O escritor uruguaio Eduardo Galeano chamou-lhe o jogo mais triste da história. Foi a 21 de novembro de 1973 que o Chile entrou em campo no Estádio Nacional de Santiago, sem um adversário do outro lado, trocou a bola um punhado de vezes, introduziu-a na baliza vazia e ganhou lugar no Mundial de 1974.

Foi assim



Era o fim de uma história que ainda hoje envergonha o futebol chileno e que tinha começado dois meses antes. A 11 de setembro de 1973, quando um golpe militar derrubou o Governo socialista de Salvador Allende para instalar no poder Augusto Pinochet. Allende morreu no mesmo dia, o debate se foi morto ou se suicidou durou décadas, embora a segunda tese tenha aparentemente vingado. Aquela dia representava o início de uma ditadura sangrenta, que duraria 17 anos e fez milhares de vítimas.

O golpe apanhou a seleção do Chile a ter de jogar um play-off com uma seleção europeia para ir ao Mundial, que se realizaria na então RFA, a Alemanha ocidental. O rival era a URSS e a primeira mão jogou-se em Moscovo a 26 de setembro. Terminou sem golos, dizem as crónicas que graças a uma exibição defensiva heróica dos sul-americanos.

A segunda mão foi marcada para 21 de novembro, em Santiago do Chile. Então, o mundo começava a tomar consciência da dimensão da brutalidade e violência do regime, que perseguia e torturava milhares de chilenos, e também estrangeiros. O Estádio Nacional de Santiago, diziam os relatos, estava a ser usado pelo regime como campo de detenção e tortura.

E a União Soviética decidiu tomar uma posição. Recusou-se a jogar no Estádio Nacional, que considerou «manchado de sangue», e propôs à FIFA que marcasse o jogo para um campo neutro.

A FIFA resolveu fazer uma inspeção ao Estádio Nacional. Foi assim, contou ao programa Radio Ambulante Jorge Montealegre, um dos detidos no estádio, então com 19 anos: «Aos que estávamos no estádio não nos deixaram sair para ver o que se passava. Mantiveram-nos em baixo, escondidos nos balneários e túneis. Havia jornalistas a seguir os oficiais da FIFA e não era suposto verem-nos. Era como se estivéssemos em dois mundos diferentes.»

Os inspetores da FIFA não viram nem um prisioneiro, e estariam lá na altura sete mil pessoas detidas. Então, decidiram que a Rússia perderia por falta de comparência se não fosse.

O Chile escondeu os detidos: tirou-os do Estádio Nacional, levou-os para uma mina no deserto de Atacama. E encenou aquilo, aquele jogo fantasma. Galeano, no livro «Los hijos de los días», contou assim: «Assistiram dezoito mil entusiastas, que pagaram entrada e ovacionaram o golo que Francisco Valdés meteu na baliza vazia. A seleção chilena jogou contra ninguém.»

Não foi um bom momento de glorificação do regime, nota o próprio Jorge Montealegre. «Este simbolismo do estádio transformado em campo de concentração foi a pior propaganda para a ditadura. Aquela imagem horrível correu mundo, e o estádio tornou-se uma metáfora da ditadura do Chile.»  

Uma ideia partilhada por outro dos protagonistas desta história. Carlos Caszely, que era jogador daquela seleção: «A equipa fez a coisa mais ridícula possível. Foi um embaraço mundial.»

Caszely viria a tornar-se um símbolo da oposição a Pinochet. Antes do Mundial, a sua própria mãe foi detida e torturada, sem que nunca lhe explicassem sequer de que a acusavam. Quando Pinochet promoveu uma receção à seleção chilena antes do Mundial 1974, Caszely não lhe apertou a mão. Mais tarde explicou que não se recusou, como conta a lenda, simplesmente arranjou maneira de evitar saudar o ditador.

No Campeonato do Mundo, Caszely começou por fazer história, por motivos bem diferentes. Foi expulso na estreia do Chile, frente à RFA, e tornou-se o primeiro jogador de sempre a ver um vermelho num Mundial. Tinham sido introduzidos em 1970.

O incidente foi utilizado pelo regime para denegrir a imagem do jogador, simpatizante comunista e persona non grata. «Cazsely foi expulso por não respeitar os direitos humanos», disse à imprensa o delegado que o regime tinha colocado junto da equipa, conta o jornal «Marca». Chegou a ser acusado de ver de propósito o cartão para não ter defrontar a RDA, a Alemanha comunista, no segundo jogo.

Caszely, que se tornou um dos rostos da oposição a Pinochet, não estava em campo no terceiro jogo do Chile nessa fase de grupos, frente à Austrália. Jogo que se repetirá aliás esta sexta-feira no Mundial 2014, o pretexto próximo para recordar este episódio.

Mas a situação no Chile entrou no Estádio Olímpico de Berlim naquele junho de 1974, nove meses depois do golpe de estado. Entrou nos cânticos de alguns adeptos que conseguiram levar os protestos para as bancadas. Cantaram «Chile sí, junta no» e no início da segunda parte conseguiram entrar mesmo em campo, com uma faixa que alertava para a situação no país.