Árbitros com câmaras no corpo que gravam o que se passa em campo. É uma experiência lançada pelo futebol inglês nos escalões amadores, para observar a forma como jogadores e árbitros interagem e tentar «melhorar o comportamento e o respeito» para com os juízes. Os árbitros portugueses acompanham a iniciativa com atenção.

O projeto promovido pela Federação inglesa, que se anuncia como «o primeiro do género no mundo» e teve aprovação do International Board, abrange para já uma centena de árbitros em quatro campeonatos de futebol sénior nas regiões de Middlesbrough, Liverpool, Worcester e Essex. «A ideia é dar aos árbitros proteção e segurança, para lhes dar confiança para irem arbitrar, sabendo que qualquer forma de comportamento grave ou incorreto por participantes ou treinadores será capturado pela câmara», diz Dan Meeson, responsável pela arbitragem na FA.

Para Luciano Gonçalves, presidente da Associação Portuguesa de Árbitros (APAF), esta é uma experiência «muito interessante». «Pode ser uma experiência que possa ajudar a mudar alguns comportamentos, internos e externos», afirma ao Maisfutebol, introduzindo aqui um outro ponto de vista: pode funcionar para ambos os lados. «Isto não deve ser só visto como a possibilidade de ser um fator dissuasor para os comportamentos dos jogadores ou treinadores, mas também até dos próprios árbitros. Pode ser uma ferramenta para a própria arbitragem poder perceber que comportamentos levam a gerar outros comportamentos. Vou ficar a acompanhar, naturalmente.»

Em Inglaterra, o teste tem a duração prevista de 18 meses, com juízes que receberam, segundo a FA, «o apoio, educação e treino necessários para usar as câmaras em jogos aprovados» para o efeito. O organismo diz que irá «acompanhar e avaliar o impacto das bodycams no comportamento nas Ligas participantes e, se for bem sucedido», poderá ser alargado a mais campeonatos, sempre de futebol sénior amador, na próxima temporada.

O projeto só arrancou no final de fevereiro e Luciano Gonçalves diz que a APAF vai querer acompanhar a sua evolução. «Vamos tentar perceber como é que eles os vão implementar e depois percebermos também os resultados que são expectáveis», observa, notando que a iniciativa levanta várias questões: «Está muito embrionário ainda. Depois é preciso saber quem faz a análise, quem tem acesso e quem não tem. Mas não deixa de ser um passo interessante.»

O representante dos árbitros portugueses diz que será igualmente útil ver a evolução desta nova ferramenta. «Vamos ver se numa fase inicial se torna dissuasor porque vai estar na cabeça tanto do árbitro como dos atletas, porque é uma novidade. Depois também será interessante perceber se quando estiver mais normalizado os comportamentos se mantêm ou não.»

A FA anunciou ainda que as gravações feitas pelas câmaras incorporadas nos árbitros «podem ser usadas como prova numa audiência disciplinar, se requeridas», embora sem ter dado mais pormenores sobre a forma como tudo se processará. Mas, acrescentam os responsáveis, a iniciativa pretende sobretudo ter um efeito de prevenção.

Como pano de fundo desta medida está a proteção dos árbitros, que continuam a ser alvo de violência um pouco por toda a parte. Em Portugal, a APAF contabilizou 70 agressões a árbitros nas últimas quatro temporadas, 17 só no decorrer da atual temporada. Em dezembro o organismo denunciou vários desses incidentes, que voltaram a repetir-se no início de fevereiro.

«Os números estão idênticos aos outros anos», diz Luciano Gonçalves, notando que esta época está a acontecer um fenómeno que «não se consegue explicar»: «Há fins de semana que são um descalabro, em que temos uma quantidade de agressões surreal. Felizmente, temos outros em que nada acontece.»

Perante um incidente, a resposta imediata é a penalização. «Não sou defensor da penalização», diz Luciano Gonçalves: «Mas enquanto não se conseguir mudar comportamentos, por muito que nos custe, temos de ir penalizando, de forma a que seja dissuasor, comportamentos incorretos e agressivos.»

Por esse lado, Luciano Gonçalves lamenta que em alguns casos tenha havido «a nível desportivo, castigos muito pouco exemplares». «A nível criminal», prossegue, «ainda não temos nenhuma decisão dos casos deste ano, mas em algumas situações que a APCVD inclusivamente já levantou autos de proibição de entrada em recintos desportivos e outras situações.»

