A época extraordinária do Paços de Ferreira coloca os «castores» no quinto lugar da Liga. Na passada jornada, a equipa recebeu e venceu o Sp. Braga com uma autoridade rara e voltou a surpreender o país desportivo. Ao leme deste barco está um treinador cada vez mais competente, que se destaca pelas ideias claras e desassombradas, um homem sem preconceitos e sem tabus. 

Pepa, o treinador do melhor Paços dos últimos anos, em entrevista exclusiva ao Maisfutebol. As ideias, o olhar sobre o clube e a profissão, o estilo de jogo e as convicções muito vincadas. Uma conversa de rara abertura com um dos mais entusiasmantes nomes dos bancos dos clubes portugueses. 
 

LEIA TAMBÉM: 

Parte II: «Fiquei sem nada na conta, só o boneco do Multibanco a dizer adeus»

Parte III: «Tive um tumor no pé e fui operado nove vezes»

Parte IV: «Não ia às aulas para andar de Metro a conhecer Lisboa»

Parte V: O raio-x aos jogadores do Paços de Ferreira

Maisfutebol – No final da vitória sobre o Sp. Braga disse que a sua equipa tinha «roçado a perfeição». O que é a perfeição para o treinador Pepa?
Pepa – Bem, quando os jogadores dentro de campo conseguem interpretar as minhas ideias e explorar aquilo que identificamos como algo que nos pode ajudar a ganhar o jogo, só posso sentir uma satisfação enorme. Mas acho que a perfeição não existe no futebol. Na liga portuguesa a competitividade é dura. O trabalho que se faz antes de começar o jogo é fundamental. Procurámos sempre saber onde e como podemos castigar o adversário e também temos de perceber a melhor forma para nos salvaguardarmos. Quais os caminhos a proteger? Que zonas tapar com mais cuidado? Preparar tudo isto ao detalhe e depois no jogo sentir que a equipa percebeu e executou tudo o que estava planeado é gratificante. Contra o Sp. Braga sentimos isso sobretudo na segunda parte.

MF – A primeira parte não foi tão boa?
P – Estávamos a tapar com competência os caminhos do Sp. Braga, mas ao intervalo disse à equipa que isso não nos chegava para ganhar o jogo. Podia chegar para não perder, mas o Paços nunca joga só para não perder. Sentimos necessidade de adicionar mais coisas ao nosso futebol. E conseguimos. Mas isto não é matemático, jogar bem nem sempre dá para ganhar. Dou dois exemplos: em Guimarães e na Luz fizemos exibições tremendas e acabámos sem pontos.

MF – E o contrário já vos aconteceu este ano? Jogar menos bem e ganhar.
P – Já, já aconteceu. Contra o Santa Clara, em casa [2-1 para o Paços]. O jogo foi atípico, teve poucos remates, pouca qualidade de jogo. Quando isso acontece temos de compensar com a concentração e o sacrifício. O jogo em casa do Belenenses SAD também foi muito assim [vitória por 2-0]. O campo estava impraticável, era difícil jogar e os nossos médios já não baixavam para pedir a bola na fase de construção. Precisávamos deles para estar em superioridade numérica no meio e isso obrigou-nos a fazer um jogo mais direto do que o normal. Teve de ser. Percebemos também quando era necessário baixar um pouco mais as linhas e nesse aspeto a reação foi muito positiva. Dá-me um gozo enorme treinar este grupo de trabalho.

MF – O Pepa gosta de sair a jogar em passe curto, mas não é obcecado por isso. O Paços é uma equipa que se adapta bem ao que o jogo pede?
P – A estratégia é tão ou mais importante do que a ideia-base. Adoro o futebol apoiado, de toque, de posse, mas acima de tudo está outra coisa. Qual é o objetivo do futebol quando temos a bola? Marcar golo. Só isso. Se eu posso chegar à baliza em seis segundos, não vou chegar em 20 e há muitas formas de lá chegar. De que forma o adversário defende? Nunca vamos abdicar da nossa identidade, mas cada jogo tem uma história. Como é o campo, como está a relva, o que exige aquele oponente? O bloco adversário está mais subido ou mais baixo? Há mais espaço por dentro ou por fora? Há mais espaço na profundidade ou entre linhas? Temos de ter uma variabilidade que nos permita estar preparados para várias situações. Respeito quem pensa de forma diferente, mas parece haver uma cegueira, uma moda estranha. Parece obrigatório bater o pontapé de baliza sempre curto e dar 50 toques na bola para criar alguma coisa.

