Quais são os princípios de jogo do treinador Daniel Ramos? O que espera o treinador da abordagem do Santa Clara a cada pqartida? Sem tabus, sem floreados e sem vontade de esconder o que quer que seja, Daniel Ramos abre na entrevista ao Maisfutebol o seu bloco de notas e quase tudo o que tem lá escrito. 

Uma lição dada por um dos bons treinadores do campeonato nacional, que até escolhe o melhor e o pior jogo da época e recorda os dias em que levou o Trofense à II Liga a jogar no extinto 4x4x2 losango. Tudo a propósito da nova 'moda' que se instalou nas equipas do campeonato português: o 3x4x3 que até entregou o Sporting ao primeiro lugar.  

PARTE II: «Não me vou enganar, o Morita tem um futuro brilhante»

PARTE I: «Vivo obcecado por ser melhor treinador de futebol»

PARTE IV: «Comecei a jogar nos seniores com 13 anos»

Maisfutebol – O Santa Clara é uma equipa muito organizada e que muda pouco a forma de jogar. O Daniel valoriza mais a ideia-base ou a estratégia pontual?
Daniel Ramos – Se nós defendemos uma ideia e uma forma de atuar, acho que nos devemos manter fiéis a ela. Eu tive a oportunidade de chegar ao Santa Clara e de montar logo no início essa ideia. Isso é a base para tudo o que fazemos. Temos uma ideia para o jogo ofensivo e uma ideia para o processo defensivo. Esse conjunto de comportamentos é aplicado na esmagadora maioria dos nossos jogos. Depois, há nuances – mais ou menos notórias – que podem ser introduzidas. Nomeadamente nos jogos contra os clubes mais fortes. Mas o que eu defendo é isto: quanto mais mudamos contra essas equipas, mais jogamos contra nós. Tenho-me apercebido disso ao longo dos anos. Tem de haver uma matriz orientadora, para que o nosso jogo não seja descaracterizado e isso cause desconforto aos atletas. Não facilitamos nada, mesmo a ganhar aumentamos a exigência. Não é por ganhar uns jogos que já podemos beber duas cervejas e comer mais uns bolos. Não é por aí que chegaremos ao sucesso. Sem rigor, é mais fácil perder e mais fácil entrar num ciclo negativo. E isso é uma bola de neve.

MF – Mas dentro do mesmo jogo pode haver momentos muito diferentes.
DR – Claro que sim. É a isso que eu chamo ‘movimentar o bloco’. Subir o bloco, baixar o bloco, condicionar um dos corredores ao adversário, reforçar esse lado se necessário for. Podemos explorar mais um dos lados no ataque, se isso me parecer viável. Mas o essencial é não descaracterizar aquilo que treinamos desde o início da época. Defendo a manutenção da ideia-base o mais possível, com pequenas exceções. Mas, claro, por vezes sinto que a equipa pode beneficiar mais no ataque à profundidade e noutro que podemos ser mais perigosos a jogar entre linhas. Tenho de ser inteligente e perceber de que forma posso tirar o melhor proveito dos meus jogadores.

MF – O 3x4x3 parece ser a disposição tática ‘da moda’. É uma novidade na liga portuguesa, pelo menos no número de equipas que a utiliza. Como explica o Daniel esta aposta, depois de tantos anos de domínio com o 4x3x3 ou o 4x4x2?
DR – São momentos. Quando eu jogava apanhei treinadores que não abdicavam do 5x3x2, com três centrais grandões, dois avançados grandões, de muita bola parada e um futebol direto. Depois estive em equipas de 4x3x3 ou 4x4x2 e com um futebol mais pausado, mais em passe curto. Nos anos 80 e 90 o futebol não ia muito além disto. Depois o FC Porto campeão da Europa em 2004 mudou de 4x3x3 para um 4x4x2 losango. Foi revolucionário.

MF – Esse losango desapareceu quase completamente nos últimos anos.
DR – É verdade. No Trofense, em 2005/06, subimos à II Liga a jogar em 4x4x2 losango. Lembro-me bem disso porque não era fácil dominar esses losangos, tive muitas dúvidas. Dinâmicas, procedimentos defensivos, foi um desafio, era mais complexo do que o 4x3x3. Parece-me que agora está a acontecer o mesmo com o 3x4x3 (ou 3x5x2), é uma nova fase. Mas o sucesso não está diretamente ligado ao sistema tático escolhido. Acredito mais nisto: o que somos capazes de fazer com e sem bola, o que somos capazes de impedir o adversário de fazer. Impor a nossa ideia e contrariar a adversária, independentemente da nossa estrutura. Posso dar o exemplo do Santa Clara.