Mas para lá da penalização ou de medidas como o policiamento nos estádios há muito a fazer e a experiência piloto em Inglaterra leva precisamente a uma conversa sobre ideias para lidar com um problema que vem de longe. A APAF tem procurado debater formas de lidar com o assunto e é sobre elas que Luciano Gonçalves fala, na lógica de mudança de comportamentos e de prevenção.

«Tentar antecipar e evitar problemas»

«Algo que vamos ter de fazer sempre paralelamente para uma mudança de mentalidades, é ações de sensibilização, junto nomeadamente dos mais novos. É muito importante e isto mais à frente vai-nos ajudar», considera, falando depois sobre como esse trabalho pode ser feito em campo, junto dos protagonistas.

Para isso fala em «tentar evitar alguns problemas antes de eles acontecerem». Como é que isso pode ser feito? «Às vezes, no decorrer de um jogo, nós conseguimos perceber que as coisas estão prestes a acontecer. Utilizando uma linguagem mais prática, às vezes conseguimos perceber que a atitude de um jogador está sujeita a descambar a qualquer momento. E podemos tentar precaver-nos e anteciparmo-nos um bocadinho a isso.»

«Em termos gerais, é fazer o mesmo», continua: «Vamos tendo problemas num campo uma vez, vamos tendo uma segunda vez. Aquela equipa teve problemas em casa e volta a ter problemas fora. Vão existindo vários sinais de que mais dia menos dia aqueles problemas podem acontecer. Então é tentarmos, dentro do que é possível, apanhar estes sinais, anteciparmos e tentarmos evitar problemas.»

«Se conseguirmos mudar os atletas jovens, também estamos a mudar os pais»

Isso pode fazer-se por exemplo junto dos treinadores e dos clubes, prossegue: «Sensibilizando os treinadores para que sejam menos resultadistas e mais formadores. Principalmente nos escalões de formação. Também tentar que os próprios clubes e os presidentes dos clubes e as direções dos clubes compreendam que um treinador vai muito além do resultado. Ou seja, tem de existir aqui uma mudança de comportamento e de leitura do futebol a todos os níveis. Temos de estar todos imbuídos do mesmo espírito, para que efetivamente consigamos mudar esses comportamentos. Acredito que com esses pequenos pormenores conseguiremos ter um resultado diferente», diz.

Para Luciano Gonçalves, o trabalho no futebol de formação é crucial para essa mudança de mentalidades, extensível aos adeptos: «Eu acredito muito nisto: se nós conseguirmos mudar os atletas jovens, nós vamos estar a mudar também os pais. Se retirarmos um bocadinho esse peso da competitividade, de ter de se ganhar a todo o custo. Se calhar, analisar se faz sentido até aos 13 anos haver uma competição, ou se devem ser só encontros.»

«Humanizar» o árbitro

Outra ideia deixada pelo representante da classe passa pela «humanização» da figura do árbitro. «O árbitro não pode ser visto como aquele indivíduo que ali vem para julgar o que fazemos. Tem de ser visto como fazendo parte do jogo. É um elemento como o treinador, como o massagista, como o jogador. Temos de nos humanizar», diz, considerando que isso passa por o árbitro poder, por exemplo, «ir falando» publicamente. Algo que advoga «no futebol de base», sem entrar no campo do futebol profissional: «O futebol de base é onde acho que conseguimos mudar comportamentos.»

São ideias para tentar lidar com um problema antigo e que se repete. «Não é fácil, se fosse isto não era um problema que tem décadas», remata.

O ensaio-piloto lançado em Inglaterra pode ser mais um passo na tentativa de lidar com o problema. «Era interessante fazer uma experiência idêntica em Portugal. E acho que todos tínhamos a ganhar», diz Luciano Gonçalves. Pode representar um investimento avultado – no caso inglês, o projeto está a ser desenvolvido em parceria com uma empresa que produz as câmaras. «Primeiro devemos fazer a experiência. Porque ser barato ou caro apenas tem a ver se é um investimento ou uma despesa. Se valer a pena é um investimento. Se for para bem do futebol nunca podemos entender como um custo», considera.