MF – O primeiro golo do Paços contra o Sp. Braga é, aliás, o oposto disso.
P – Precisamente. O Jordi bate direto no Douglas Tanque, o Tanque segura bem de peito e deixa de frente no Luiz Carlos, o Luiz Carlos joga no Bruno Costa que ataca a profundidade e aproveita a largura entre o central e o lateral, porque o Esgaio estava subido. O Esgaio ainda tenta fechar, o Bruno passa por ele e mete na baliza. Por quantos jogadores a bola passou? Jordi, Tanque, Luiz Carlos e Bruno Costa. Não é preciso dar 50 toques. Se começássemos a tocar para o lado e para trás, o Sp. Braga ficava de frente e pressionava de frente. Mas nós queremos é colocar o adversário desconfortável e a correr para trás. Atacar a profundidade é um momento importantíssimo do jogo. Esticar o jogo não é mandar um chutão para a frente. Isso tem de ser feito com um propósito, temos de saber como fazê-lo.

MF – O Paços tem um ponta-de-lança perfeito para essas ações.
P – Sem dúvida, o Douglas Tanque. Quando temos um avançado assim, que segura tão bem de costas, podemos variar ainda mais o nosso jogo. Temos capacidade para explorar o jogo exterior com a nossa estrutura móvel e também para jogar por dentro. Acho que podíamos jogar um pouco mais por dentro, mas já vamos jogando. O Luiz Carlos, o Bruno Costa e o Eustáquio têm estado muito bem. E, quando a equipa precisa, podemos procurar o nosso ponta-de-lança. Tem características muito específicas. O Tanque sabe servir colegas, atrai os centrais e coloca-nos a jogar dentro do coração da equipa adversária. Isso é importantíssimo. A nossa bola passa a primeira zona de pressão, a segunda linha de pressão e já está nas costas dos médios deles. A partir daí temos de saber definir. Há várias maneiras de agredir a equipa adversária, não sou obcecado por um estilo único.

MF – Qual é o aspeto que mais valoriza no quinto lugar do Paços de Ferreira?
P – Sobre o nosso quinto lugar gostava de dizer uma coisa antes: não me tira o sono, não me enche o peito e sei que as coisas mudam rapidamente. Dito isto, há uma palavra que resume o nosso percurso: sustentabilidade. Não sei se vamos acabar em quinto, sexto ou décimo, não adivinho o futuro. Mas sei que até agora não temos ganhado por acaso, nada tem sido feito à sorte. Não é o golinho a acabar, o golinho da sorte e depois defender até ao fim, nada disso. Nós agarramo-nos ao jogo como se não houvesse amanhã. E somos camaleónicos dentro do próprio jogo. Atacamos e defendemos de forma diferente no mesmo jogo. Isso dá-me muito conforto.

MF – Já consegue dormir bem depois dos jogos ou continua a ter insónias?
P – Depois dos jogos continuo igual. Antes dos jogos durmo sempre bem, sinto que o trabalho está feito. ‘Vamos embora, vamos derretê-los’. Depois é que é difícil. Bebo muito café, tenho muita adrenalina e tensão acumulados, tenho o filme do jogo todo na minha cabeça, penso nos lances todos e o relógio não para. Vai a noite à vida.

MF – O erro incomoda-o?
P – Um dos nossos lemas passa por perdoar a má execução, mas nunca perdoar a falta de atitude. Não podemos deixar por fazer nada. Atitude, entrega, o sentir que se pode dar mais, isso não posso aceitar. Sei reconhecer a derrota, sei dar os parabéns a quem ganha, o futebol passa muito também pelo erro.

