a fazer a lenda da segunda maior competição internacional de seleções.

A final do Euro-88, entre URSS e Holanda, foi uma consagração de generais e um duelo de carrancas. À entrada para o estádio Olímpico de Munique, as poses austeras de Rinus Michels e Valery Lobanovsky não deixavam dúvidas sobre quem mandava naquelas duas magníficas seleções. O futebol total de 1974 tinha, nesse Europeu, duas versões revistas e atualizadas. Mais exuberante a russa, mais paciente a holandesa, ambas igualmente sedutoras.

A URSS fora, até aí, a maior sensação da prova. Treze dias antes, no primeiro jogo, frente à mesma Holanda com quem agora decidia o título, um golaço de Rats tinha sido tradução escassa para tanta superioridade soviética.

Tão clara que, nos jogos seguintes o sisudo Rinus Michels teve de reinventar a sua Holanda. Ajudado pela explosão do fenómeno Van Basten, suplente nesse primeiro jogo, o «Velho General» recuou as linhas, abdicou da pressão adiantada e dos extremos e viu a laranja ganhar sumo e personalidade de jogo para jogo.

Quanto à URSS, faltavam adjetivos para aquele vendaval de futebol ofensivo. Lobanovsky acumulava as funções de selecionador com as de técnico do Dínamo Kiev, um dos colossos europeus. O homem a quem nunca se vislumbrou a sobre de um srriso pegava no seu Dínamo, acrescentava-lhe o fantástico Dassaev na baliza e o líbero Khidiatulin e, agitando os ingredientes com uma preparação física implacável e um rigor tático obsessivo, tinha uma seleção que jogava de olhos fechados e a um ritmo supersónico.

A vitória sobre uma excelente Itália (2-0), na meia-final, fazia com que aquela URSS, adiantada no tempo, entrasse em Munique como óbvia favorita. Mas quando Van Basten, com a certeza dos génios, matou essa final com o golo mais perfeito de todos os Europeus, Rinus Michels saltou do banco e deixou, finalmente, que o rosto se lhe abrisse num sorriso de criança maravilhada. Catorze anos depois de a sua «laranja mecânica» ter tropeçado no último degrau para a glória, naquele mesmo estádio, o «General» holandês acertava contas coma História, provando que nunca é tarde para se ter uma infância feliz.

O teorema de Van Basten

Três jogadores, sete toques na bola, dez segundos de perfeição. O golo mais bonito de todos os europeus aconteceu em Munique, no 54º minuto da final de 1988. A Holanda vencia a URSS por 1-0. Ruud Gullit, o melhor jogador com cabeleira rasta em toda a história do futebol, tinha marcado de cabeça na primeira parte, a passe de Van Basten, também de cabeça. Os holandeses, num crescendo de confiança ao longo da prova, controlavam o jogo, cedendo a iniciativa aos homens de Lobanovsky.

De súbito, o defesa Van Tiggelen intercetou um passe a meio-campo e avançou, decidido, em território soviético, com cinco toques de pé direito. Na esquerda, Arnold Muhren, que aos 37 anos era o ponto de ligação com o glorioso Ajax dos anos 70, converteu o passe de Van Tiggelen numa parábola larguíssima, que percorreu quase 50 metros pelo ar, rumo ao outro lado do campo, no limite lateral direito da grande área. Um cruzamento com demasiada força para qualquer outro avançado. Mas não para Marco Van Basten.

Até aí o ponta de lança da Holanda acompanhara o lance com uma corrida descontraída, vagamente ensonada. Quando viu a bola sair do pé esquerdo de Muhren percebeu que ela passaria por cima de Gullit, na marca de penalti. Descaindo para a direita foi acertando os passos até chegar ao ponto preciso onde a bola ia aterrar, no enfiamento da linha de pequena área.

O que se seguiu foi simultaneamente um milagre de precisão, uma impossibilidade geométrica e uma explosão de génio. Com ângulo mínimo, Van Basten fez o gesto perfeito, o mais simples e mais improvável. Sem a deixar cair, com rotação perfeita de pernas e tronco, o seu pé direito transformou a bola num daqueles mísseis térmicos de trajetória variável: subiu para evitar a mão direita de Dassaev, desceu logo a seguir, desviando-se da trave e esmagando-se contra a rede, com toda a violência das coisas inevitáveis. O movimento do avançado holandês, congelado no tempo, transformou-se num ícone do futebol europeu. Como Maradona à Inglaterra, dois anos antes, Van Basten tinha criado ali uma obra-prima. O golo dos golos em Europeus, perante o qual todos os outros ainda hoje são avaliados.