Uma viagem às propostas de jogo do arquiteto Andrea Pirlo. O Maisfutebol teve acesso à tese final de treinador da Juventus no curso UEFA Pro e, com a ajuda de Fabiano Flora, o mais italiano dos técnicos portugueses, ajuda os nossos leitores a descodificá-la. 

'O calcio' que eu quero, assim se chama o documento final desta licenciatura de Pirlo. Sem surpresa, até por aquilo que foi o futebol deste antigo médio, a ideia de jogo é baseada «num futebol positivo de posse», um futebol de ataque.  

«Quero jogar um futebol total e coletivo, com os onze jogadores ativos. Seja em fase ofensiva, seja em fase defensiva. Quero manipular espaços e tempos, sempre com a ambição de comandar o jogo em ambas as fases», escreve Andrea Pirlo num dos primeiros capítulos.

«O Barcelona de Johan Cruijff e de Guardiola, o Ajax de Louis Van Gaal, o Milan de Carlo Ancelotti e a Juventus de Antonio Conte», são as equipas-referência de Pirlo e aquelas que o novo treinador da Vecchia Signora, de apenas 41 anos, procurará replicar.

Para esse efeito, Pirlo define como «prioridade absoluta» a aquisição de três macro-princípios: 

1. máxima e dupla amplitude (ampiezza)
2. procura constante do espaço entre-linhas (rifinitura)
3. ataque à profundidade (profondita)

Imagem retirada da tese de Andrea Pirlo

Para o allenatore da Juve, as zonas sombreadas na imagem devem estar «sempre preenchidas» e «pouco importa» o(s) atleta(s) mobilizado(s) para essa função.

«O objetivo será ocupar constantemente estas zonas específicas para poder 'stressar' ao máximo a linha defensiva adversária», defende o treinador italiano.

«A ideia principal de Andrea Pirlo», completa Fabiano Flora, «passa por atacar bem para defender melhor, isto é, atacar sempre com muitos jogadores próximos do centro de jogo». «Isso permite agredir rapidamente o adversário numa situação de perda da posse de bola ou, pelo menos, retardar a sua transição, para que dessa forma possam organizar-se em fase defensiva de forma eficaz».

Num tempo em que executores da crítica e discípulos do treino definem o passe curto como ferramenta única para aproximar dois pontos, Andrea Pirlo mostra uma visão mais flexível e inclui nos seus pilares filosóficos «o ataque à profundidade» através de «desmarcações rápidas».  

«Isto deve estar em evidência, sobretudo, quando a equipa se encontra em espaços já próximos da baliza adversária. As desmarcações [para a profundidade] são realizadas pelo ponta de lança, extremos e médios centro, com o objetivo de afetar o foco mental da linha defensiva adversária e ao mesmo tempo fazer com que esta recue no terreno de jogo, libertando dessa forma mais espaço entre linhas.»   

«A variabilidade tática permitirá atacar sempre com pelo menos cinco jogadores»

Em fase ofensiva, Andrea Pirlo organizará a Juventus num de dois sistemas: 3x2x5 ou 2x3x5. O técnico procurará movimentos que nunca serão «fixos ou repetitivos» e terá o cuidado de adaptá-los «às características dos jogadores e ao próprio contexto». 

«Por vezes, a rotação tática passará por colocar o lateral em máxima amplitude, com o extremo numa zona interior, fazendo baixar um médio para realizar a tarefa de construção», pode ler-se. «De uma outra forma, a colocação dos extremos bem abertos em máxima amplitude, com os médios centro em zonas mais avançadas, aproveitando o espaço entre linhas, com os laterais por dentro colocados no setor intermédio».

Nesta segunda hipótese, indica Fabiano Flora, Andrea Pirlo pede ao médio mais recuado para baixar à zona dos centrais e assumir a primeira fase de construção. «Portanto, independentemente do sistema adotado, será sim importante ocupar determinadas zonas específicas para que a circulação tática seja o mais fluída possível», conclui o treinador português. 

