Em tempos, lembro-me de que enfiar Fernando Santos e tiki-taka na mesma frase era sinónimo de desafio de dificuldade elevada. Muito utilizado nos Verdade ou Consequência dos nerds da bola. Os nerds da bola são assim. Não aproveitam esses jogos para conquistar um beijo da crush, usam-nos com a intenção de estimular a criação de possíveis dicas para futuras discussões no Twitter. Sim, sim, faz parte.

Chegados aqui, nada mudou, ou seja, enfiar Fernando Santos e tiki-taka na mesma frase continua a ser extremamente difícil.

Então, por que é que escrevi o primeiro parágrafo? Porque um nerd da bola nunca perde a oportunidade de dar uma canelada num treinador que aprecia pouco.

Com Fernando Santos ao leme da Selecção Nacional desde 2014, o Mundial do Qatar não era o momento em que esperava ver o Engenheiro apelar à “liberdade total”. Liberdade total dos seus jogadores dentro do seu sistema de jogo, entenda-se. Pelos motivos óbvios e porque o seu histórico conservadorismo foi-nos habituando a que se conservasse tudo – até Luís Neto (convocado, na ausência de Pepe, a 21 de Março de 2021 para representar Portugal nos encontros de qualificação para este Mundial) –, menos a bola. E estes jogadores não podem ser livres sem ela.

Mesmo recordando fases de maior domínio sobre os adversários, como a caminhada na Liga das Nações 2018/2019, a Selecção de Fernando Santos nunca teve especial apetência para a mobilidade, para trocas posicionais constantes. Vamo’ lá ver. Alguém se tinha preparado para ouvir:

- “Sabendo como se devem reorganizar [referindo-se aos jogadores durante o jogo]. Sem quintais. Sem nome e sem número. Eles sabem que em posse é criatividade total”;

- “Estou a jogar num sistema muito mais híbrido. Não me interessa se o Bernardo está à direita ou no meio, ou mais atrás. Ou o Bruno. Se o Félix está mais por dentro ou fora. Nesta anarquia, entre aspas, em segurança”.

Que é feito do Fernando? Que é feito da cultura do ‘bater na frente’ quando pressionados? Que é feito do amor assolapado pelos cruzamentos? Na conferência de imprensa pós-Gana, o nosso seleccionador encarnou o espírito de Pep Guardiola e esforçou-se por acender os faróis dos românticos. Qual é que foi o problema? Vimos o jogo. Além de já estarmos calejados no que toca a discursos mi-mi-mis. Aliás, o mais recente charlatão é Xavi Hernández, que insiste em vender gato por lebre. Hei-de lá ir.  

Tento não me desviar do destinatário, mas escolher o ataque não é um estilo, é um modo de vida. Hashtag Gustavo Santos. Hashtag o efeito Lage.

Quem viu o Portugal-Gana, ou melhor, quem viu o Portugal-Nigéria, ficou com a clara sensação de que o Engenheiro queria começar a jogar a outra coisa. Desde logo, pela intenção de juntar William Carvalho, Otávio, Bernardo Silva, Bruno Fernandes e João Félix, povoando o corredor central e deixando as tarefas de proporcionar largura, verticalidade e profundidade para os laterais. No caso, Diogo Dalot e Nuno Mendes.

No primeiro golo, logo aos 9’, João Félix (!) baixou para junto de William – imagine-se a heresia – e lançou Dalot à direita, tendo sido Bruno Fernandes, dentro da grande área, a responder ao cruzamento atrasado. Bernardo Silva ora pedia a bola perto de António Silva e Rúben Dias, ora surgia entre-linhas. Félix tanto entrava na meia-esquerda, como dava largura desse lado, trocando com Nuno Mendes. Otávio era parceiro de William no meio-campo quando Bernardo não estava nessas zonas e adiantava-se em alturas em que outros ocupavam o seu lugar. Um autêntico rebuliço capaz de deixar o oponente carregado de dúvidas e o povo cheio de certezas: trocámos de estratégia. Agora, somos amigos da bola, procuramos ter mais paciência com ela e não a despachar de qualquer maneira.

Contra o Gana, a estratégia manteve-se, só que os espaços deixados pelo opositor, organizado num 5x3x2, reduziram drasticamente. Com poucas rotinas na nova dinâmica, Portugal aplicou o tiki-taka da Wish. O tiki-taka da Wish não é o que os românticos gostam de ver, é o que a malta acha que os românticos gostam de ver. Uma posse de bola estéril, demasiados jogadores a pisar os mesmos locais e uma ausência gritante de contra-movimentos dentro do bloco contrário. Só havia quem pedisse no pé, nem uma rupturazinha para amostra, deixando o Gana confortável a defender.

Pouco ou nada mudou frente ao Uruguai. Mudaram, sim, os problemas criados pelo opositor. Desta vez, calhou-nos um grupo de homens dispostos a rebentarem-nos os dentes, sendo que, muito cedo, perdemos o que se estava a sentir melhor no ringue: Nuno Mendes. De resto, uma profunda desinspiração colectiva, típica de quem estuda na noite anterior para o exame de Filosofia e chega ao dia impreparado, a rezar por um rasgo individual. Bruno Fernandes aplicou-se.

No fundo, o Engenheiro quis apresentar a nova colecção Outono/Inverno, sem que se apercebesse de que, mesmo tendo os modelos, uma identidade não se cria num estalar de dedos e tão pouco o tiki-taka é uma questão de moda. No espaço da selecção, o pouco tempo disponível para implementar ideias e trabalhá-las faz aumentar a importância da antecipação. Torna-se quase impossível exigir automatismos neste modelo, quando basta recuar uns meses se quisermos recordar partidas em que dávamos, por opção, a iniciativa ao adversário. Não foi por acaso que Fernando Santos levou para o Qatar milhares de recadinhos a pedir-lhe coragem na abordagem aos jogos.

É verdade que este sistema veio para ficar? Caso não queira responder, tenho uma consequência: dar 10 voltas ao campo enquanto grita ‘o Messi é o melhor do Mundo’.