A forma desembaraçada e imediata com que disseca taticamente o Sporting - o adversário que lhe terá colocado mais problemas - é a mesma com que olha sem problemas para o passado e para as dificuldades que teve como futebolista profissional. Pepa, o treinador do extraordinário Paços de Ferreira 2020/21, em conversa exclusiva com o Maisfutebol.

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Maisfutebol – Os jogos menos conseguidos do Paços terão sido os dois contra o Sporting. Percebeu o que falhou nesses jogos?
Pepa – Percebi, sinceramente. Falei com os jogadores de forma muito aberta depois da derrota em casa [27 de setembro, 0-2] e isso foi o clique para tudo o que de bom surgiu depois. Tivemos qualidade de jogo, mas não fomos agressivos no último terço. Não fizemos um remate à baliza do Sporting e isso é inconcebível, é falta de agressividade ofensiva. Tocámos para trás e para o lado, para trás e para o lado, isso não chega. Perdemos bolas fáceis na fase inicial da construção, não aproveitámos um ponta-de-lança fortíssimo a ter bola, os três médios muito baixos e não é nada disso que queremos, os alas muito pouco em jogo. Faltou-nos mobilidade, agressividade e jogar para a frente. Curiosamente, no jogo a seguir perdemos em Guimarães, mas o que fizemos e jogámos foi da noite para o dia. Cometemos alguns erros, sim, mas a tentar fazer o que trabalhamos. A decisão estava a ser bem tomada, a execução é que não. Quando a decisão é boa, é tudo uma questão de tempo e de coragem. Nesse jogo de Guimarães senti logo uma evolução tremenda.

MF – E na derrota por 3-0 em Alvalade, para a Taça de Portugal?
P – Não serve de desculpa, mas a capacidade física/mental condicionou-nos. Tínhamos perdido na Luz com um golo no último minuto dos descontos, isso mexeu connosco. Parece que nos caiu tudo. Os jogadores são profissionais, mas não são robôs. Há o nosso papel, que passa por recuperar os atletas, mas há também a viagem, o chegar a Paços de Ferreira de madrugada, e isto tudo em cima de um jogo desgastante – porque jogámos olhos nos olhos com o Benfica – e com um jogo em Alvalade quatro dias depois. Quatro dias chegam para recuperar? A fisiologia diz-nos que sim, mas a ciência nem sempre bate certo com o que vimos na prática. Em Alvalade tivemos muitas dificuldades.

MF – Não conseguiram parar o futebol do Sporting.
P – Houve muito mérito do Sporting. Não nos deixou pensar, foi muito pressionante, muito forte na reação à perda e nós não conseguimos descansar com bola. O Sporting fez golos muito bons e nós até estávamos a tentar pressionar alto. O Sporting é terrível a explorar a profundidade, criou-nos grandes problemas. Acima de tudo, senti cansaço físico e mental na minha equipa. Quando não estamos no nosso melhor contra um Sporting tão eficaz, pagamos bem caro. Ao intervalo estava 2-0, fiz duas substituições que tinham de ser feitas, começámos a tentar o 2-1 e sofremos o 3-0. Isso afastou-nos completamente do jogo.

MF – É muito diferente pressionar uma equipa que joga com três defesas, como o Sporting, e uma que joga apenas com dois?
P – Sim, altera muita coisa. Agora há equipas a jogar numa linha de três, mas estamos a adaptar-nos bem a essa dificuldade que nos é imposta. Quando surge algo novo e que é bem trabalhado, como o 3x4x3 do Sporting, é difícil de anular. A grande questão é que esses três centrais fazem com que a bola esteja sempre descoberta, ou seja, sem pressão. Jogam quase de cadeira, como se diz. Nós podemos pressionar esses três, claro, mas ainda há um guarda-redes e duas opções na largura. No caso do Sporting, o Porro e o Nuno Mendes. Eles têm sempre a largura garantida, e nem têm de olhar quando viram o jogo, e os médios também sabem que têm sempre um dos defesas de frente para o jogo e com linha de passe aberta. Depois, com a qualidade e a velocidade dos três homens da frente – Pote, Nuno Santos e Tiago Tomás – essa bola passa quase sempre por cima da nossa primeira linha de pressão e entra neles. E isso é difícil de anular. Mas há três formas possíveis para tentar, pelo menos, contrariar essa forma de jogar.

