Em 2008 a redação do Maisfutebol, em parceria com o cartoonista Ricardo Galvão, publicou na Prime Books o livro «Doze Euros no Bolso», que passava em revista, de forma bem-humorada, os momentos mais marcantes da história dos Campeonatos da Europa. São alguns desses textos, adaptados e atualizados, que recuperamos agora, para intervalar a atualidade do Euro 2016 com as memórias que ajudam a fazer a lenda da segunda maior competição internacional de seleções.

Casar no prolongamento (Inglaterra 1996)

Em 1996 os adeptos checos não alimentavam grandes expectativas. Nem os próprios jogadores, aliás. Contando com a provável eliminação ao fim de três jogos, o avançado Vladimir Smicer tinha o casamento marcado para 21 de junho, dois dias após o fim da primeira fase.

A inesperada vitória sobre a Itália deixou os checos no rumo dos quartos de final. Faltava-lhes um empate coma Rússia. Smicer entrou na segunda parte e, quando os russos passaram para a frente, a cinco minutos do fim, o avançado começou a pensar na cerimónia que o aguardava em Praga.

Jogavam-se os descontos quando um passe longo de Hornak deixou Smicer na cara de Cherchesov. Golo, 3-3, República Checa apurada no último lance, casamento adiado.

Nos balneários, a piada foi repetida até a exaustão: «As coisas que tu fazes para não te casares!» Mas, telefonando para a noiva, Pavlina, Smicer ficou aliviado: o presidente da Câmara de Praga tinha disponibilizado o salão nobre do município para nova cerimónia, uma semana depois da data prevista.

Data escolhida: 28 de junho, dois dias antes da final. Nem o mais otimista dos adeptos esperava que os checos levassem a aventura até tão longe.

Mas foi exatamente isso que aconteceu. Primeiro, foi Portugal a cair em Birmingham, com o chapéu de Poborsky. Depois, em Manchester, a França foi derrotada nos penáltis, apesar de Pavlina ter visto o jogo na TV segurando uma bandeira francesa.

Nada feito: com a ida a Wembley, o casamento estava outra vez em risco. Smicer já não sabia o que dizer à noiva, mas não podia pôr em causa o sonho de todo um país. Valeu a intervenção do selecionador, Dusan Uhrin: Smicer saiu do estágio na sexta de manhã, voando para Praga, casou-se a meio da tarde e voltou à concentração a seguir ao jantar.

No domingo, esteve em campo na derrota com a Alemanha. Ainda hoje há adeptos a garantir que se o enlace tivesse sido novamente adiado a República Checa seria campeã.

A dúvida será o que ficará na história. O acerto com outra realidade não mais será possível. A história de Smicer será a que já ficou e todo o resto não passará do «se...».

Bastian Schweinsteiger, à boa maneira alemã, não está para «ses». A disciplina germânica é amiga da previsão, do não deixar para ver depois como é. Assim como no futebol, os tetracampeões do mundo em título e tricampeões europeus são sempre candidatos a ganhar qualquer competição em que entrem.

Somando aqueles 1+1, o resultado é que Schweinsteiger (e Ana Ivanovic) não esteve (estiveram) para passar pelo que passou Smicer.

O futebolista internacional alemão e a tenista sérvia estão noivos e chegaram a ter o casamento marcado para 4 de junho. A bem da preparação do médio germªanico, a união foi adiada. Agora, ficou a saber-se que, segundo o «L’Equipe», o casamento ficou marcado para 12 de julho.

Fazer o quê? A Alemanha ainda neste domingo «despachou» a Eslováquia dos oitavos de final do Euro 2016, com Schweinsteiger utilizado (como se vê na primeira fotografia do alemão).

O próximo adversário da seleção campeã mundial sairá do Itália-Espanha desta seguna-feira. O embate será, já de certeza, muito difícil. Mas os alemães nunca entrarão em campo com menos de 50% de hipótese de estarem nas meias-finais da primeira semana de julho.

E como têm os olhos na final do dia 10, lá está. Nada fica ao acaso para um alemão. Schweinsteiger tem casamento marcado para dia 12. O que também dá jeito à noiva, pois Ana Ivanovic – mesmo não sendo proporcionalmente favorita a vencer em Wimbledon – já acautelou também a data da final do torneio inglês de ténis, no mesmo dia da do Euro 2016.

Seja qual for o desfecho do Campeonato da Europa, o jogador alemão já garantiu que não precisará de sonhar com o reescrever da história, pois, como Smicer sabe há 20 anos, há coisas que não voltam atrás.

Se bem que há outras que sim, que até voltam. Algumas em que as decisões não têm a última palavra e em que, por exemplo, a evolução tecnológica pode determinar outra ordem para as coisas.

Ajeitar a história (Espanha 1964)

As imagens não mentem, mas às vezes não mostram bem aquilo que parece. Veja-se o golo de Marcelino. O resumo que perdurou até hoje mostra o número 7 da Espanha a cruzar, depois um salto, a seguir o cabeceamento do avançado e Iachine, sem reação, a ver a bola entrar para o golo que decidiu o Europeu de 1964.

Pois bem, não foi exatamente assim. O número 7 da Espanha era Amâncio e quem cruzou, na verdade, foi Pereda. O filme foi manipulado e o logro só foi admitido 44 anos depois. Explicou o responsável pela montagem do resumo para o No-Do, o noticiário do regime que passava nos cinemas, que as imagens originais estavam más e, na falta do cruzamento de Pereda, colou-se ao golo de Marcelino um plano de outro momento.

Assim se reescreveu a jogada que deu à Espanha o único título internacional da sua história. Que Amâncio fosse jogador do Real Madrid e Pereda do Barcelona é mais um dado para apimentar essa verdade deturpada contada ao país sob ditadura.

O golo de Marcelino desencadeou de resto uma explosão de alegria no país e um suspiro de alívio de Franco. Quatro anos antes tinha impedido a seleção de jogar a qualificação para o Europeu na URSS, evitando a proximidade do regime comunista, mas desta vez foi obrigado a deixar entrar a seleção soviética, para poder receber a fase final de um Europeu. E os campeões em título chegaram mesmo ao jogo decisivo.

Houve dúvidas até perto da hora sobre como iriam as autoridades lidar com o embaraço. Mas Franco foi para a tribuna no Estádio Santiago Bernabéu e o protocolo cumpriu-se: tocou o hino da URSS, a bandeira foi hasteada. Muitos espanhóis recordam essa como a primeira vez que viram a bandeira da foice e do martelo.

Os anfitriões, que tinham em Luis Suárez a sua grande estrela, sofreram para chegar à final, depois de um prolongamento. Na decisão, Pereda colocou a Espanha na frente, Jusainov empatou logo depois. O jogo avançava sem mais novidades, até sete minutos do fim. Cruzamento de Pereda, golo de Marcelino. Assim é que é.

No primeiro vídeo é fácil perceber – especialmente conhecida a verdade – a truncagem das imagens. Até porque, na celebração do golo, vê-se Pereda (o nº8 da Espanha) a vir do canto direito para festejar depois de ter cruzado.

No segundo vídeo, que se segue, já se vê, por outro ângulo, o nº8 espanhol a fazer o cruzamento para o golo de Marcelino. Assim é que foi.