MF – Como é a ligação do Pepa com os jogadores?
P – Muito natural, sem capas. Não sinto necessidade de passar a imagem de mau e agressivo. O importante é ser assertivo nos momentos certos. Sei que não poderei ser sempre justo com todos, mas quero que eles saibam que sou coerente no que digo e faço. Sou muito exigente no trabalho e não gosto de exigir algo que não foi trabalhado. ‘Ah, isto já se sabe desde os infantis’. Não, não sou assim. Até posso avançar da quarta classe para o sexto ano, mas a matéria tem de ser dada. Gosto de começar pelo básico e ir subindo. Faço questão que cada jogador saiba a ideia coletiva de jogo e depois a função individual de cada um, em pormenor. O que acontece quando o extremo é batido? Todos têm de saber esta resposta. Isto está tudo interligado, não é natação. Há uma grande relação entre todos.

MF – É um treinador mais emocional ou mais científico?
P – Sou um treinador racional e ponderado. Temos de aproveitar o que a tecnologia nos dá, mas a teoria só vem depois da prática. Precisamos da teoria para crescer e evoluir, sou um treinador equilibrado. A parte científica é fundamental? É. É a mais importante? Não. A parte emocional é importante no futebol? Muito importante, fundamental, se calhar até é o mais importante. O futebol é muito de paixão e emoção, por isso a emoção está no primeiro lugar. Um treinador pode saber muito, mas se não tiver convicção e força na liderança, na comunicação verbal, fica ali sem sal. Os jogadores sentem isso. E o contrário também. Se descurarmos o apoio tecnológico – análise, recuperação – ficaremos ultrapassados.

MF – Quantos elementos tem a sua equipa técnica no Paços de Ferreira?
P – Somos seis pessoas. Partimos muita pedra (risos). Temos grande união, discutimos ideias. Temos pontos de vista distintos e somos muito sólidos. Portanto, sou eu, dois treinadores de campo, um treinador de guarda-redes, um observador/analista e um fisiologista, que faz a ligação com o departamento médico, tem uma função muito específica. Coordena o trabalho de ginásio, o GPS, o trabalho preventivo de lesões. As coisas estão bem definidas e a mim cabe supervisionar, gerir, trocar impressões, operacionalizar e ter a máquina a andar.

MF – Foi importante para si ter ganho primeiro Prémio Vítor Oliveira, de treinador do mês?
P – Só foi importante por ter o nome do Vítor. Não ligo nada a prémios individuais em desportos coletivos, até os acho injustos. Nunca falo de orçamentos, mas os treinadores de FC Porto, Benfica, Sporting e Sp. Braga estão sempre mais perto de ganhar do que os outros. E isso faz deles melhores treinadores? Está errado. Se eu tiver um Ferrari nas mãos, não perco contra um Fiat Punto, um Panda ou um Dois Cavalos. Não posso. Só se me faltar a gasolina, só se tiver um furo e não souber mudar o pneu, só se me enganar no caminho. Por isso é que acho injusto. Treinador do Ano? É sempre um dos grandes. Se tivéssemos 18 Mourinhos em Portugal só um é que era campeão e dois desciam de divisão. Mas é o que é. O Vítor Oliveira dizia-me muito, dizia muito ao Paços, à cidade. Ganhar o primeiro prémio com o nome do mestre, foi motivo de orgulho tremendo e emoção forte.

MF – Este plantel do Paços tem uma confiança cega na sua mensagem?
P – É fundamental que os jogadores sintam confiança na mensagem que lhes é passada. E a mensagem entronca na competência. Os jogadores veem logo se estamos a vender banha da cobra ou se estamos a ajudá-los para atingir resultados juntos. Mais importante do que todos os aspetos desportivos, é a alma e a raça. A equipa não entra em desespero quando não tem bola e isso é essencial. Eu não quero jogar sem bola e até lhes digo muitas vezes: ‘não demos a bola ao adversário, emprestámos por um bocadinho’. E ela voltará aos nossos pés. Quando não a temos, precisamos de defender com um sorriso na cara, um certo cinismo. Para o adversário pensar ‘estes gajos não se desorganizam’. É isso que queremos. E com bola é preciso saber o que fazer com ela.