MF – Pode detalhar essas ideias?
P – Primeira forma: encaixar diretamente neles, como fez o Lask e o Sérgio Conceição agora na Taça da Liga. O Sporting teve dificuldades em ambos os jogos. Não digo que nunca o farei, nunca cuspirei para o ar, mas até agora nunca alterei o sistema das minhas equipas. Atenção, estou a dizer sistema, não é a estratégia. Nunca alterei um sistema tático por causa do adversário. Segunda forma: subir muito o bloco, disparar os alas de fora para dentro e condicionar a entrada da bola no Porro e no Nuno Mendes, para que ela não entre tão ‘limpa’. Mas isso também nos obriga a condicionar os médios. De outra forma a bola deles vai dentro para depois ir para fora. Palhinha-Porro, Palhinha-Mendes. Ao fazer isso temos de ter a nossa linha defensiva muito subida, para que o nosso lateral possa cair no lateral deles e a distância não seja muito grande. Tudo isto tem um senão: a profundidade que fica à mercê de uma bola descoberta e de uma bola nas nossas costas. Temos de jogar com o guarda-redes subido e precisamos de laterais muito rápidos. Temos de pesar bem tudo, os prós e os contras.

MF – E ainda há uma terceira possibilidade?
P – Sim, sim. Terceira forma: abdicamos de pressionar os centrais deles, esperamos por eles até uma determinada zona de pressão, baixamos um bocadinho as linhas – não por receio, mas por estratégia – para retirar a profundidade de que gostam e procuram, controlamos a largura porque temos as linhas muito juntas. Ou seja, somos menos pressionantes na primeira fase de construção do Sporting, mas mais pressionantes a partir de uma zona definida anteriormente. Estas são as três formas que encontro para controlar uma equipa que joga em 3x4x3 como a do Sporting ou a do Belenenses SAD. Destas, admito, nunca recorri à terceira opção, seria sempre o meu plano C.

MF – Poucos sabem disto, mas o Pepa foi futebolista do Paços de Ferreira.
P – Futebolista, quer dizer. Joguei cinco minutos para ser campeão (risos).

MF – Já foi em 2005, quando tinha muitos problemas físicos.
P – Eu fui operado nove vezes. Passei por muitas dificuldades, muitas.

MF – Lembrávamos isso para perguntar se o Paços de Ferreira de 2005 tem alguma coisa a ver com o Paços de 2021.
P – Tem muito a ver. A essência é a mesma, um clube familiar e próximo da equipa técnica. As infraestruturas é que não têm nada a ver. E temos de alimentar o espírito de jogar à Paços, não é só de boca. O que é isso? Isso é alimentado no dia a dia. Dou um exemplo. Hoje estava a chover pedras, o campo cheio de poças, os jogadores entram em campo aos gritos como se fossem para uma arena. Treinaram como se não houvesse amanhã. Vou cheio de alegria e prazer treinar. Acaba o jogo e já estou a pensar ‘quando é que vou falar com os rapazes outra vez’? Sinto-me apaixonado por este grupo de trabalho, é impressionante. Se é para rir, então é palhaçada dos pés à cabeça; se é para trabalhar, então são exemplares. É para analisar o adversário? Vamos embora. É para analisar a nossa equipa? São muito participativos. Os 27 futebolistas são iguais? Não, mas os que não são assim acabam por ir atrás dos melhores exemplos. Já na época passada era assim e por isso é importante a manutenção da estrutura-base dos plantéis.

MF – Em 1999 o Pepa foi campeão da Europa de sub18 e estreou-se com um golo nos seniores do Benfica.
P – Foi um ano fantástico. Marquei logo ao Rio Ave e o golo teve um impacto incrível. E em junho fui campeão da Europa. Esse ano foi perfeito.

MF – Como é que um menino de 18 anos lida com essa fama precoce?
P – No meu caso, mal. Não lidei bem. Os meus pais nunca me faltaram, mas a liberdade/responsabilidade que me quiseram dar não correu bem. Não soube aproveitar a liberdade que eles me deram. Se tivesse sido um bocadinho mais apertado, talvez soubesse ter lidado melhor com o mediatismo. Agora estou a tirar dividendos e não abano. Pode vir o que vier, não abano. Essa fase deixou-me marcas profundas. Correu mal e agora corre bem.

MF – Qual foi a primeira lesão grave que teve?
P – Eu tive uma altura em que cometia alguns excessos e nunca tive uma lesão. Pensava que era o Super-Homem, mas isso mais tarde paga-se. Na Bélgica [Lierse, 2000/01] comecei a ter pubalgia, depois parti o nariz, tive um tumor no pé e depois apareceram os problemas nos joelhos. Foram cinco operações só aos joelhos, nove no total. Não me lembro de andar uma semana sem dores, a partir dessa saída para o Lierse.