Mais à frente, Andrea Pirlo garante não ser obcecado por um determinado sistema ou tática, sentindo-se livre para criar e conceder liberdade também aos atletas. 

«Em fase ofensiva não iremos apresentar um sistema fixo, mas sim um posicionamento e movimento em campo que respeitem os nossos princípios de jogo. Para mim, o posicionamento do jogador em campo deixou de ser uma posição para ser uma função.»

Assim sendo, esta variabilidade tática permitirá à Juventus - o projeto atual de Andrea Pirlo - atacar a linha adversária «com pelo menos cinco jogadores»: dois extremos e três jogadores em zona central.

«Isto pode e deve ser feito muitas vezes com seis ou sete jogadores em simultâneo, considerando que o talento e a criatividade individual se devem exprimir ao máximo, sendo este o principal padrão da Juventus nos últimos 30 metros», aponta Andrea Pirlo. 

«A primeira fase de construção é crucial»

No futebol moderno, a ideia do posicionamento em campo mudou radicalmente, defende Andrea Pirlo. O técnico rejeita a «posição fixa de outrora» e aplaude a «ocupação dinâmica» capaz de se adaptar aos princípios do modelo de jogo do treinador. Fabiano Flora, observador atento de tudo o que diz respeito ao futebol transalpino, concretiza: 

«É a partir desta ideia que a Juventus se organiza, ou seja, atribui primazia às caraterísticas dos próprios jogadores, que serão exaltadas através de tarefas específicas que estes devem realizar, independentemente da posição que ocupam em campo. Sempre com rotações e intercâmbio constante de posições, possibilitando uma posse de bola dinâmica, capaz de desorganizar o adversário e fazendo com que o seu posicionamento inicial seja alterado.»

Para que esta perturbação das linhas adversárias seja conseguida, Andrea Pirlo aponta como «crucial» a primeira fase de construção. 

«O objetivo da Juventus passa por ultrapassar o pressing do adversário, através de um ou dois vértices no setor intermédio (dependendo do adversário e da estratégia a adotar), procurando a ideologia do terceiro homem e fazendo com que um dos dois possa ficar livre de posição, o que nos leva para a importância do conceito de bola descoberta», refere Andrea Pirlo. 

Fabiano Flora reage e diz ser «interessante» verificar que muitos destes princípios passam por aquilo que Pirlo realizava dentro de campo enquanto médio de elevadíssima qualidade.

Ainda no processo ofensivo, o treinador da Juventus quer «duas velocidades» distintas. «Numa zona mais recuada, apresenta uma atitude de espera e de preparação; numa zona mais avançada, adota um jogo mais rápido e direto, através de passes-chave para libertar um jogador entre linhas», aponta Fabiano Flora. 

Há mais uma passagem interessante na dissertação de Pirlo. Uma lição. «Se o jogador em posse de bola está livre e com bola descoberta, os colegas devem afastar-se e desmarcar-se em profundidade. Se, por sua vez, o jogador em posse de bola se encontra sob pressão, com bola coberta, os colegas devem aproximar-se, oferecendo linhas de passe que possibilitem a manutenção da posse de bola.» 

Forte reação à perda de bola é fundamental, aponta Andrea Pirlo

Para tudo estar completo, já perceberam, falta falar dos processos defensivos. Nesse pontos, Andrea Pirlo diz que «a organização defensiva» passa, acima de tudo, por «recuperar a bola em zonas altas» e capazes de originar perigo constante ao adversário.

«É essencial uma forte reação à perda, no sentido de reconquistar rapidamente a posse, com coberturas preventivas realizadas com a máxima inteligência e boa leitura tática. Sempre que possível, deve fazer-se isso no meio campo do adversário e identificar uma fase defensiva em progressão, com uma atitude agressiva de enorme coragem.»   

Do ponto de vista teórico, Andrea Pirlo está aprovado. Como será capaz de passar a mensagem ao balneário da Juventus e executar o seu primado dentro do relvado? Ainda ninguém sabe responder.

NOTA: Fabiano Flora tem 35 anos, é treinador e trabalhou de 2008 a 2013 em Itália, na formação da Lazio e da Juventus.