MF – Vamos a isso.
DR – No Santa Clara trabalhamos duas colocações táticas defensivas, mais duas alternativas; no processo ofensivo temos uma ideia muito clara, com uma pequena nuance (um ala mais ou menos ‘baixo’, dois ou três na frente). Às vezes até é um bocadinho difícil explicar como joga o Santa Clara. É verdade, mas percebemos o que queremos e isso é que interessa. Temos de perceber a nossa dinâmica e retirar o melhor dela. E depois é saber como é possível contrariar uma equipa que ataca em 4x3x3 ou 3x4x3. Temos a nossa dinâmica ofensiva e na perda de bola temos de reagir com organização. E a partir daí, refazer a nossa organização defensiva. Nós construímos com três, muitas vezes pelo lateral esquerdo. Fizemos um ou outro jogo com três centrais, mas normalmente temos dois centrais e o lateral esquerdo nessa saída a três. A partir daí temos um conjunto de dinâmicas predefinidas que têm de surgir. Na perda de bola é urgente perceber logo como está o adversário. Na pressão é a mesma coisa. Mais horizontal ou mais vertical? Qual o lado a que damos mais preferência? Isso tem a ver com a preparação do jogo e com as tais nuances que pontualmente são introduzidas.

MF – Na sua ideia de jogo é importante ter um guarda-redes e defesas que se sintam confortáveis com a bola?
DR – É obrigatório, sim. Temos a felicidade de ter o Marco e defesas que sabem o que fazer e isso dá-nos segurança na construção em zonas baixas. Sentimo-nos confortáveis nesse momento, mas já tivemos dissabores. Por vezes arriscámos em excesso, como no jogo contra o V. Guimarães aqui em casa [0-4]. Faz parte do processo, no saber o que fazer e na confiança que há para fazê-lo. O Morita veio trazer-nos muita qualidade e esclarecimento para a posição-seis, pode dar-nos outra segurança na nossa saída curta. Se não o tivéssemos, se calhar saltaríamos essa primeira fase e tentaríamos jogar mais à frente, o que também seria válido.

MF – Qual foi o melhor e o pior jogo do Santa Clara esta época?
DR – No 0-4 contra o Vitória até jogámos, tivemos bons momentos, mas o Vitória foi muito eficaz e puniu as nossas perdas de bola. Arriscámos num relvado que não estava bom e corremos riscos desnecessários. Por outro lado, já tivemos momentos de grande qualidade, mas em Vila do Conde [vitória por 2-1] tivemos uma exibição de grande consistência. Fomos premiados na parte final. Podemos ser consistentes durante mais tempo. Dificilmente o adversário é superior ao Santa Clara durante muitos minutos do jogo. Temos conseguido controlar grandes partes dos jogos e tido bons momentos.

MF – A segunda parte contra o Benfica, por exemplo, foi ótima.
DR – A segunda contra o FC Porto também foi. Temos capacidade para mandar em jogos, mesmo contra os grandes. Já mostrámos isso nesses dois jogos. Se o fizemos nessas segundas partes, podemos fazê-lo durante 60/70 minutos. Esse é o desafio para a nossa equipa, para sermos melhores. Vamos à procura disso, impor mais tempo o nosso jogo.

MF – O que tem distinguido o Paços e o V. Guimarães do Santa Clara, além da diferença pontual?
DR – Tivemos momentos em que nos podíamos ter aproximado e ficado mais perto do Paços e do Vitória. Em Tondela perdemos e podíamos ter feito pontos, claramente. O Paços tem vivido da sua consistência. Um dos nossos melhores jogos foi na Mata Real, precisamente. Perdemos duas grandes oportunidades, ainda chegámos ao 1-1 e depois levámos o 2-1. Tivemos alguns jogos assim, jogos que nos poderiam deixar agora praticamente lado a lado com o Paços e o Vitória. Olhando para a qualidade das exibições dessas equipas, que é ótima, acho que o Santa Clara não fica atrás, mas tem menos pontos e essa é a verdade [menos seis do que o Vitória e menos dez do que o Paços].